“E antes que me perguntem, vou logo avisando: tudo isso aconteceu comigo e nada disso aconteceu comigo. E se ainda lhes restar alguma dúvida, lembro que: ‘existem apenas duas ou três histórias humanas, e elas vão-se repetindo sem parar, teimosas, como se nunca tivessem acontecido antes’”. Poucas vezes uma epígrafe conseguiu casar tão bem com o texto ao qual serve de mote. Nesse caso, a citação é de Willa Cather e o casamento acontece em Um deus dentro dele, um diabo dentro de mim, estréia de Nilza Rezende na prosa longa — a carioca de 43 anos já assinou dois livros infantis, além de ter experiências no cinema e na dramaturgia. Também raras vezes se assiste a um debut tão vigoroso.
Nilza desafia qualquer bom senso, notadamente o que deve preocupar ainda mais um estreante, e vale-se do grande clichê: a esposa amantíssima, subjugada e depreciada pelo homem que ama incondicionalmente, descobre a traição da qual é vítima e conhece então uma crise existencial sem precedência numa vida de conforto, filhos e compras. Quanto já se ouviu essa história? Da estética da fossa anos 70 à eterna novela das oito, o tema foi batido e rebatido ad nauseam. Ao concluir a leitura de Um deus…, o leitor vê-se instado a brindar a duas constatações. Primeira: em literatura, de fato, não importa tanto o que se diz, mas como se diz. Segunda: trata-se de um belo texto.
Resta agora o exercício de buscar o que faz a diferença.
A primeira resposta vem na já aludida epígrafe. Não são mesmo tantas as histórias “humanas”. “Duas ou três” parece um reducionismo exagerado; talvez uma dezena, ou pouco mais, dê conta de todo o rol de possibilidades. Um triângulo nunca faz feio, se bem explorado. Mas a ênfase de Nilza não está nessa conseqüência da traição. A protagonista — chamada “coadjuvante” pela narradora — quer antes gritar seu drama pessoal e não se ocupa da “outra”, mero detalhe na construção da história. Ela quer, isso sim, metabolizar o sofrimento; quer compreender razões por estar ainda presa a uma união deletéria; quer, em suma, exorcizar fantasias e recuperar a dignidade perdida nos dez anos de matrimônio com o coadjuvante — considerado “protagonista” —, recém-postos em cheque. Como se vê, são apostas de alto risco em se tratando da literatura. Ao assumir o chavão na origem da narrativa, a autora vence estrategicamente o primeiro obstáculo à originalidade da obra e afasta do leitor a sensação de déjà vu; a partir daí, ela se mantém fresca e até certo grau inusitada.
Vem desde a epígrafe outra preocupação. Nilza Rezende utiliza o monólogo interior travestido de narrador em terceira pessoa, o que propicia uma constante alternância entre realidade e ficção, ambas — imagina-se — realizadas no plano puramente ficcional. E é tão real o discurso, tão profundamente humano, que não se tem como duvidar e não o creditar a uma experiência de fato vivida. Quando atinge esse nível, a ficção terá cumprido com seu maior desafio. Não satisfeita, à medida que a narrativa se aproxima do final, Nilza recorre à primeira pessoa para um grande vôo confessional — e do qual a novela poderia prescindir, sem nenhum prejuízo, caso a autora tivesse preferido respeitar um dos ensinamentos mais sagrados à literatura: o melhor às vezes está não naquilo que é dito, mas no que fica apenas insinuado. Esse momento talvez responda pelo único senão da obra.
Nilza tem domínio total do bom texto. O ritmo é de uma agilidade ímpar, um disparo incessante de metralhadora atingindo em cheio a consciência do leitor. O erotismo em dose farta e bem-feito, não cedendo espaço a apelações ou descontroles, deixa prevalecer a catarse da narradora, esta sim ungida de total despudor na purgação do sofrimento íntimo.
Driblando os lugares-comuns inerentes à trama — mulher de executivo, shoppings, relógios, canetas Mont Blanc e assemelhados —, Nilza Rezende constrói pelo menos uma metáfora e uma cena dignas de obrigatória referência.
A metáfora: “Seu pensamento, já disse, era um nó, um nó tão fechado, que tudo que ela via era uma tela preta. No meio da tela tinha uma imagem. Ela não conseguia ver mais nada. Não conseguia ver o dia, a casa, os filhos, a cozinha, a árvore, o shopping. Ela não via nada, ela só via a tela e, no meio da tela, aquela imagem, ora imensa, ora só um ponto, um pontinho, fragmento de imagem. Mas estava lá, no fundo que fosse, estava lá”. Obviamente essa imagem é a do instante em que a narradora assiste à traição do marido. Ela contém a chave que desencadeia a narrativa e à qual a autora recorre várias vezes na primeira parte do livro. Trata-se de um achado em sua eficaz simplicidade.
A cena: à cata de provas concretas da traição, pois ainda não consegue acreditar no próprio testemunho, a narradora vasculha o cesto de roupas sujas a cheirar as cuecas brancas usadas pelo marido. É uma situação plenamente verossímil quando protagonizada por um ser ferido de morte em seu orgulho; a novidade está na confissão cruenta que faz a narradora e da qual é difícil ao leitor escapar ileso. A força do texto está justamente nesse abrir corajoso das comportas: Nilza entrega ao mundo o que a protagonista-coadjuvante possui de mais íntimo, sem constrangimentos, num jorro incontido que arrasta impiedosamente o leitor, transformado em voyeur involuntário do espetáculo.
Também pede atenção a estrutura formal da novela. Nilza Rezende não a divide em capítulos, tampouco as frases são agrupadas em parágrafos convencionais. O texto é disposto em vários blocos compactos onde os diálogos entram e saem sem nenhuma indicação, amalgamados ao fluxo natural da narrativa. Parece um simples detalhe, mas a opção reforça tanto a densidade do texto quanto seu movimento circular em torno do eixo comandante. Há blocos de diferentes tamanhos, todos eles desenhados a partir dum mesmo ponto, como na metáfora da qual se falou há pouco e remetendo mais uma vez à epígrafe — “elas vão-se repetindo sem parar, teimosas, como se nunca tivessem acontecido antes”.
Mais que apenas bons augúrios, o esforço e a competência de Nilza Rezende ao escrever tão particular e intensamente o que, na apresentação do livro, Affonso Romano de Sant’Anna chama de “desmontagem de um casamento”, levam a crer que ela chegou para marcar vários outros tentos a favor da boa literatura. Narrando o fim, já conseguiu um belo começo.