Hoje serão dois os resenhistas: um verdadeiro e outro falso. Ou ambos falsos, talvez ambos verdadeiros, não importa. Quem sabe um terceiro também dê o ar da graça, e então ele não será mais do que um resenhista travestido de leitor leigo. Não por isso menos atento. Nem menos falso. Deste não vamos nos ocupar por enquanto. Falemos antes dos dois primeiros. Um, falso ou verdadeiro, usará a terceira pessoa, como sói acontecer quando se pretende um tom neutro, sóbrio, impessoal. O outro refastelar-se-á com um “eu” opiniático, galhofeiro. Talvez seja este o mais sério. Ou o mais falso. Basta que se afirme existirem dois, sem anunciar precisamente quem é quem, e a confusão fica instaurada. E, neste caso, também é legítima. A confusão. Afinal, se um narrador falso tem o direito de existir, que mal há em que se use um falso resenhista? Ou dois? Quem sabe até mesmo vários desses espécimes tão raros. Ou serão eles tão raros assim?
(Não acreditem em nada do que eu disse até agora, e não minto. Ou talvez sim, talvez eu minta.)
Silviano Santiago interessou-se pelo célebre argumento. Fez constar na contracapa de seu O falso mentiroso que ele, o tal argumento, é atribuído a um certo Euclides de Mileto, apontando a Enciclopédia Mirador como fonte. Uma rápida pesquisa na internet revela que a autoria do dito-cujo pertence de fato a alguém com nome ainda mais esdrúxulo ao ouvido brasileiro: o filósofo Eubúlides de Mileto, que viveu no século 4 a.C. Talvez neste caso não importe tanto assim dar a César o crédito devido ao que é de César. Eu acho que importa, sim. Afinal, o precioso argumento atravessou nada menos do que 24 longos séculos para inspirar o novo romance do escritor mineiro. Vamos a ele, pois:
Aquele que diz “eu minto” seria um mentiroso?
Se for verdade o que diz, então a afirmação é falsa. Se o que diz for falso, a afirmação é verdadeira e, por conseqüência, novamente falsa. Eis aí o paradoxo. Ou o sofisma. Aristóteles, contemporâneo e inimigo de Eubúlides, desmonta-o com o seguinte raciocínio: “ele inclui na conclusão elementos excessivos, que a observação não distingue suficientemente de primeiro intuito. Mas se na afirmação inicial não se incluíam”, prossegue Aristóteles, “não poderão ser incluídos na conclusão. Na conclusão de argumento só poderá explicitar-se o que era virtualmente contido no antecedente”. Entenderam? Eu não entendi. Conversa de grego da escola socrática menor de Mégara. Assim diz a internet, hoje a maior e mais completa de todas as enciclopédias. Mantive as aspas tão-somente para sinalizar a transcrição, pois não creio que a aristotélica idéia tenha sido concebida exatamente como foi transcrita aqui, nem que, naquela época, pudesse já existir o conceito de virtualidade (o Houaiss registra 1696 como datação do termo). Ou talvez ele já existisse sob outra roupagem, pois os filósofos gregos continuam a nos provocar com sua excelência intelectual.
Conversa pra boi dormir, desdenharia Samuel, o personagem-narrador e nosso falso mentiroso. Samuel ou Silviano? O livro tem um subtítulo: Memórias. Memórias de quem? De quê? Certo é que Samuel não é Silviano. Ou será? Samuel é falso, pois tem duas mães: a verdadeira, que não conhece, e a falsa, porque estéril e adotiva. Por conseguinte, tem também dois pais, que talvez sejam, na realidade, a mesma pessoa. Esta é uma charada fácil: pode ser que o filho adotado seja fruto de uma aventura extraconjugal do falso pai, advogado de formação e de fachada, que fabrica e vende camisas-de-vênus antes do advento da penicilina. Mesmo que se aceite a possibilidade, ainda assim restam dois papais: 1) o advogado fajuto e 2) o industrial contrabandista e bem-sucedido. Lá pelas tantas, Samuel roda a baiana e declara que ele pode muito bem ser o próprio Silviano. E aí o leitor — ele mesmo: nosso terceiro resenhista — não entende mais nada, pois surge de inopino mais um par de pais. Eu tampouco entendo, mas não desgosto dessa intromissão autoral. Divirto-me com a falta de lógica da história, ou com o seu excesso, o que dá rigorosamente no mesmo. Chego a sentir um grande prazer quando descubro que Zé Macaco — no romance, o bolsista negro de um colégio de elite e exímio executante de sofisticadas melodias ao som da flatulência — existe em osso e carne na biografia de Silviano e, assim como o personagem, também morre precocemente. Fico imaginando se o amigo de Silviano teria igual talento. Era homossexual, o personagem, e dizia afinar ou afiar o instrumento de uma forma bizarra e algo grotesca: “na brachola” de um barbeiro galego. Assim mesmo. Aliás, narrador e personagem chegam a especular qual seria o verbo mais adequado, afinar ou afiar, e isso acontece exatamente na ocasião em que o amigo resolve confidenciar o segredo. Estranho? Talvez nem tanto, pois todos afirmam que Silviano Santiago é pródigo em parodiar Machado de Assis e seu típico deboche ao miserê humano. Outros também encontram na obra ecos de um Mário de Andrade e de seu Macunaíma, isso por conta da inconfiabilidade do narrador. Pode ser que seja assim. Eu não acredito piamente.
A família de Samuel, a falsa, vive a ascensão e declínio do poder econômico. O pai primeiro enriquece às custas de favores pagos a militares, farmacêuticos, médicos, fornecendo seu produto às fileiras do exército no tempo da Segunda Guerra e até mesmo contrabandeando-o para outros países. Com a popularização da descoberta de Fleming (a penicilina) e a facilidade com que ela passou a combater as doenças sexualmente transmissíveis, o pretenso pai conhece então o revés do sucesso e passa a odiar o venerável cientista, segundo ele, o único responsável por sua debacle financeira.
Samuel também é falso por outros motivos. Ao suposto pai, diz que estuda arquitetura; à suposta mãe, ente a um tempo submisso e possessivo, afirma cursar direito. Nem uma coisa nem outra. Forma-se na Escola de Belas-Artes, e de lá sai um inescrupuloso falsário das xilogravuras de Oswaldo Goeldi. Se a arte imita a vida, por que também não a própria arte? Sangue não é água. Filho de peixe, peixinho sempre será. Prova de que o falso pai seria de fato o verdadeiro? Mera especulação. Talvez mentira. Avisei que um de nós não era confiável. Pior, confessei que ele/eu mentia. E entrei de cabeça no tal paradoxo. Pudera: a bela capa traz título, subtítulo e nome do autor em alto relevo brilhante sobre a fotografia em preto-e-branco de um simpático bebê. Mas o editor esquece de informar quem é a criança e a quem se deve a autoria da foto. A Biblioteca Internet mais uma vez é quem esclarece: trata-se do próprio Silviano Santiago em tenra idade. A mescla de ficção e realidade, que quase sempre merece dos escritores um tratamento de disfarce, em O falso mentiroso corre solta e já na capa é denunciada.
O cenário é o Rio de Janeiro, e Silviano resgata com brilho a cena carioca desses quase setenta anos — do final dos 30 até hoje —, narrando hábitos, endereços e rótulos de antanho: flite, cera Parquetina, Rhum Creosotado, creolina, Restaurante Lamas, Mara Rúbia, Virgínia Lane, O Cruzeiro. Também o linguajar característico daquela geração, com seus ditos ingênuos entremeados de estrangeirices, ganha com a obra um valioso registro para a posteridade. Boa diversão.
Silviano gosta de frases curtas, sincopadas. Elas imitam um metralhar incessante e se prestam, aliadas à arquitetura rocambolesca da trama, a criar uma sensação de vertigem no leitor. Os parágrafos são econômicos. Não raro, compostos de única palavra. O léxico, muitas vezes chulo, faz com que o registro aproxime-se perigosamente do vulgar. Resulta num discurso de altos e baixos. Se, em algumas passagens, beira o escatológico, noutras ensaia a ironia com um tipo de humor já defasado. Ao exercitar a paródia, exagera nas cores e ultrapassa o limite estratégico para mantê-la fresca e graciosa. O resultado é tosco, meio grosseiro. O conteúdo, sobejamente melhor do que a forma escolhida para narrá-lo. O resenhista em terceira pessoa diz que ela, a forma, é anacrônica, enreda-se às vezes no juízo de valor e chega ao cúmulo de xingar Bill Gates, a Microsoft e as estripulias do imperialismo americano! Eu digo que, se já é um tédio topar com uma baboseira dessas no ideário de uma esquerda ainda festiva, em literatura isso não tem mais direito a sursis. Nem nunca teve. O sexo é tratado de maneira crua, escrachada. Vá lá: talvez o autor queira que a linguagem seja condizente à canalhice do narrador. E também à sua falsidade, pois, em meio à enxurrada de lugares-comuns, espocam, aqui e acolá, indícios de refinamento intelectual, sob forma de citações de literatura e cinema, expressões em língua estrangeira e até mesmo em pomposo latim.
Resumindo a cantilena, há pelo menos duas avaliações possíveis para a vetustez e a excessiva crueza da linguagem de Silviano: se, por um lado, é oportuno e muito bem-feito o resgate de uma época já distante, e nessa construção leva-se em conta o caráter duvidoso do narrador, por outro, falta requinte literário, bom gosto, sutileza estilística, itens absolutamente imprescindíveis à sedução de um leitor mais exigente (de novo ele aqui, o terceiro resenhista).
Entretanto, em meio às várias e já citadas escorregadelas, Silviano surpreende pela fina sensibilidade com que constrói alguns bons momentos do livro. Como o do narrador que, ao falar da falsa mãe e da estranheza de nunca tê-la visto escrever antes da morte do pai, sai com uma bela e inspirada descrição:
“Diante do espelho da penteadeira descontava toda a frustração de ágrafa. Escrevia. Usava de a a z o alfabeto das linhas e das cores. Não escrevia no próprio rosto, escrevia na imagem do rosto que estava refletida à sua frente. Escrevia o rosto no espelho com a de azul, b de branco e c de carmim. A cópia dela é que tinha o contorno das linhas faciais acentuado, os pequenos defeitos da pele retocados. O reflexo do rosto pintado, a pele espelhada colorida.”
Quem produz um texto desse quilate não merece indulgência pelos pecados estilísticos que comete. Ele não aconteceu por acidente de percurso, nem foi mero fruto do acaso, senão de um laborioso e autêntico exercício de reflexão, do qual a boa literatura jamais prescinde. Diante de tal proeza, a falsidade lúdica dos nossos três resenhistas perde o sentido, e vem um deles, verdadeiro com toda a certeza, afirmar que Silviano Santiago poderia ter feito melhor do que fez, tendo nas mãos essa matéria-prima tão velha, mas ainda nobre e que poderia ter rendido uma peça bem mais original.