Depois de uma viagem de carro, de Ouro Preto a Divinópolis, cheguei à casa de Adélia Prado que, como eu, mora até hoje na cidade em que nasceu. Somos mulheres de Minas, forjadas nas entranhas dessas montanhas. Na agradável sala de jantar, com móveis escuros de madeira como os da casa da minha avó, ela e o marido, Zé, me esperavam para comer um delicioso frango com quiabo, um dos meus pratos preferidos. Depois do almoço, dei um passeio pelo quintal, em companhia do Zé. Ele me contou o nome das plantas e árvores e me mostrou, sobre um tabuleiro, as bananinhas passas que estava fazendo, virando-as, de vez em quando, para dourá-las ao sol. Mas seu tempo era ocupado também com tarefas menos agradáveis: ele auxiliava Adélia a organizar e atender aos diversos convites que recebia neste ano de 2013. Isso, muito antes que ela recebesse o prêmio Camões, agora em 2024, que a tornou conhecida em todo o mundo lusófono. “Ela tem a minha idade, 88 anos!”, murmurou minha mãe, espantada, ao ver o anúncio do prêmio na TV. Não me surpreendi, em 2016, participei do júri do prêmio Minas, concedido a ela por unanimidade, pelo conjunto de sua obra.
Passamos a sesta daquela tarde, eu e Adélia Prado, relendo os poemas que compuseram a antologia publicada pela BestBolso. Adélia me explicou que havia retirado muitos deles de Bagagem, seu livro preferido. No grupo Record, eu era sua editora, e tive a honra de publicar Miserere, um de seus mais belos livros, de rara melancolia. Em 2017, ela me concedeu a longa entrevista que abre a série do programa (In) Confidências, na TV UFOP, da Universidade Federal de Ouro Preto, atualmente em exibições semanais pelo Canal Futura.
Ao reler sua obra para escrever esse texto, há momentos em que quase ouço sua voz, então, deixo que ela mesma se apresente:
Não sou matrona, mãe dos gracos, Cornélia,
Sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
E atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz para cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.
(Bagagem, 1976).
No poema, a narradora afirma sua diferença de Cornélia, a culta dama romana que, segundo a lenda, teria apresentado seus filhos Tibério e Graco a uma matrona que ostentava suas joias, dizendo: “Eis as minhas joias!”. O eu lírico de Adélia se apresenta como “mulher do povo” e “mãe de filhos” que executa tarefas prosaicas como preparar a própria comida que come e atirar os restos ao cachorro. O paralelo com a mãe dos gracos, porém, ressalta a ideia de que o eu lírico é mãe extremosa, dedicada aos filhos. Mas a poeta se parece com Cornélia também por sua cultura: Adélia foi professora e estudou filosofia, o que a torna capaz de falas arrebatadoras que deixavam toda assistência em silêncio, quando ainda fazia aparições públicas.
Lembro-me de refletir, ao conversar com Adélia Prado, que ela é tão fascinante em pessoa quanto em sua escrita. Tem um olhar impregnado de humor e poesia sobre as coisas do mundo e, muitas vezes, faz as pessoas ao seu redor rirem, com suas observações argutas e surpreendentes. Tanto mais sedutora, quanto menos maquiada, os olhos brilhantes na moldura dos cabelos grisalhos. Ao fim de um almoço, quando relatei problemas que vinha atravessando, Adélia e sua agente Carminha me levaram para um canto do restaurante Bené da Flauta, localizado ao lado da Igreja São Francisco de Assis, santo de devoção para a poeta. Com um raminho colhido por ali, Adélia me benzeu, aspergindo água em minha cabeça e murmurando orações misteriosas. Em Ouro Preto, ela ia às missas e acompanhava procissões religiosas, mas soltava de vez em quando comentários e suspiros de uma sensualidade brejeira, encantadora. Esse contraste entre o profano e o sagrado, a carne e o espírito[1], pulsa também em seus poemas:
(…) a parte que em mim não pensa e vai da cintura aos pés
reage em vagas excêntricas,
vagas de doce quentura
de um vulcão que fosse ameno,
me põe inocente e ofertada,
madura pra olfato e dentes,
em carne de amor, a fruta.
(O coração disparado,1984)
Densa e reflexiva
Com uma linguagem coloquial, descreve situações cotidiano de uma forma acessível, porém, simultaneamente densa e reflexiva. Em seus poemas, por vezes, mimetiza falares das pessoas de seu mundo, trazendo a oralidade para seus textos com uma ternura e leve ironia que lembram os poemas de Manuel Bandeira. Ela revela o inaudito que se encontra para além da aparência de simplicidade do dia a dia, como no poema que, não por acaso, se chama Epifania:
Você conversa com uma tia, num quarto.
Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:
“assim também, Deus me livre”.
De repente acontece o tempo se mostrando,
espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos.
Uma destas coisas vai acontecer:
um cachorro late,
um menino chora ou grita,
ou alguém chama do interior da casa:
“o café está pronto”.
Aí, então, o gerúndio se recolhe
e você recomeça a existir.
(A sarça ardente I. In: Bagagem, 1976)
Na entrevista em Ouro Preto, Adélia me contou que a poesia a habitava desde sempre, ela se admirava com o mundo muito antes de saber que essa sensação podia ser traduzida em poema e citou como exemplo a experiência descrita no belíssimo Registro:
Visíveis no facho de ouro jorrado porta adentro,
mosquitinhos, grãos maiores de pó.
A mãe no fogão atiça as brasas
e acende na menina o nunca mais apagado da memória:
uma vez banqueteando-se, comeu feijão com arroz
mais um facho de luz. Com toda fome.
(A sarça ardente I. In: Bagagem, 1976)
Esse facho de luz era a poesia, que se derrama sobre essa cena simples e comovente, que ficaria na memória da poeta para sempre.
Esses poemas-lembranças, nostálgicos e profundos, que se encontram em toda sua obra, são os meus preferidos, sobretudo na parte de Bagagem que ela chama “sarça ardente”, título que aparece nos versos finais do dolorido As mortes sucessivas, em que Adélia fala da morte da irmã, da mãe e do pai: “e as moitas onde existo/ são pura sarça ardente da memória”. (A sarça ardente II). Adélia nomeou A sarça ardente I a parte de Bagagem com os poemas sobre sua mãe, na parte II, estão os poemas sobre seu pai. Aprendo na Wikipedia que a sarça ardente é um arbusto descrito na Bíblia no livro do Êxodo, localizado no monte Horeb. [3:1–4:17]. O arbusto estava em chamas, mas não era consumido pelo fogo, o que intrigou Moisés.[2] “Sarça ardente”, no livro de Adélia Prado, é a saudade dos entes queridos, que queima continuamente, mas não se consome, não termina nunca. É a presença flamejante dos que estão ausentes. Dentre os textos de Adélia Prado que tanto falam à minha sensibilidade, sobretudo nos poemas reunidos nas duas partes nomeadas “sarça ardente”, reencontro minhas referências, esse cotidiano das pequenas cidades de Minas permeadas por ritos religiosos que desde a infância me fascinam. Como Adélia Prado, “Eu sou de barro e oca,/ Eu sou barroca” (Gênero. In: O coração disparado,1984).
A poeta me surpreende lançando nova luz sobre as tradições de Minas. Descreve com poesia e humor cenas que eu mesma vivi quando criança, nas coroações de Nossa Senhora que acontecem em maio:
Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava: “canta alto, espevita as palavras bem”. Eu levantava voo rua acima.
(A sarça ardente I. In: Bagagem, 1976)
O título desse poema, Verossímil, é uma alusão bem-humorada à ideia de que esses adoráveis anjinhos são tão vaporosos e leves, que, de uma hora para outra, podem acabar voando…
Teatro
Nos encontrávamos de tempos em tempos, Adélia Prado participou três vezes do Fórum das Letras, na primeira, acompanhada pelo simpático esposo. Mediei palestra dela com o tema Sentimento do mundo: qual o lugar da poesia no mundo em que vivemos?, na abertura do evento de 2017. Generosa e disponível, Adélia protagonizou uma leitura dramática de seus próprios poemas, interagindo com o grupo Madalenas, de alunas da universidade. Participou do ensaio dirigido pela diretora italiana Alessandra Vannucci. Adélia sentia-se muito à vontade no teatro, chegou a escrever peças com temas religiosos e dirigiu um grupo amador em uma montagem do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.
A edição do Fórum de 2017 homenageava Carlos Drummond de Andrade e, feliz em prestar homenagem ao poeta, Adélia contou que, em 1976, enviou carta e manuscrito para Affonso Romano de Sant’Anna que, admirado, acabou por repassá-lo a Drummond.[3] Como Affonso, Drummond assinava coluna literária no Jornal do Brasil, onde fez um célebre registro: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus…” (…) “Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis.”[4] Adélia Prado tinha 40 anos e era mãe de cinco filhos quando o editor Pedro Paulo de Sena Madureira, estimulado pela recomendação de Drummond, publicou Bagagem, seu primeiro livro, pela Imago.
Em Bagagem, Adélia Prado desafia Drummond, como uma menestrel repentista, no poema Agora, o José, de que reproduzo apenas um trecho, em que ela cita, explicitamente um verso do poeta:
“No meio do caminho tinha uma pedra”
“Tu és pedra e sobre esta pedra”.
A pedra, ó José, a pedra.
Resiste, ó José. Deita, José,
dorme com tua mulher,
gira a aldraba de ferro pesadíssima.
O reino do céu é semelhante a um homem
como você, José.
O desesperançado José, de Drummond, em uma noite fria, percebe que a festa da vida acabou, e o deixou sem prazeres, sem mulher, sem utopia.
(…) com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
(Poesias, 1942).
É como se a poeta mineira mostrasse a José que nem tudo está perdido, ele pode girar a aldraba de ferro desta porta e não apenas o céu estará do outro lado, Minas também, basta um olhar capaz de revelar a magia de suas inúmeras dobras. É o que ela, Adélia, é capaz de realizar, sem temor de se mostrar à altura do poeta maior. Drummond compreendeu que ela tinha ousadia e profundidade para proclamar que a festa não acabou, estava só começando.
Adélia dialoga também com o Poema de sete faces, um dos mais conhecidos de Carlos Drummond de Andrade:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.
(Alguma poesia, 1930).
Confrontando-o, Adélia produz uma resposta à sua altura, mas a partir da condição de seu gênero:
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
(Bagagem, 1976)
Experiências femininas
Nesse poema, como em vários outros, ela examina a complexidade das experiências femininas, reconhecendo os desafios que a mulher enfrenta, seus subterfúgios, mas também celebra sua capacidade de adaptação e resiliência. O verso final revela a essência do poema — a força e flexibilidade das mulheres, destinadas a carregar uma bandeira que tanto poderia ser o fardo das expectativas sociais quanto a responsabilidade de expressar sua verdade através da poesia.
E é o que fez Adélia. Depois de Bagagem, publicou O coração disparado (1978), que ganhou o Prêmio Jabuti, no qual sobressaem a religiosidade e as vivências cotidianas, principais características de sua obra. Em seguida, lançou Terra de Santa Cruz (1981), a que se seguiram vários livros. Mas sua obra não se limita à poesia, em 1979, estreou na prosa com Solte os cachorros e passou a escrever também romances, contos e sensíveis histórias para crianças. Em 1987, Fernanda Montenegro levou aos palcos os textos de Adélia Prado no espetáculo Dona Doida: um interlúdio, com direção de Naum Alves de Souza, o que tornou a poeta famosa em todo o país. Hoje é reconhecida como uma das escritoras mais importantes da literatura brasileira, recebeu diversos prêmios ao longo de sua carreira, seus livros veem sendo cada vez mais traduzidos e publicados no exterior e multiplicam-se os trabalhos acadêmicos sobre sua obra. Seus poemas parecem feitos para o teatro: no Fórum das Letras de 2017, a poeta e performer Elisa Lucinda encenou, juntamente com Jeovanna Vieira, o eletrizante espetáculo A paixão segundo Adélia Prado, que circulou bastante pelo Brasil.
Adélia Prado foi professora de religião e é leitora contumaz da Bíblia, citada com frequência em seus livros, mas, curiosamente, declara que suas maiores influências foram autores de seu tempo, como Drummond, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. O crítico Augusto Massi, no prefácio de Poesia reunida (1991), fez uma interpretação muito interessante dos movimentos que compõem a obra de Adélia. No primeiro, representado por seus três primeiros livros, Bagagem (1976), O coração disparado (1978) e Terra de Santa Cruz (1981), ela teria vivido “uma espécie de pulsão criativa, abertura das comportas, passagem da potência ao ato”. Esse parece ter sido o período mais fulgurante e criativo de Adélia Prado, em que ela abandona o magistério, se dedica ao teatro e faz incursões também na prosa. O segundo movimento acontece depois de seis anos sem publicar poesia, quando Adélia lança O pelicano (1987) e A faca no peito (1988), marcados pelos poemas dedicados a uma figura masculina chamada “Jonathan”, que aparecera rapidamente antes, em O coração disparado. Augusto Massi sugere que esse personagem, a quem Adélia dedica poemas de amor, seria Y-honathan que, em hebraico, quer dizer “a dádiva de Jeová ou de Deus”. Intrigada, tentei perguntar quem é Jonathan para a própria Adélia Prado, ela disse que “Jonathan é isso, fato poético, desde sempre gerado. Hora em que tudo mais desce à desimportância”. Sua filha Ana Prado me mandou uma mensagem, completando: “Olha, na verdade vou te dar a minha explicação de Jonathan. É um arquétipo. Uma amálgama, que ora é o namorado, o amado, Jesus, o Outro, ora é o si mesmo, a fonte primeva”. Nos poemas dessa segunda fase, porém, para Massi, vez ou outra aparecem pulsões negativas, de ira ou raiva que “prenunciavam um bloqueio criativo e crise de depressão que acometeriam a escritora entre 1988 e 1994”. Quando lhe perguntei sobre essas crises criativas, Adélia me disse que são a desolação, quando a pessoa se pergunta pelo sentido da vida. É o que São João da Cruz chama “a noite escura da alma”, um sofrimento necessário, “como se estivesse passando um arado na terra, tirando os tocos, as raízes, que têm que sair para que você faça o jardim, ou a horta (…) Eu começo angustiada, deprimida, mas na hora que eu começo a escrever, eu já estou tirando o pé da lama…”[5]
Segundo Augusto Massi, Oráculos de maio (1999), A duração do dia (2010) e Miserere (2013) abririam “um novo ciclo criativo”, caracterizado por “uma consciência artística mais depurada”, uma maturidade sem pedantismo, em um “lirismo meditativo que parece responder a uma necessidade expressiva próxima do monólogo dramático ou de uma voz interior”. Para Massi, Miserere se destaca do conjunto, pois “é um livro magro, afiado, silencioso”.[6]
Nas missas cantadas em latim, nas Igrejas de Ouro Preto, frequentemente ouço a expressão “Miserere noobis!”, acompanhada do movimento do turíbulo, que espalha incenso por toda a igreja. “Misericórdia, tende piedade de nós”, canta o padre, dirigindo-se, claro, a Deus. Vem dessa expressão o título de Miserere. Nele, o eu lírico se defronta com a precariedade da existência humana, sem bondade e sem concessões: “O verdadeiro é sujo/ destinadamente sujo,/ não são gentilezas as doçuras de Deus.” E termina esse poema, que chamou ironicamente de Branca de Neve, com mais uma autodescrição:
Sou curva, mista e quebrada,
sou humana. Como o doido,
bato a cabeça só pra gozar a delícia
de ver a dor sumir quando sossego.
O poema fala da fragilidade humana, das nossas dúvidas e imperfeições, desse “bater a cabeça” que nos caracteriza, nossa teimosia em tomar caminhos que só levam ao sofrimento e à dor. Como Adélia lembra, em outro poema que se chama Avós, referindo-se à velhice:
Não temos proteção para o que foi vivido,
insônias, esperas de trem, de notícias,
pessoas que se atrasaram sem aviso,
desgosto pela comida esfriando na mesa posta.
Contra todo artifício, nosso olhar nos revela.
Não perturbe inocentes, pois não há perdas
e, tal qual o novo,
o velho também é mistério.
Do mistério insondável da existência, ninguém escapa, velhos ou novos (as crianças a quem ela parece se referir nesse poema), mas é no corpo que mora o espírito, é ali que pulsa a possibilidade de transcendência.
Essa ideia é desenvolvida no tocante Encarnação, de Miserere:
Sem quebrantar-me,
forte doçura até os ossos me toma.
Não há estridência em mim.
Fibrila o que mais próximo
posso chamar silêncio,
ainda assim palavra,
uma interjeição,
o murmúrio adivinhado
de um rio subterrâneo
no útero da mãe quando ela estava feliz
e o meu sangue era o dela
e sua respiração
a minha própria vida.
Quando o espírito vem
é no corpo
que sua língua de fogo quer repouso.
O sagrado
Nada pode haver de mais transcendente do que essa comunhão, no útero, com o sangue e a respiração da mãe, momento em que o espírito aflora. Mais de um intérprete disse que Miserere é uma oração e há momentos em que realmente nesse livro a poesia se aproxima do sagrado, quase com efeito de palavra revelada: “Ao minuto de gozo do que chamamos Deus/ Fazer silêncio ainda é ruído.” Mas é na vivência do cotidiano que a metafísica fulgura, é na transitoriedade que o eterno se mostra, como no esplêndido poema Qualquer coisa que brilhe, de que capturei apenas um trecho:
São eternos esta oficina mecânica,
estes carros, a luz branca do sol.
Neste momento, especialmente neste,
a morte não ameaça, pois não existe.
Ainda que se mova, tudo é parado e vive,
num mundo bom onde se come errado,
delícia de marmitas de carboidrato e torresmos.
Como gosto disso, meu deus!
Que lugar perfeito!
Ainda que volta e meia alguém morra, é tudo muito eterno,
Só choramos por sermos condizentes.
Seu livro de prosa de que mais gosto é Cacos para um vitral, de 1980, no qual, em sua prosa poética, ela desenvolve a história da protagonista Glória, seu alter ego, dona de casa, mãe e professora, religiosa e sensual, até escatológica. Com passagens tocantes como esta:
Aquele dia o menino conversava comigo. Ele tinha o hálito carregado. Eu, sua mãe, não fui capaz de suportar a pequenina miséria de sua garganta inflamada, como qualquer boa mãe suporta. “Que hálito ruim, que hálito ruim o seu.” De tal jeito falei que o menino apunhalado saiu de perto de mim. Foi pro quintal e ficou lá sentado, mudo como um homem grande. Um menino de sete anos! Sofri depois horrivelmente, querendo gerar ele de novo, pra nunca mais errar.
Contudo, é na poesia que Adélia Prado alcança sua voltagem mais alta, criando uma ponte entre o mundano e o sublime. É o que acontece em Casamento, seu poema mais conhecido:
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram
ele fala coisas como “este foi difícil”,
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
(Terra de Santa Cruz, 1981)
Pequenas intimidades
Esse poema despretensioso é uma celebração das pequenas intimidades e cumplicidades de um casal que se ama. A narradora se deleita nos momentos compartilhados com o marido, mostrando que a verdadeira conexão está nos atos simples e corriqueiros. A metáfora do peixe que “prateou no ar dando rabanadas”, movimento descrito no gesto do marido, traz à cena uma camada de delicadeza e nostalgia. O poema conclui com a imagem dos peixes prateados na travessa, símbolo da ressurreição necessária para a contínua renovação do amor e do compromisso.
Em sua obra, a transcendência da poesia convive com as coisas prosaicas e ordinárias da existência. No poema Fluência, ela fala de seus temas:
Eu fiz um livro, mas oh, meu Deus,
não perdi a poesia.
Hoje depois da festa,
quando me levantei para fazer café,
uma densa neblina acinzentava os pastos,
as casas, as pessoas com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida tecia seu curso.
Persistindo a necessidade dos relógios,
dos descongestionamentos nasais.
Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
com os pardais, os urinóis pela metade,
o antigo e intenso desejar de um verso.
O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
Como antes, graças a Deus.
(O coração disparado,1978)
Com ironia, em contraposição à poesia mais racionalizada, fruto de desmesurado esforço, ela reflete sobre a origem da sua poesia, em A formalística:
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas já que estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Daqui a pouco começam a fosforescer coisas no mato.
A serva de Deus sai de sua cela à noite
e caminha na estrada,
passeia porque Deus quis passear
e ela caminha.
O jovem poeta,
fedendo a suicídio e glória,
rouba de todos nós e nem assina:
“Deus é impecável”.
As rãs pulam sobressaltadas
e o pelejador não entende,
quer escrever as coisas com as palavras.
(A faca no peito, 1988)
No poema, ela faz uma crítica sutil e irônica ao poeta intelectual e cerebral, que busca a precisão e o controle sobre a linguagem, mas acaba produzindo textos artificiais, sem vida. A metáfora do bisturi sugere que ele busca dissecar as palavras, em um ato cirúrgico e calculado, enquanto “a serva de Deus” se permite a leveza dos passeios noturnos, para sentir o “fosforescer das coisas”. Nas entrelinhas do poema, ela defende uma criação mais intuitiva e espontânea, atenta às rãs pulando no mato, que o poeta “pelejador” jamais entenderia, porque recusa essa fruição da natureza, quer “escrever as coisas com as palavras”. O jovem poeta que, “fedendo a suicídio e glória”, rouba de todos sem assinar, também é criticável porque só lhe interessa o reconhecimento e não a autenticidade que a verdadeira poesia exige. Mas o eu lírico de Adélia também pode se deixar fascinar por sua própria poesia:
Pus um ponto final no poema
e comecei a lambê-lo a ponto de devorá-lo.
Pensamentos estranhos me tomaram:
numa bandeja de prata
uma comida de areia,
um livro com meu nome
sem uma palavra minha.
A comida de areia na bandeja de prata é uma metáfora da aridez da vaidade dessa autora que sonha um borgiano livro com seu nome, sem nada escrito.
No poema A face de Deus é vespas, Adélia fala de sua procura pelo mistério divino dos seres da natureza:
Eu não sei quem sou.
Sem me sentir banida experimento degredo.
Mas não recuso os marimbondos armando suas caixas
porque são alegres como posso ser,
são dádivas,
mistérios cuja resposta agora é só uma luz,
a pacífica luz das coisas instintivas.
(Terra de Santa Cruz, 1981)
É dessa “pacífica luz das coisas instintivas”, que se faz a matéria da poesia, para Adélia. O comovente Ensinamento, dedicado à mãe que ela perdeu quando tinha apenas 14 anos, parece apontar na mesma direção para a importância do sentimento, em uma sociedade que atribui mais valor ao conhecimento e à intelectualidade:
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
(A sarça ardente I. In: Bagagem, 1976)
O amor não pode ser verbalizado, ele transparece nos atos silenciosos de cuidado e atenção da mãe para com o pai, as palavras parecem insuficientes ou supérfluas, diante da essência do vivido.
Adélia Prado sabe fruir poeticamente de tudo que vive, das experiências mais complexas aos momentos mais ínfimos, mais desimportantes, para usar uma palavra de Manoel de Barros que caberia bem à poesia da autora mineira. Ela transforma em literatura as histórias que viu e ouviu, as paisagens geográficas e afetivas, as memórias de infância. Sua obra tão variada e rica oferece inúmeras leituras, vertentes e recortes de interpretação, é preciso ler seus livros para conhecê-la. A Record fez uma edição primorosa, em box, dos seus melhores livros de poemas, apresentados por um belo ensaio da poeta Elisa Lucinda, com projeto gráfico de Luciana Facchini e ilustrações de Rafaela Pascotto. As capas lembram a estampa de uma toalha de mesa de Minas, em que os poemas de Adélia Prado são servidos como deliciosa iguaria.
Notas
[1] Na entrevista do programa (In) Confidências, Adélia disse que sua obra é erótica e religiosa, porque “a religião é carnal, corpo e sangue de Cristo…” Porém, “aceitar o corpo é um ato de humildade profunda”, “eu quero encontrar esse apaziguamento entre alma e corpo.” Para ela, só se pode escrever poesia com o corpo.
[2] Dentro do arbusto estava o anjo de Deus, que indicou o caminho para que Moisés levasse os israelitas para fora do Egito, em direção a Canaã. A madeira da sarça, que poderia ser a acácia, teria servido para construir o mobiliário sagrado do tabernáculo, inclusive a Arca da Aliança. Fonte: Wikipedia. Verbete: Sarça ardente.
[3] Affonso conta esse episódio no prefácio intitulado Adélia, a mulher, o corpo e a poesia, que escreveu para a primeira edição de O coração disparado, de Adélia Prado (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978).
[4] V. Carlos Drummond de Andrade. De animais, santo e gente. Jornal do Brasil, 9 de outubro de 1975.
[5] Entrevista que ela me concedeu em Ouro Preto, em 2017, gravada pela TV UFOP.
[6] Augusto Massi. Móbile para Adélia. In: Adélia Prado. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015. Cito, entre aspas, diversas passagens desse excelente prefácio.