Em 2009, na esteira do lançamento de um filme com jeitão indie estrelado por Michael Cera, a Galera Record publicou o livro homônimo em que ele foi inspirado, Nick & Norah — Uma noite de amor e música. O produto da parceria entre os escritores Rachel Cohn e David Levithan — que também publicaram outros romances juntos, tais como Naomi and Ely’s no kiss list e Dash and Lily’s book of dares — não parece ter vingado em solo brasileiro: apenas a parcela feminina da dupla teve outros de seus romances publicados por aqui, como a trilogia Pão de mel, Siri e Cupcake.
Quatro anos depois, a mesma editora lançou Will & Will — Um nome, um destino, o primeiro livro jovem adulto (ou YA, de young adult) gay a entrar na lista de mais vendidos do The New York Times. Esse dado pode ser facilmente decomposto a partir dos nomes da dupla responsável pelo romance: John Green, autor de A culpa é das estrelas, O teorema Katherine e Cidades de papel, possui uma legião de fãs (apelidados de nerdfighters) que tornam qualquer livro do escritor em best-seller (no Brasil, os três romances citados — publicados pela Intrínseca — chegaram a figurar simultaneamente nas listas de mais vendidos); David Levithan, por sua vez, é um escritor assumidamente gay, cujas obras são conhecidas pela constante presença de personagens homossexuais. Basta fazer a matemática.
No romance em questão, dois narradores adolescentes homônimos — ambos se chamam Will Grayson — se encontram de maneira inusitada. Os capítulos ímpares são daquele cara meio apagado, desastrado e tímido que não consegue se declarar para a guria que ama (quem leu O teorema Katherine tem razões de sobra para acreditar que essa parte tenha sido escrita por John Green), amigo do gordinho gay mais expansivo da sua escola — o que não ajuda em nada sua timidez. Já os capítulos pares, escritos quase integralmente em letras minúsculas (a não ser quando alguém grita), partem do ponto de vista do Will homossexual e clinicamente deprimido, cuja única esperança de ser feliz foi depositada em um cara que ele conheceu pela internet — essa parte tem mais o jeito de David Levithan.
Aparentemente, o sucesso do romance não se repetiu por aqui. Não por falta de empenho na divulgação: um exemplar chegou a ser enviado para o deputado Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos, notório por suas declarações homofóbicas. Na primeira página, a seguinte dedicatória: “Prezado deputado Marco Feliciano, é só amor. Talvez com este livro o senhor consiga entender”. A publicação, no entanto, parece ter renovado o interesse pela publicação de outros livros do parceiro de John Green em Will & Will.
De corpo em corpo
Acordo.
Imediatamente preciso descobrir quem sou. Não se trata apenas do corpo — de abrir os olhos e ver se a pele do braço é clara ou escura, se meu cabelo é comprido ou curto, se sou gordo ou magro, garoto ou garota, se tenho ou não cicatrizes. O corpo é a coisa mais fácil à qual se ajustar quando se está acostumado a acordar em um corpo novo todas as manhãs. É a vida, o contexto do corpo, que pode ser difícil de entender.
Todo dia sou uma pessoa diferente. Eu sou eu, sei que sou eu, mas também sou outra pessoa.
Assim começa Todo dia, primeiro romance solo de David Levithan publicado no Brasil. Um ser — chamemo-lo A — acorda dia após dia no corpo de uma pessoa diferente, da mesma idade que ele, não muito distante daquela do dia anterior. Ele acessa as memórias da pessoa a fim de não comer nada a que o corpo tenha alergia e poder preparar uma boa desculpa para não praticar esportes perigosos: tudo para não fugir da rotina e não atrapalhar a vida daqueles que lhe emprestam o corpo durante 24 horas.
No dia 5.994 de sua existência, A se apaixona por Rhiannon, namorada de Justin — o rapaz cujo corpo ele então ocupa. Aos 16 anos, era de se esperar que isso ocorresse com maior freqüência, mas ele é contido e costuma saber seus limites. Os obstáculos se assemelham aos do personagem de Adam Sandler na comédia Como se fosse a primeira vez — mas, ao invés de reconquistar o amor da mulher que perde as memórias do dia ao dormir, A tem de explicar sua situação a Rhiannon (sem parecer louco) e esperar que ela retribua o seu amor sendo ele um atleta musculoso, uma menina franzina, um garoto obeso ou uma moça idêntica à Beyoncé. Difícil.
É interessante acompanhar como Levithan aborda a questão do “eu” no romance. Na graphic novel autobiográfica Você é minha mãe?, Alison Bechdel mostra diferentes graus de amputação — até que lhe reste apenas a cabeça — nos quais ela ainda seria ela mesma; em obras como E o cérebro criou o homem, de António R. Damásio, e Muito além do nosso eu, de Miguel Nicolelis, os autores discorrem sobre como aquilo que nos torna humanos — muitas vezes apelidado de “alma” — estaria contido tão somente no cérebro. Em Todo dia, A declara: “Conhecimento é a única coisa que levo comigo quando vou embora”. Ele se diferencia da mente do corpo que ocupa, ainda que possa acessá-la; é um eu distinto.
Distinto, mas não totalmente livre. A experiência de A permite-lhe o maior grau de empatia possível, por sentir na pele os diferentes limites demarcados pelos corpos que habita:
Algumas pessoas acreditam que doenças mentais são uma questão de humor, um problema de personalidade. Acham que a depressão é simplesmente uma forma de tristeza, que o TOC é uma forma de repressão. Acham que a alma está doente, não o corpo. Acreditam que se trata de algo sobre o qual você tem alguma escolha.
Eu sei o quanto isto é errado.
Empatia
Creio que importa ressaltar a incompletude das descrições dos personagens: se algumas características são apontadas a fim de que tenhamos consciência do que há de especial em cada um dos adolescentes “visitados” por A (por exemplo, a obesidade de um ou a depressão de outro), outras são ocultadas a fim de que a imaginação dos leitores absorva o discurso da diversidade presente no livro. A Rhiannon que imaginei, por exemplo, era negra — ainda que a capa pareça sugerir uma garota loira. Artifício semelhante já havia sido utilizado por Levithan em The lover’s dictionary, cuja falta de marcação de gênero permite imaginar diferentes possibilidades de configuração do casal protagonista.
Pouco acima, usei a expressão “o maior grau de empatia possível”. A capacidade de se pôr no lugar do outro — indispensável a um personagem como A — lembrou-me de outro sujeito habituado a isso, aquele que talvez detenha o segundo lugar na questão da empatia, caso houvesse uma competição: o leitor. “Todo dia sou uma pessoa diferente. Eu sou eu, sei que sou eu, mas também sou outra pessoa.” Para isso, basta abrir um livro: você mantém sua individualidade, mas também se permite ver o mundo pelos olhos de outrem. Em um romance como Todo dia, com seus capítulos-contos, o leitor tem acesso a uma centelha de uma vida a cada virada do dia.
E não é isso a leitura, uma vida nova a cada dia?
NOTA
Em Li A culpa é das estrelas e… viciei no David Levithan, publicado no blog Posfácio, escrevo sobre Boy meets boy e The lover’s dictionary, de David Levithan.