Ocorre, com bastante frequência, que diferentes obras de um escritor insistam sobre o mesmo tema e também compartilhem, além do estilo, ambientação e tipologia de personagens. De fato, não são poucos os autores cujos livros giram incessantemente em torno de suas obsessões, de seus “fanatismos”, reescrevendo sempre a mesma história tantas vezes lida. Nada há de mal nisso, contanto que se domine a arte da repetição, um saber difícil de apreender, já que cada escritor se repete à sua própria maneira e também porque, por mais paradoxal que possa parecer, nenhuma repetição é igual à outra.
Dois títulos de Joaquim Arena, escritor luso-cabo-verdiano, lançados recentemente no Brasil, nos oferecem a instigante oportunidade de observar de perto um exercício sutil e quase labiríntico de repetições, muito embora se trate de obras pertencentes, em princípio, a gêneros distintos. A primeira a ancorar em terras brasileiras foi o “romance histórico” Siríaco e Mister Charles, na esteira de sua conquista do Prêmio Oceanos, ao qual se soma agora uma obra anterior: Debaixo da nossa pele, espécie de livro-reportagem com pinceladas de história social das comunidades negras instaladas no Vale do Sado, em Portugal, a partir do final do século 18. Antepor a expressão “espécie de” à definição de livro-reportagem em nada diminui a obra. Muito pelo contrário — abre o leque de sua classificação, tarefa que, se fosse levada às últimas consequências, acabaria culminando no adjetivo “inclassificável”.
Sim, porque as múltiplas definições fornecidas sobre esse livro (história, ficção, biografia, relato de viagem), numa breve nota sobre a produção do autor, só fazem evidenciar a dificuldade de classificá-lo. E aqui reside a primeira das repetições que unem as duas obras de Arena: ambas são inclassificáveis.
Examinemos, de início, o suposto romance histórico Siríaco e Mister Charles. Os nomes que formam o título do livro de fato existiram. Siríaco foi um escravo nascido na capitania de Sergipe Del Rey, no final do século 18, com grande parte da pele coberta pelas manchas do vitiligo, o que lhe conferia um aspecto “tigrado”, tornando-o uma curiosidade ambulante para a época. Quanto a Mister Charles, trata-se de ninguém menos que o próprio Charles Darwin. O romance se alterna entre as trajetórias de ambos os personagens — a de Siríaco, compreendendo toda a vida; e a de Darwin, apenas a juventude, com exceção de um único capítulo — e faz com que se encontrem, interajam, dialoguem e até nutram certa amizade um pelo outro na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, onde a fragata Beagle (em que viajava o jovem Darwin de 22 anos, na sua primeira expedição científica) faz breve parada, e onde Siríaco havia se estabelecido após longas peripécias em Lisboa, na corte de D. Maria I.
É justamente nas circunstâncias desse encontro que reside a maior dose de ficção injetada por Arena nos fatos históricos. Se hoje sabemos da existência de um escravo de nome Siríaco, nascido no Brasil e levado para a corte portuguesa, isso se deve sobretudo a um quadro: La Mascarade Nuptiale (1788), do pintor da corte José Conrado Roza, que contém — escritas no exíguo pano que cobre o corpo de Siríaco — breves informações sobre sua origem, idade e chegada à corte. A tela retrata o casamento (nunca ocorrido) entre dois anões negros — D. Roza do Coração de Jesus e D. Pedro de Luanda — que, assim como Siríaco, haviam sido levados para a corte, e reúne um total de oito figuras (a maioria, anões), cuja função era a de distrair e fazer companhia aos membros da realeza. Eram os bufões da corte. Usufruíam de cuidados médicos, educação geral e específica (música, desenho, marcenaria) e boas roupas, trajadas por ocasião de datas festivas ou de visitas oficiais, durante as quais eram exibidos aos nobres visitantes como seres exóticos, a serem observados por alguns instantes, enquanto realizavam pequenos números circenses, antes de receber ordem de retirar-se.
Segundo os registros conservados, costumavam morrer jovens, tanto pelas doenças da terra de clima frio, para as quais seus corpos possuíam menos defesas, como pela expectativa menor de vida, em especial no caso dos anões. Siríaco terá falecido com cerca de quinze anos. O fato é que, logo após haver posado, junto com seus companheiros de corte, para o quadro de Conrado Roza (e para outro, realizado dois anos antes por Manuel Joaquim da Rocha e intitulado Siríaco), cessam as referências a ele. E será nessa altura da vida do escravo “tigrado”, quando se perde a pista de sua existência, que a ficção irromperá e tomará o lugar da História.
Grande habilidade
Arena opera essa passagem de bastão com grande habilidade. Começa por trazer à luz o próprio pintor, numa cena em que este conversa com a esposa, após um dia de trabalho. Conrado Roza revela à mulher seus pensamentos durante o tempo em que pinta La Mascarade Nuptiale e tem diante de si, imóveis, os oito bufões da corte. O rapaz-tigrado e os noivos anões não lhe saem da cabeça. Enxerga a “palpitação verdadeira entre os dois noivos”:
Homens e mulheres não perdem os sentimentos e a paixão só porque são de tamanho e cor diferentes. “As núpcias são encenação, mas as vontades são verdadeiras”, comenta com a mulher.
Dado o primeiro passo, o resto é consequência. O autor já não necessitará do personagem pintor José Conrado Roza para retratar aqueles que foram despojados de suas vidas e tratados como seres sem qualquer complexidade humana. Arena pintará ele mesmo o seu “retrato” de Siríaco, com as tintas da prosa poética do romance e a ambientação de sua terra natal — Cabo Verde. Mas, antes, uma ulterior intervenção literária se faz necessária. É preciso dar a Siríaco, que viveu (e morreu) como um animal de estimação de nobres portugueses, uma nova vida ficcional. Aqui tem lugar outro momento-chave do texto. Siríaco adoece, uma estranha enfermidade rouba-lhe as forças e o mantém prostrado por três meses; após ligeira melhora, sofre uma recaída, piora e passa a respirar cada vez com mais dificuldade. Delira. E, como “os efeitos do delírio são insondáveis”, escuta uma voz que lhe diz:
“Será justo pereceres deste modo, na luz mínima da tua juventude, Siríaco? (…) E se eu te confessar que escreverei a tua história, livrando-te desta fatalidade? (…) Morres, sim, mas não morres, em boa verdade. Terás uma vida da minha lavra, Siríaco. (…) Saberás que te escrevo e continuarei a escrever os teus dias sob as estrelas, sob o Sol. (…) Que importa esse mundo misterioso a que a morte dá acesso? Dar-te-ei uma imortalidade intocável, inviolável.”
E Arena de fato a dará. Porque, recuperado da doença, Siríaco retoma suas atividades na corte, recebe a alforria e continua o seu aprendizado de saberes vários, de amor e de vida. Até o momento em que o bloqueio continental decretado por Napoleão força a família real portuguesa à fuga para o Brasil. Siríaco embarca, então, na nau Rainha de Portugal, tendo sido encarregado de servir às infantas Maria Francisca e Isabel Maria. E, quando a frota de embarcações que conduz grande parte da corte faz uma parada em Cabo Verde para alguns reparos e abastecimento, ele encontra Aurélia, numa de suas idas à terra firme. Entre os dois se instaura “a certeza do amor”, que o leva a abandonar a nau e estabelecer-se na Ilha de Santiago, onde se casará, terá filhos e envelhecerá, tal como anunciado pela voz que lhe falou durante o seu delírio.
Mas e o grande naturalista Charles Darwin? Não era ele o tal Mister Charles que divide o título do romance com Siríaco? Bem, Darwin está presente, sim, por conta da já mencionada parada da Beagle em Cabo Verde. E há belas páginas que tratam do seu amor de juventude por Fanny Owen, da relação conflituosa com o pai e também das diversas etapas de sua primeira expedição científica. Mas que ninguém se engane: o protagonista do romance é Siríaco. Darwin não passa de mero coadjuvante. Dos 57 capítulos que compõem o livro, a grande maioria segue os passos de Siríaco; alguns abordam a interação entre Siríaco e Darwin; e um pequeno número versa sobre o naturalista inglês. Não se trata de um desequilíbrio involuntário, pelo simples fato de que a obra de Joaquim Arena está dedicada à tarefa de dar voz e visibilidade àqueles que nunca as tiveram, resgatar humilhados e ofendidos do lugar marginal a que foram relegados e ir até mesmo mais além, projetando o futuro, por meio do esquecimento e da recriação ficcional, e colocando de certa forma em prática as palavras de uma cigana a quem Siríaco permite que lhe leia as linhas da vida:
“A memória e o esquecimento não são contraditórios, pois juntos constituem o pleno. O esquecimento é um desejo de futuro…”
Transformar a realidade
O mesmo propósito de dar voz, estatura e dignidade aos relegados da História se repete em Debaixo da nossa pele. Embora formalmente não se trate de uma obra de ficção, vamos encontrar também em suas páginas o projeto de incorporar o esquecimento na construção do futuro. Antes de explicitar a forma pela qual Arena se propõe a realizar tal projeto, vejamos do que trata essa “espécie de livro-reportagem”.
Assim como já ocorrera em Siríaco e Mister Charles, Debaixo da nossa pele apresenta igualmente duas histórias paralelas que se entrecruzam. A primeira delas tem origem… num quadro! Mas desta vez não se trata de um retrato, e sim de uma cena de rua, mais precisamente do bairro do Alfama, em Lisboa, no ponto em que ficava o antigo Chafariz d’El-Rei, em sua versão medieval e que dá título à tela. O pintor (desconhecido) é claramente um artista menor, e a obra, realizada entre 1570 e 1580, estaria fadada ao esquecimento, não fosse pelo seu “olhar estrangeiro”, já que a cena recorda as escolas artísticas do norte da Europa. E esse olhar registra aquilo que os artistas portugueses da época não pintavam — a vida de suas cidades. Daí o valor documental da tela. Sobretudo por revelar a predominância de negros na cena. Das 136 figuras do quadro, 79 são negras.
Essa revelação de uma “Lisboa negra” no final do século 16 é tão surpreendente a ponto de gerar a organização de uma conferência (não se sabe se real ou fictícia) que debaterá esse passado esquecido ou cancelado da capital portuguesa. O livro se abre com a cena de um desses debates, quando Leopoldina — mulher afrodescendente — pede a palavra e fala sobre os personagens do quadro. Na amizade que se instaurará entre ela e o narrador (que se confunde com o autor, por ser um Arena personagem autoficcional), este se verá conduzido à pequena cidade de Alcácer do Sal, a cerca de 90 km ao sul de Lisboa, onde o aguardam diversas revelações sobre a longa e invisível presença africana em Portugal.
Uma presença que guarda muitas semelhanças com a dos bufões na corte portuguesa do século 18 — e de certa forma a repete — por ser a daqueles que nunca tiveram voz, e a receberão agora pela mão (que escreve) de Arena.
(…) aquelas pessoas que nunca imaginaram que estavam a ser observadas e reproduzidas numa tela, e que não teriam acreditado que alguém pudesse dar conta de sua insignificante existência.
O gesto do escritor ganha mais força graças à segunda das histórias paralelas do livro, na qual o narrador (sempre ele, o Arena autoficcional) recordará o momento em que deixou Cabo Verde, ainda menino, para emigrar com a família para Portugal, e todo o seu processo de adaptação a uma terra de adoção (ou talvez de degredo), no ambiente da diáspora cabo-verdiana. O mesmo desenraizamento de milhões de africanos levados à força, ou constrangidos por necessidades econômicas, para fora de seu continente — e reduzidos ao silêncio e à invisibilidade.
Mas não há que perder o foco. Por si só, essa temática nada tem de nova e vem sendo objeto de inúmeras obras contemporâneas tanto de ficção como de não ficção. Claramente não reside aí a originalidade dos dois livros de Joaquim Arena, nem tampouco na mistura de gêneros literários num mesmo corpo de texto, outra técnica cada vez mais frequente na produção literária hodierna. A sua força provém, em grande parte, da proposta inflamada de transformar uma realidade “inquinada de erros grosseiros e paradoxais” por meio da literatura.
Palavras meditadas podem ser verdadeiras ações. E na pena do escritor transformam-se no sublime ato revolucionário da literatura, que é o de perturbar a realidade, refazendo-a (…)
Grande delicadeza
Mas como se faz isso? Como se “refaz a realidade” para além da retórica, para que tudo não termine em mero palavrório? Pois é justamente nesse ponto que os dois livros de Arena se complementam, se buscam, flertam entre si. Repetem-se de forma assimétrica, irregular, como duas partes de um anel mágico que realiza o desejo daqueles (leitores) que conseguem uni-las. A chave que decifra a frase enigmática da cigana (“o esquecimento é um desejo de futuro”), citada acima em Siríaco e Mister Charles, está em Debaixo da nossa pele, e por sinal numa cena de grande delicadeza.
Nela, o narrador menino, ainda em seus primeiros anos em Portugal, se fecha num quarto com uma menina de sapatos brancos e lacinho no cabelo, durante uma festa de família, e ficam os dois às escuras, bem juntos um do outro. Num momento em que os adultos parecem aproximar-se, ele sussurra:
“Eles vêm aí… não podemos fazer barulho, ouviste?” De mãos dadas e quase sem respirar, ela responde:
“Sim, sim…”
“Quanto tempo terá durado esse momento? E ela? Recordará esse episódio vivido ao seu lado?”, pergunta-se o narrador já adulto, para em seguida concluir:
Para que o dia tenha mesmo existido basta que um de nós continue a recordar.
Aí está! O esquecimento teria levado à anulação daquele dia. Deixariam de existir os fatos, porque a realidade só pode sobreviver na nossa memória, como se se nutrisse dela ou respirasse graças a ela. E, se for realmente assim, se o esquecimento possuir esse poder de refazer o mundo, por que não adotar o método de Joaquim Arena e utilizá-lo como instrumento do futuro que desejamos, esquecendo “a realidade inquinada de erros grosseiros e paradoxais”, reinventando a vida e o mundo por meio da literatura, e decidindo que a memória recordará a História que queiramos que exista?
Talvez nos aproximássemos aos poucos do futuro desejado, se repetíssemos esse exercício ao longo do tempo, graças à pequena diferença que cada repetição acrescentaria à anterior, melhorando-a, aperfeiçoando-a…
Estamos prontos para começar?
Ou já é tarde, melhor fechar o livro e dormir o sono dos injustos?