O filho eterno

Em “Literatura infantil”, Alejandro Zambra parte do nascimento do seu filho para investigar suas relações com o pai
Alejandro Zambra, autor de “Literatura infantil”
09/12/2025

Um livro, em última instância, é sempre um legado, um retrato do imediato ou uma possibilidade de interpretação de mundo, um diálogo entre o visível e aquilo que não se vê. Quando Orwell escreveu 1984, tentava alertar sobre o obscurantismo e os perigos do totalitarismo — que Kafka, em alguma medida, anteviu em O Castelo e O processo. Em Cem anos de solidão, García Márquez observava a vida por uma ótica que não fosse o pragmatismo do pós-guerra ou das ditaduras latino-americanas. Wilde conseguiu perfilar como ninguém a cultura hedonista da Inglaterra vitoriana com suas peças e, sobretudo, com O retrato de Dorian Gray. Entretanto, todas essas obras são como forças centrífugas, que olham o mundo na busca de encontrar o seu lugar nele.

Em Literatura infantil, Alejandro Zambra faz o caminho inverso: observa o que está ao redor para construir seu próprio mundo, algo que o escritor já havia experimentado nas novelas A vida privada das árvores e Formas de voltar para casa, em alguns contos de Meus documentos e no romance Poeta chileno. Literatura infantil, por sinal, é daqueles livros um tanto quanto inclassificáveis: parte do nascimento de Silvestre, o filho de Zambra, para criar um escrutínio da vida, mas, ao mesmo tempo, não tem compromisso com a realidade imediata. Se em O filho de mil homens havia um pai sem filho procurando por um filho sem pai, no texto do autor chileno observamos um sujeito em xeque: ora pelo delírio, ora pelo pavor. E é aí que está a beleza do texto.

Quer ver só? A obra começa com um diário, que dá nome ao livro, em que o escritor expõe o fascínio da paternidade e o alumbramento dos medos que o tomam de assalto. O resultado dessa equação é uma criança, que vai ocupando não só o espaço físico na vida dos pais, mas também redefine completamente a dinâmica de suas existências. Depois, Zambra escava as suas origens para conseguir construir uma relação saudável com Silvestre.

A questão é que Literatura infantil não é um manual de sobrevivência para o menino — como Caderno de um ausente, de Carrascoza —, e sim um ajuste de contas mais ao modo de O filho eterno, de Cristovão Tezza. A diferença está nos fatores: Tezza é o pai que se reconcilia com o filho; na obra de Zambra é o filho, o próprio autor, que caminha em direção ao pai, cuja relação era distante e difícil. E quem faz a ponte é Silvestre. Arranha-céus é um dos melhores relatos — chega a ser difícil chamar o texto de conto — e expõe os limites entre realidade e ficção, duas das melhores matérias-primas do escritor. A relação díspar entre uma viagem a Nova York — que não aconteceu — e uma “carta ao pai” — não lida — é a base de algo verdadeiramente magistral, de um domínio raro da escrita, preparando o terreno para outro bom momento: Introdução à tristeza futebolística.

Literatura e futebol
Se a relação entre futebol e literatura soa meio deslocada, é preciso lembrar que dois dos mais interessantes romances brasileiros do século 21 têm o ludopédio como eixo central: o aclamado O drible, de Sérgio Rodrigues, e o (infelizmente) quase esquecido Segundo tempo, de Michel Laub. Na obra de Alejandro Zambra, o futebol vem ainda mais naturalmente. “Escritores gostariam de ser jogadores de futebol”, disse ele, certa feita. Nessa segunda parte, Literatura infantil deixa de ser um livro para o filho e passa a ser uma obra do filho. É, justamente, quando o autor mergulha na investigação dos fragmentos da sua relação com o pai. Se, de início, a ideia é encontrar um culpado, adiante torna-se apenas uma missão de paz, de recomeço.

O que pode haver de maior cumplicidade entre pai e filho? Um crime. Em Assaltante de olhos azuis, Literatura infantil resgata a história de quando Zambra foi roubado em uma saidinha de banco. Nada de mais para uma cidade como Santiago, certo? Não exatamente. O episódio insólito é utilizado pelo narrador para escancarar a imbecilidade e ingenuidade do pai, que conta o dinheiro na rua. E o julgamento se transforma em piedade. “Uma vez defendi meu pai. Fisicamente. Foi em uma manhã de verão. Um ladrão estava prestes a chutá-lo no chão”, dá a pista logo de cara.

Lições tardias de pesca com mosca escancara a tragicomédia familiar. “‘Vamos pescar, só nós dois qualquer dia’, diz meu pai a meu filho”, escreve logo no primeiro parágrafo. Aqui, o narrador se vê face a face com a tristeza da rejeição do pai — que prefere o neto — e a exultação, pelo mesmo motivo. Esse é um relato pungente e bem construído, e também o ponto de reconciliação, o clímax de um dos melhores livros de Zambra.

Literatura madura
Literatura infantil, para além de obra em si, demonstra o amadurecimento do autor. É interessante revisitar tudo o que Zambra escreveu e perceber que esse livro não se distancia da obra completa — já que coloca temas que lhe são caros (família, relacionamentos, morte, cultura pop) —, entretanto, existem outros temperos e novas visões sobre o que já foi posto em xeque anteriormente.

Se Bonsai e as outras obras iniciais tinham sempre os protagonistas dispersos, perdidos em um universo cartesiano e lógico, aqui observamos um narrador — e chamo de “um” por acreditar que se trata do mesmo narrador em todos os textos, mas, se preferir, pode ler como narradores — amadurecido, machucado, mas maduro, capaz de ter certa resiliência diante do abismo.

E, como em toda a obra do chileno, Literatura infantil tem uma falsa simplicidade. À medida que o leitor avança, se depara com as arestas da vida adulta e com as dificuldades de se colocar perante determinadas situações. E, claro, não é uma literatura de conforto ou cura — duas tendências mundiais, essas, sim, deslocadas da verdadeira intencionalidade literária —, ao contrário, propõe que quem lê olhe também para si e para as suas relações familiares.

Literatura infantil não é exatamente uma leitura obrigatória dentro da obra de Alejandro Zambra, mas é uma das mais gratas surpresas que um escritor do seu calibre pode oferecer. É uma obra que exige e devolve proporcionalmente a dedicação do leitor.

Literatura infantil
Alejandro Zambra
Trad.: Miguel Del Castillo
Companhia das Letras
224 págs.

Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

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