O Eterno passageiro é um livro inquietante. Ronaldo Costa Fernandes é um maranhence que foi criado no Rio de Janeiro e que há um bom tempo mora em Brasília. O autor também morou nove anos na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros. Publicou em Cuba o romance O morto solitário, prêmio Casa de Las Américas. Além disso, recebeu outros prêmios tanto em prosa como em poesia. Os principais foram o Guimarães Rosa e o da Associação Paulista dos Críticos de Arte. Ronaldo já foi passageiro da poesia: depois da estréia, ficou 22 anos sem publicar, neste período freqüentou as dinâmicas paragens do romance. Agora, de volta à casa de Bandeira e Drumonnd, nos apresenta este livro, cujo título está intrinsecamente ligado à sua história. Às vezes, Ronaldo é areia nos olhos ou estampido na orelha, como em O telefone: “….quando não rumina/ a língua como chicletes,/ pode transformar/ o dente em bala,/ fazer da saliva argamassa./ O telefone,/ anatomia de um só ouvido,/ tecnologia de conchas arbitrárias,/ pode vir a ser telegrama de vozes,/ revólver na têmpora.”. Desde o início com Urbe (1975), Costa Fernandes vem questionando os exílios em que o homem se mete, as cidades que o aprisionam. Talvez por isso, tenha sido passageiro em tantos lugares. Ele é o poeta viajante, eterno passageiro de si mesmo. Mas o que passa também fica. O registro do que passou na tela e em volta dela aparece em alguns poemas com a força da memória: “No cine Éden, hollywood da Rua Grande,/ a leste de coisa alguma,/ o mundo tinha a dimensão de/ seis metros estirados de pano”(Cine Éden, p. 41). E o que passou na tela imaginária do menino poeta também é transformado num texto com os sabores das lembranças (veja poema em destaque). Os questionamentos deste livro são os dos grandes poetas, aliás o poema de abertura do livro é O tempo, que numa alusão clara ao mestre Drummond desata, ou melhor, nos prende com mais firmeza à companhia mais cruel da vida de todos nós. “O tempo e sua matéria/ a máquina dos meus humores/ tão rica e mineral/ enquanto lá fora/ a sonata dos desatinos/ orquestra o boi que se estende no varal./ …O tempo — animal que não envelhece…” Enfim, Ronaldo Costa Fernandes é escritor de mão cheia que, além da poesia e do romance, freqüenta o ensaio (O narrador do romance, 1996). É um passageiro das letras, mas as letras não passam. Dialoga com a cidade e suas agruras. Sua poesia brinca com algumas formas fixas, mas não mede palavras. É um poeta que destrói para construir o novo e mantém com o poema a briga dos que se amam, a briga dos corpos que se experimentam, que se tocam ora com violência, ora com ternura. Este é o seu quarto livro de poesia e que esta não lhe seja passageira, já que com a sua erudição Ronaldo conduz o leitor a um plano superior, tanto lingüístico como holístico. Ler O eterno passageiro é uma grande experiência.
Poeira
Que cinema é este,
sem bilheteria e lanterninha,
sem cadeira, sem tela,
cinema onde grassam sombra e ferida?
Onde estão foco e luz,
rolo, fita e palco?
Aqui há escasso e fluido traço,
brumas, arabescos, fetiches,
mulheres de batom e bronha,
restos de vigília
e o borralho do sono
reconstroem o cinema da infância
na caixa preta da fronha. (p. 83)