O esteta do fracasso

Romance e peça teatral de Samuel Beckett enfatizam a preocupação do autor com os impasses da narrativa
Samuel Beckett por Robson Vilalba
01/07/2011

Escritor plural, cuja obra tem lugar cativo entre as mais importantes do século 20, Samuel Beckett (1906-1989) parece finalmente receber no Brasil uma atenção condizente com a envergadura de sua arte. A julgar pelas recentes e cuidadosas traduções de peças e romances e pelos estudos que ganham força em âmbito universitário, o alcance brasileiro em torno da obra do irlandês de Foxrock parece não mais se restringir às esporádicas encenações de Esperando Godot.

No presente artigo, faremos uma incursão pela obra dramática — tendo em vista a recente publicação pela Cosac Naify da peça Dias felizes, terceira da coleção organizada e traduzida por Fábio de Souza Andrade — e pela trilogia de romances do pós-guerra — motivada em especial pela nova tradução de O inominável, empreendida por Ana Helena Souza e publicada há pouco mais de um ano pela editora Globo.

Circularidade aterradora
“Mais um dia celestial.” Certamente esta não é uma fala plausível quando dita por uma mulher semi-enterrada no centro de uma colina, sob o sol escaldante de um deserto. A julgar pelo título da peça, é com base no impacto mordaz deste paradoxo que Samuel Beckett construiu a referida cena, a primeira de Dias felizes. Quando da estréia, em setembro de 1961, aberturas desta natureza já não eram novidade na dramaturgia beckettiana — basta evocar os vagabundos Vladimir e Estragon sentados à sombra de uma velha árvore e à espera de Godot, ou o cego paralítico Hamm e o miserável Clov encerrados em um interior cinzento no início de Fim de partida.

Todavia, Dias felizes trouxe algo marcadamente novo para sua obra: Winnie, a primeira protagonista feminina de Beckett. Quais a implicações desta escolha? No ótimo prefácio à recente edição, intitulado A felicidade desidratada, o tradutor e professor Fábio de Souza Andrade amplia o escopo em torno deste aspecto e nos mostra que — para além de uma simples alegoria da prisão e submissão da mulher ao casamento burguês — a imobilidade de Winnie dialoga com episódios mitológicos, entre eles, o estatismo de Penélope em seu lar, à espera do retorno do errante Odisseu. Afirma ainda o professor:

O que impede o vôo de Winnie vai muito além da possessividade e da castração machistas. (…) O significado de sua imobilidade progressiva, de sua memória esmorecente e de sua razão tortuosa é de outra ordem, mais vasta, que, mesmo expressa em termos e aflições femininas, atravessa a barreira de gêneros.

Lancemos então um olhar mais detido sobre Winnie. Otimista incorrigível, essa mulher de meia-idade faz de palavras e rememorações, bem como do apego a objetos que tem à mão — uma bolsa preta, um espelho, uma sombrinha —, os meios de escapar àquela situação desoladora. Às tentativas de diálogo com o marido Willie, este responde com indiferença; o descompasso entre seus risos acentua a precariedade da comunicação, uma vez que as motivações nunca são as mesmas. Vez por outra a memória involuntária da personagem deflagra espasmos de lucidez, mas ela não se deixa abater: “É, parece que aconteceu alguma coisa, alguma coisa parece ter acontecido, e não aconteceu nada, nada de nada (…) A sombrinha estará aqui amanhã de novo, sobre a terra, me ajudando a passar o dia”. Tal otimismo, carregado obviamente do sarcasmo e da ironia tão caros a Beckett, remonta-nos aos vagabundos Vladimir e Estragon: “Diga eu estou contente”, “O que é que a gente faz, agora que se está contente?”. O diálogo com demais obras beckettianas não se esgota por aí. A exemplo do que ocorre em peças como Esperando Godot e Fim de partida e/ou em romances como Malone morre e Como é, as tentativas mal sucedidas de Winnie ao narrar histórias ou ensaiar alusões literárias servem de válvula de escape para personagens presos a uma realidade irremissível. No entanto, como bem observou Adorno no célebre ensaio dedicado à Fim de partida, tais alusões não passam de cacos de cultura ocidental que em nada podem alterar o horror histórico a que estes seres estão submetidos.

O que já se mostrava débil, revela-se ainda mais aterrador no segundo ato da peça. Enterrada desta vez até o pescoço, Winnie não dispõe do contato tátil com os objetos que antes tinha à mão nem tampouco consegue inclinar o pescoço na direção do marido. Ainda assim, a personagem se mantém otimista — “Salve, sagrada luz. (…) Alguém está olhando para mim, ainda (…) Isso é que eu acho maravilhoso” —, embora notemos alguns lampejos de lucidez a sublinhar o estado devastador: “Antes… agora… que dureza para o espírito. (Pausa) Ter sido sempre o que sou — e tão diferente daquela que eu era”. Serena, resta a Winnie cantarolar em voz baixa A viúva alegre, valsa de Franz Léhar cujos versos reiteram o otimismo incorrigível da personagem e anunciam aos olhos do espectador a força de uma circularidade irremediável.

A impossibilidade de narrar
Com é sabido, Beckett não limitou sua arte de vanguarda aos palcos. Dadas a coerência e a radicalidade com que implodiu os pilares da narrativa canônica, sobretudo o romance clássico do século 19, a prosa beckettiana certamente figura entre as mais representativas do século 20. Linguagem destroçada e falência do narrador — para citar apenas dois dos procedimentos caros à sua prosa — sublinham a miséria, a solidão e a impotência humanas em um mundo reduzido a frangalhos (lembremos que Beckett foi membro da resistência francesa e, portanto, presenciou os horrores da Segunda Guerra Mundial). Trata-se, em suma, de “encontrar uma forma que acomode a bagunça” (conforme afirmou em entrevista), princípio ao qual o autor de Godot manteve-se fiel até o fim da vida.

No que se refere aos romances, esse percurso é observado pelo abandono paulatino das relações espaço-temporais e do recurso da voz em terceira pessoa, passando pela adoção da primeira pessoa até culminar na “última pessoa narrativa” de O inominável, derradeiro romance da célebre trilogia do pós-guerra sobre o qual falaremos mais adiante. Obras como More pricks than kicks e Murphy já confrontavam o padrão realista do século 19, ainda que se restringissem, basicamente, ao âmbito da paródia. É contudo no período pós-segunda guerra que Beckett eleva o impasse da narrativa à radicalidade. Que o diga a tríade de romances composta por Molloy, Malone morre e O inominável, na qual o irlandês de Foxrock mina de vez a objetividade realista e a soberania do narrador pensante ao subverter princípios como coerência, linearidade temporal e distanciamento entre narrador e personagem.

Façamos uma incursão pela trilogia. O primeiro dos romances traz como protagonista Molloy, indivíduo solitário cuja crise serve de base para a composição de duas narrativas agônicas, ambas em primeira pessoa. De início, encontramos um Molloy velho e doente a escrever suas memórias enquanto permanece confinado no quarto que pertencera à mãe. Embora afirme escrever sob encomenda, logo notamos sua subserviência a uma fabulação interminável suscitada por alguma voz superior cuja origem é incerta. O resultado é uma narrativa confusa e fraturada. Desta maneira, a armadilha está pronta: movido pela ânsia em desvendar o enigma que ronda a vida de Molloy, o leitor chega a tomar conhecimento de circunstâncias anteriores à chegada do herói ao quarto, mas elas em nada contribuem para esclarecer o estado de perplexidade vivenciado pelo personagem. A segunda parte é narrada por Moran, a quem fora confiada a missão de encontrar Molloy. Na companhia do filho, ele se entrega à tarefa, mas logo se perde em meio a contratempos. Debilitado fisicamente, Moran volta para casa, depara-se com um cenário de ruínas e recebe uma ordem para escrever um relato acerca do fracasso de sua empreitada. Eis aí o nó central do romance, pois o fim da segunda parte remonta exatamente ao início da primeira. Seria então Moran o Molloy do passado? É com base nessa e em outras dúvidas suscitadas pela leitura do romance, que Beckett consegue confrontar a representação verossímil da narrativa tradicional. Qual seria o próximo passo? Passemos então a Malone morre.

Tal qual Molloy, o velho Malone está confinado em seu quarto. Ansioso para que a morte finalmente dê cabo à sua agonia, o velho distrai-se ao inventar personagens e histórias sobre os quais não exerce domínio. À trajetória do vagabundo Sapo (Saposcat), o narrador Malone mistura involuntariamente os restos de sua memória até chegar o momento em que as fronteiras tornam-se imprecisas. A essa fusão mesclam-se ainda descrições esparsas de objetos pessoais — resquícios de uma identidade destruída. A confusão se estende à nova versão de Sapo, o personagem Macmann, que, a exemplo de seu autor, está confinado. Novamente insatisfeito por não ter controle sobre a narrativa, Malone refaz passagens, quebra nexos sintáticos, instaurando um verdadeiro caos. Seu desejo maior é confortar-se na alteridade, distanciar-se dos personagens que narra, porém lapsos de consciência e vozes internas incontroláveis tomam-no de assalto. Em um movimento ainda maior, o da obra, Malone não somente é vítima de sua impotência narrativa como ainda é refém do próprio autor que o criou. Não há, portanto, sequer as bases sólidas que lhe permitam dizer “eu”: “Minha história está terminada, ainda vou estar vivendo. Falta que promete. É o fim do mim. Não vou mais dizer eu”.

“Onde agora? Quando agora? Quem agora?” Em face do acentuado impasse a que é submetida a narrativa em Malone morre, não soaria estranho se algum leitor, ao cabo da leitura do livro, se fizesse as três referidas perguntas na esperança de que o autor talvez as respondesse num próximo romance. Todavia, para a frustração desse leitor hipotético, o trecho citado não é senão a abertura do último romance da trilogia. Fiel à sua radicalidade, Beckett potencializa ainda mais o impasse, a começar pela imprecisão em delimitar quem fala. Embora haja um “eu”, nada se pode entrever acerca de quem ou o que ele possa representar; do pouco que se pode depreender, nota-se uma voz oriunda de algum lugar da linguagem, a escamotear os mínimos resquícios narrativos outrora presentes em Molloy e Malone. Não há precisão de tempo, espaço ou personagens. O corpo perde sua materialidade, uma vez que a voz impessoal habita algo obscuro a que não se pode chamar propriamente de corpo. Na impossibilidade de dizer o que é e de ancorar-se minimamente na mimese, na ficção ou no relato, a voz afirma-se tão somente por sua negatividade, atitude que implica um movimento incessante em torno da narração.

Àquela altura, a prosa beckettiana atingia seu grau máximo de impasse; crise esta traduzida pelo autor como “a expressão de que não há nada a expressar, nada com que se expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliada à obrigação de expressar”. Movido, contudo, pelo desejo de “falhar melhor”, Beckett não sucumbiria ao silêncio.

O inominável
Samuel Beckett
Trad.: Ana Helena Souza
Globo
208 págs.
Dias felizes
Samuel Beckett
Trad.: Fábio de Souza Andrade
Cosac Naify
136 págs.
Samuel Beckett
Nasceu em 1906. Foi dramaturgo, romancista e poeta. Escreveu peças como Fim de partida e Esperando Godot e romances como Molloy, Malone morre e O inominável, obras fundamentais para a reinvenção arte no século 20. Em 1969, conquistou o Prêmio Nobel. Morreu em 1989.
Wilker Sousa

É escritor, jornalista e mestre em Teoria Literária pela USP. Em 2016, foi premiado no concurso Paulo Leminski de contos. É autor de as digitais das sombras (Patuá). Como jornalista, foi editor de literatura da revista Cult.

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