Atos de repetição, de Valeska de Aguirre, é um livro de poemas que procura, por meio da repetição de atos poéticos e do mergulho no cotidiano, inscrever seu tempo, seus mitos, seus ritos e o eterno retorno do diferente. Esta perspectiva já é apresentada pela epígrafe de Silvio Ferraz: “… todo ato de composição é um ato de repetição do diferente, uma repetição que se faz diferença e não reiteração”.
A composição de cada poema e do conjunto do livro vive a tensão entre a necessidade de fixar em linguagem literária o indizível do dia-a-dia, o paradoxo do caos e da rotina, a premência de concentração num olhar, num detalhe e a dispersão em ruídos, sensações e sonhos. Discutem-se nesse espaço o momento contemporâneo e o papel da poesia, suas abrangências e, principalmente, suas limitações. Isto tudo é considerado com seriedade e encarado enquanto desafio. “Assim é. Embora eu o preferisse de outro jeito”, como afirma a segunda epígrafe (Eunice de Souza).
Antes de atentar para a estrutura e organização do livro, é importante a leitura de alguns poemas que problematizam o fazer poético e registram a precariedade desse processo de construção de sentidos, assim como a compulsiva necessidade desta busca, tantas vezes inglória. É assim que “a ordem é uma falha/ minha memória é feita de papéis/ espalhados como pistas”. No poema Caderno de escritos, por exemplo, a metalinguagem se inscreve como pista de leitura. Os atos de repetição da tradição de ordem dos ritos, na tentativa de fixação dos mitos de bem escrever, apesar de observados, são frágeis, não garantem produção fácil ou de qualidade, nem o domínio do tempo: “Faz três meses/ somente um poema foi escrito/ poema médio que foi descartado”. A ordem se instala e se desestrutura pelas ruínas do passado que, como a memória, espalham-se como pistas e estabelecem novas combinações e possibilidades na desordem de uma ordem falha, mas necessária e a única possível.
Em forma de poema ou prosa, a poesia se distribui em três partes que agrupam os textos poéticos: Assobio você, Pela janela adentro, 4 Histórias. Esta última, em forma de texto corrido, insinua poemas em prosa que só se diferenciam dos dois outros grupos pela maneira como são apresentados. Como as 4 Histórias poderiam ser fragmentadas em versos curtos, cada verso dos demais poemas não se prende a uma sintaxe marcada por pontuação ou por quebra de linha amarrada em um sentido exclusivo. Muitas são as vezes em que a descrição narrativa dos poemas assume a predominância e conta uma história que pode ser lida como prosa. A forma e o questionamento dos gêneros e da composição estão em questão. A repetição dos atos é marcada pela diferença, que estabelece o desvio de um olhar, de um ponto de vista.
Cada poema é uma pista, “há um rumor dizendo/ aquilo que poderia ser dito”, a delicadeza da pele e a fissura do “corte repetido de poros que a gilete passou e o dedo pressiona”. Além do processo da escrita tematizado e problematizado em cada linha, em cada verso, em cada fragmento, o corpo se inscreve como personagem principal em cena. “Roendo palavras pelas beiradas/ estica-se significados”, dedos, unhas, cutículas, bocas, estômago, olhos, sangue, pele e pêlos são potencializados em seus significados. “A manobra difícil é/ abrir fechar/ a boca manusear outras sílabas”, é nesse espaço entre abrir e fechar o manusear de outras sílabas, portas e possibilidades que se processam os atos de repetição sem “…intervalo exceto/ para a transpiração um gesto/ exausto de fome a/ partir de então retorno”. O corpo agita-se em permanente movimento sobre a “corda insustentável”, na busca impossível, mas legítima, de sustentação. “O corpo estica-se ao encontro”, num tempo onde o desencontro e a solidão dão a tônica e só “o alongamento das vértebras conversam”. Esse corpo, carregado de pistas e suas sensualidades, é atravessado pelos signos de cimento e concreto do cotidiano, ruas, pedras, ventos. Ele atravessa a poesia e os entre espaços de caixas, e portas que se abrem e fecham numa entrega arriscada.
Por fim, mais que uma bela escrita, o livro é um sedutor convite à leitura como ato de repetição, um eterno retorno ao mesmo, mastigado por um “canino sem ponta/ em constante triturar/ de camadas arcaicas”, transformado pela diferença de perspectiva, sempre em novas descobertas.