O fantasma do fantasma

Com narrativa leve e fluída, "A imensidão íntima dos carneiros", de Marcelo Maluf, é um intenso diálogo com os ancestrais
Marcelo Maluf, autor de “A imensidão íntima dos carneiros”
27/01/2017

“Uma das tarefas da psicanálise é, segundo Leowald, fazer fantasmas tornarem-se ancestrais. Se inconscientes, os visitantes sinistros do passado são conceitualizados como ‘fantasmas’; quando analisados e tornados conscientes, eles perdem seu temível magnetismo inconsciente e tornam-se ancestrais, mais memórias do passado do que suas repetições compulsivas e sobrenaturais.”[1]

Esse pequeno trecho do psicanalista americano Eugene J. Mahon, em um artigo sobre a função do espectro em Hamlet, de Shakespeare, parece cair como uma luva em A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf. Bem, escrever ficção sempre é, direta ou indiretamente, entrar em diálogo com os fantasmas do nosso tempo e da nossa história. Porém, nesse romance, isso é levado ao pé da letra. Nele, o protagonista-narrador, também chamado Marcelo, vale-se de um artifício tão simples quanto eficaz para livrar-se da tirania do passado: ele vira o jogo, transformando-se no fantasma do fantasma. Como sombra invisível do futuro, volta no tempo e espreita o avô, Assaad, no momento em que este passa em revista lembranças de uma tragédia familiar vivida no Líbano na década de 1920, período final do império otomano. Marcelo Maluf escreve um Assaad que escreve, fazendo emergir as lembranças recalcadas por todos aqueles anos, ambos na tentativa terapêutica de livrarem-se ou de, ao menos, reconciliarem-se com os assombros causados por elas.

Logo de início, Marcelo deixa claro que falará de um trauma que percorre gerações: a herança do medo. O medo que paralisa, torna passivo e passível a outras catástrofes.

Quando eu nasci, sob o sol daquele mês de janeiro, o medo estava no meu primeiro choro. O mesmo medo que hoje ainda vive em mim. Um medo genético passado de pai para filho, de avô para neto.

Assim, a imagem inicial dos carneiros afogando-se na praia sob o olhar impotente de Marcelo simboliza esse passado que precisaria ser salvo. Seria preciso trazê-lo literalmente à tona para não ser tragado por ele. Porém os carneiros se afogam. Mas um sobrevive e fala a Marcelo, confrontando-o com a sua culpa primeva:

Por que não se lançou ao mar para nos salvar?… Então por que você ficou lá, feito um idiota, apenas observando a morte vir e levar com ela todos os meus irmãos?

Como Hamlet, Marcelo não se identifica com sua história e é refratário a uma dívida que não entende como sua, porém, o ônus hereditário pesa sobre ele como uma sombra, trazendo para perto a imagem distante do avô. Ele estranha seus antepassados e é exatamente essa estranheza que denunciará a familiaridade:

Você me parece um estranho, Assaad. Suas mãos estão suadas. Minhas mãos também se inundam.

Após certa relutância inicial, Marcelo, assim como Assaad, rende-se ao inevitável e parte em busca das lembranças para dar voz à imagem há tanto calada. E dar voz aos mortos é, como vimos, desmistificá-los, torná-los ancestrais e humanos.

Aos poucos, o narrador reconhece mais e mais do avô em si. Constata que reproduz os seus gestos, que também é canhoto. As imagens dos dois sobrepõem-se como slides projetados um por cima de outro. Até que ambos aceitam enfim a sua tarefa de desenterrar o passado para libertar o presente, como um jardineiro que precisa “revolver a terra para que ela respire e acomode novas plantas, para que floresçam”.

Assaad (e com ele, Marcelo) afunda-se cada vez mais nas camadas da lembrança, turvando-a. Depois de uma queda na neve (aqui uma forte alegoria para a memória), em cuja sequência Assaad quase morre congelado, começam a se diluir as certezas: “Entre a extensão do mundo do sono e a vigília, não tive a certeza de que minha experiência era real ou imaginária”.

E é neste limbo da memória que Assaad se permite escavar a mais dolorosa imagem, a pior de todas, há tanto recalcada: dos irmãos enforcados diante dos seus olhos pelos soldados turcos. E ao leitor é desvendada aí a razão da emigração de Assaad para o Brasil.

Neste momento, Marcelo, ainda arredio à herança de culpa, nega-se a continuar carregando o pesado legado:

Sussurrei na grade que dava acesso aos caixões que não queria mais aquela história, que não precisava mais repetir os fracassos, as dores, as doenças, o ódio e os medos que assombravam a família há tanto tempo.

Porém, quanto mais resiste à sua história, mais se vê enredado nela. Vê seu medo espelhado no medo do avô. O medo de Assaad de errar ao narrar o assassinato dos irmãos é o mesmo do menino Marcelo aprendendo a escrever na escola, “a mesma falta de ar, a mesma respiração descompassada”. Aqui se fundem a motivação da escrita e da memória: já não se sabe se o autor-narrador (pela mão de seu personagem) escreve para lembrar ou lembra para escrever.

É só bem mais tarde que aparece a imagem já quase apagada do pai de Marcelo, morto há mais de dez anos. Ele abre mais uma porta da memória, que emergirá à superfície da ficção. Aos poucos, outros membros da família aparecem, a mãe, os irmãos, os tios e primos. No momento em que se confraternizam, Marcelo consegue ver a todos como estranhos e percebe que chegara o momento de deixá-los.

Diante da casa da infância, observando-a, ele conjura mais uma vez contra o dever de resgatar a dívida que não contraiu.

Não me cabe perdoar ou amaldiçoar os soldados que mataram os irmãos do meu avô. Meu único propósito não é nem com Assaad, nem com Michel, mas com as palavras que escrevo nesse momento. Estas palavras servem à minha consciência, que não me trai, assim como eu não a engano.

Crendo-se liberto, o narrador foca o seu olhar (e o nosso) no agora, com seus presentes e seus assombros: o seu corpo, a deformidade ligeira no coração. Para logo constatar que também esse defeito físico é genético e que, assim, ele continuará invariavelmente carregando consigo tudo o que quis deixar pelo caminho. Compreende que “esse ainda não é o fim. Há algo, um gesto necessário a se fazer”. Porque assim como um pescoço curto, talvez a memória seja genética.

No final, novamente diante do mar, o ciclo enfim se fecha. Os carneiros reaparecem e Assaad, libertado de seus fantasmas, repete as mesmas palavras do carneiro sobrevivente do início, retornando à questão do legado da culpa: Então por que você ficou lá, feito um idiota, apenas observando a morte vir e levar com ela os meus irmãos?

Marcelo reconhece que o destino só pode ser consumado com a própria vida e nos deixa uma lição enigmática sobre a morte que, “é outra coisa, diferente de tudo que conhecemos”. Talvez apenas o fim de uma história, de uma trajetória, de um romance?

A forma
Este contundente relato sobre memória, esquecimento e o poder dos laços familiares, que podem dar chão ou asas, mas também servir de amarras; esta história invocativa nos é contada por meio de uma narrativa literalmente fabulosa, ou seja, em forma de fábula: alguns personagens-chaves são animais (carneiros) ou figuras fantásticas (o primo santo que desperta de um quadro) com características antropomórficas. Essa forma condiz com o enredo, já que a fábula tem suas origens no oriente, sobretudo entre os assírios e babilônios. E, como toda fábula, tem caráter moralizante. Esta “moral da história” poderia causar incômodo ao leitor contemporâneo, não fosse a caligrafia precisa e comovente da prosa poética de Marcelo Maluf que tem a sensibilidade de não impor nenhuma verdade. Sua escrita se edifica no espaço da ambivalência, entre uma narrativa leve e fluída e imagens oníricas dolorosas, impactantes e surpreendentes.

[1] O fantasma em Hamlet, de Dr. Eugene J. Mahon, em psychoanalysis.today. Infelizmente, o nome do tradutor não é mencionado.

A imensidão íntima dos carneiros
Marcelo Maluf
Reformatório
156 págs.
Marcelo Maluf
Nasceu em 1974, em Santa Bárbara D’Oeste (SP). É escritor e professor de criação literária. Graduou-se em Arte-educação (2004) e fez mestrado em Artes, (2007) ambos pelo Instituto de Artes da Unesp. Em 2013, foi contemplado com a Bolsa de criação literária do Governo de São Paulo (ProAc) para o romance A imensidão íntima dos carneiros, que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura de 2016 e ficou entre os finalistas do Prêmio Jabuti.
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho