Nem sempre é concedido a Virginia Woolf o destacado lugar que merece na história do feminismo. Diversos livros acerca deste movimento, desde sínteses históricas a compêndios, passam ao largo de seu nome, deixando de abordar os muitos textos em que Woolf tratou da condição e dos direitos das mulheres. Como entender que isso ocorra?
Uma pista nos é concedida por Margaret Walters — que, ao escrever uma obra introdutória ao feminismo, embora mencione já na primeira página a autora de Mrs. Dalloway, concede ênfase sobretudo ao que percebe como divergências e críticas de Woolf ao movimento feminista. Como se poderia esperar, Walters se concentra principalmente na passagem de Three guineas que clama à destruição daquela “velha palavra” — palavra que é, precisamente, “feminista”. Se o direito da mulher a obter o próprio sustento havia sido alcançado, haveria ainda necessidade de uma luta feminista? Se essa luta perdera o sentido, valeria a pena preservar aquela palavra? Observa Walters que, embora as mulheres tivessem obtido o direito de sustentarem a si mesmas (ressalte-se: não mais que uma minoria entre elas), quase um século após Woolf escrever Three guineas mulheres ainda recebem, em média, remuneração menor do que os homens quando realizam trabalhos equivalentes — para não mencionar os problemas relacionados ao trabalho doméstico.
Contudo, a leitura de Margaret Walters comete sérios deslizes. É o que percebemos quando a cotejamos com a percepção de Naomi Black, autora de um relevante livro sobre o assunto (Virginia Woolf as feminist). Analisando o contexto de produção do texto de Woolf, Black supõe uma questão crucial: o fato de que o conceito de feminismo não é estanque, permanecendo imutável ao longo dos tempos; por conseguinte, importa rechaçar leituras anacrônicas. Assim aparelhada, Black demonstra que, na verdade, Woolf combatia um certo sentido restrito do feminismo, que o limitava à busca por demandas específicas que, na verdade, sequer eram alcançadas plenamente — mesmo em Three guineas, encontra-se a percepção de que o direito formal à obtenção do próprio sustento fora insuficiente para garantir uma igualdade efetiva entre mulheres e homens.
Era preciso, portanto, ir além: a luta contra a sociedade patriarcal deveria ser inscrita na luta política mais ampla contra a tirania estatal, e articulada com o combate à opressão étnica e religiosa. Como afirma Black: “Hoje, nós veríamos aqueles objetivos mais amplos, bem como as mudanças instrumentais na situação das mulheres, como objetivos do feminismo. Eles são os objetivos de Woolf em Three guineas. Eles são feministas, antes de tudo, devido ao seu foco inicial sobre as mulheres”.
A sombra do anjo
Levando-se em conta essa recepção ambivalente, é relevante que o título do volume traduzido por Denise Bottmann seja Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Há aí uma tomada de posição: a autora de Orlando foi uma feminista, ainda que isso nem sempre tenha sido percebido — mesmo por protagonistas do feminismo. Quem tiver dúvidas certamente as revisará após uma leitura dos textos compilados, produzidos ao longo de mais de três décadas.
Já o artigo que empresta o título ao volume — lido por Virginia Woolf na Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres em janeiro de 1931, e publicado postumamente onze anos depois — aborda questões fundamentais da resistência à sociedade patriarcal. Temos uma idéia da precária situação profissional das mulheres no início do século 20 quando Woolf reconhece que, embora se dedicasse a uma carreira particularmente favorável — a literatura, em que podia trilhar um caminho aberto por outras mulheres que haviam enfrentado os maiores obstáculos —, ainda assim só teve condições de obter alguma autonomia graças ao “bom dinheiro” que lhe foi garantido por “alguns excelentes antepassados”; graças a isso, “não precisava só do charme para viver”.
Contudo, havia também uma necessidade de superação dos impedimentos psicológicos: é inspiradora a descrição de como Woolf ousou combater o “fantasma” que insistia em aparecer entre ela e o papel, que não por acaso intitula “O anjo do lar” — referindo-se a um poema de Coventry Patmore, publicado em 1854, no qual o autor descreve sua própria esposa como a mulher ideal, disposta a renunciar a si mesma para trazer a felicidade ao marido e ao lar. Modelo de conduta que impunha, para as mulheres da época, valores como a pureza e a ausência de opinião própria, Woolf via no Anjo do Lar seu pior inimigo: como produzir mesmo uma simples resenha sem pensar por si mesma ou expressar verdades pessoais?
Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de comparecer a um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me mataria. Arrancaria o coração de minha escrita. […] Assim, toda vez que eu percebia a sombra de sua asa ou o brilho de sua auréola em cima da página, eu pegava o tinteiro e atirava nela. Demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma do que uma realidade.
De fato: neste e nos outros artigos reunidos no volume, assoma uma mulher cujas qualidades em tudo se opõem às do Anjo do Lar; uma mulher que, ciente dos obstáculos impostos às mulheres pela sociedade sexista, corajosamente se lançou a combater os estereótipos e os dispositivos de poder que as condenavam à sombra. A leitura dos textos, além de prazerosa — graças à tradução segura e fluida —, é enriquecida por comentários sobre os contextos de produção e por notas de rodapé que elucidam citações e referências.
Por fim, vale ressaltar o valor da publicação de Profissões para mulheres e outros artigos feministas num momento em que parece revigorada a reação antifeminista. Que os inspiradores textos de Virginia Woolf ajudem a esclarecer o que, de fato, almeja o feminismo: um mundo livre da opressão sexista, em que mulheres e homens possam ter direitos e oportunidades equivalentes.