O esquecido Saroyan e a comédia que salva

Uma (re)leitura apaixonada de A comédia humana, de William Saroyan
William Saroyan
01/12/2002

Você está salvo? Nunca é tarde demais. William Stonehill Saroyan colocou a frase num panfleto distribuído dentro de uma igreja da cidadezinha Ítaca, interior dos Estados Unidos, no livro A comédia humana. Saroyan me salvou, 27 anos depois de ter ouvido seu nome pela primeira vez. Agora é hora de as editoras e quem ama a vida e a grande literatura entrarem na fila.

A comédia humana não é lançamento. Tampouco, relançamento. Achei-o num sebo de Curitiba, o Papirus, depois de três anos de procura insana. Um site (http://planeta.terra.com.br/noticias/banca/) me indicou o caminho. Veio numa edição de 1980 da extinta Abril Cultural, na série Grandes Sucessos. A tradução é do crítico de cinema Alex Viany. Tudo a ver. Saroyan “também” é imagem.

Foi por isso que o jornalista João Rath, mestre de primeira hora do companheiro José Castello, me falou deste americano descendente de armênios nascido em Fresno, na Califórnia, em 1908. Rath e Saroyan hoje trocam figurinhas no Paraíso. Devem estar rindo dessa história. Eu, só tenho de agradecer.

Rath era um gênio de cabelos compridos e paciência de monge que espalhava sabedoria na redação da revista Placar. Um dia, viu o texto de uma reportagem de estagiário semi-analfabeto que começava com a descrição de um lance de treino de um anônimo jogador de nome Serginho, que se destacava no Juventus, aquele, da Rua Javari, de São Paulo. Não sei se gostou. Com boa parte do corpo enterrado embaixo da mesa de aço, a cabeça mais ou menos à altura da lauda enfiada na Olivetti, me deu a senha: “Leia Saroyan”.

Não li. Me perdi na vida desde aquele distante 1976. Sobrevivi para poder encontrar o escritor e tentar ecoar seu recado. Nunca é tarde demais. Anos atrás, quando soube, por meio de sua coluna no O Estado de S. Paulo, que José Castello tinha bebido na fonte de Rath, perdi a timidez e telefonei para contar da afinidade e, claro, falei de Saroyan, porque aquele nome jamais saiu da minha cachola. Castello disse que não tinha lido.

Ele e a torcida do Flamengo e Corinthians juntas, porque o grande escritor desapareceu do mapa editorial do Brasil há muito tempo.

Uma nota de pé de página anunciou a morte de Saroyan em 1981. Fiz as contas. Ele viveu 73 anos. Para quem gosta de pesquisar na internet e conhece a língua inglesa, a herança deixada por ele é tesouro imenso. Há mais de 60 títulos na língua de Shakespeare. Ensaios, estudos sobre sua obra e referências, quase mil.

William Saroyan, desconhecido no País do imortal Paulo Coelho, também escrevia para teatro. Em 1939, ganhou o prêmio Pulitzer com a peça O tempo de sua vida (The time of your life). The Human Comedy, A comédia humana que entrou em minh’alma agora, é seu romance mais famoso. Foi publicado pela primeira vez em 1942. Os Estados Unidos participavam da Segunda Guerra Mundial. Saroyan aproveitou para revelar, em quadros pungentes, e com um texto absurdamente simples, o ser humano, por meio da história dos personagens da família Macauley e alguns importantes personagens da pequena Ítaca.

O resultado final é uma carga tão positiva de credibilidade no Homem, que, depois de terminar a leitura, fiquei com vontade de recomendar uma releitura ao jornalista e escritor gaúcho Fausto Wolf, que recentemente citou o livro num artigo do Pasquim (e eu achei que era mais um destes acasos maravilhosos, porque finalmente lia alguém que conhecia a fera americana!), no qual destilou ódio contra o jornalista Elio Gaspari por causa do famoso artigo sobre o vinho francês que o presidente Lula da Silva experimentou num dedal. “Há esperança por trás de toda angústia e sofrimento. É preciso acreditar nisso para não enlouquecer”, escreveu Wolf em seu excelente O acrobata pede desculpas e cai. Faz tempo!

Saroyan tinha tudo para ser mais um homem amargurado e perdido. Sua fé na vida e a literatura certamente foram fundamentais para afastar de seu caminho qualquer tipo de inferno. Motivos não faltavam para que ele, por exemplo, chutasse o balde e se afundasse no copo, ou qualquer tipo de lamaçal. Perdeu o pai, armênio, ministro presbiteriano e agricultor, quando tinha dois anos de idade. Foi para o orfanato junto com os cinco irmãos quando, aos sete anos, perdeu a mãe.

Cinco anos mais tarde, abandonou a escola e empregou-se como estafeta numa agência telegráfica, onde chegou ao posto de gerente. Aos 16, resolveu ser escritor. Passou então a contar, da forma mais espontânea possível, o que viu e viveu. O sucesso veio aos 24 anos, com a publicação dos contos reunidos no volume The daring young man on the flying trapeze (O ousado rapaz no trapézio volante). Tornou-se, então, um dos maiores expoentes da moderna ficção norte-americana.

Homero Macauley é o principal personagem da A comédia humana. Tem 14 anos e é estafeta na agência telegráfica de Ítaca. Ulisses, seu irmão mais novo, tem 4. Marcus, mais velho, foi para a guerra. Bess, única filha mulher, é adolescente e toca piano. A mãe, Mrs. Macauley, cuida de todos, da casa e toca harpa, que ganhou de presente do falecido marido, um homem que trabalhava, trabalhava, trabalhava e sabia o que vale a pena na vida, por isso passou anos pagando a prestação dos instrumentos musicais que colocou naquele lar.

William Saroyan é Ulisses e Homero, por isso dedica o livro ao pai, Takoohi Saroyan. Abre sua história descrevendo a cena do garotinho desvendando os mistérios da vida de forma encadeada, começando com uma toupeira cavando um buraco, passando para o pássaro que pousa na velha nogueira, para, então, chegar ao encantamento do barulho do trem que se aproxima. Ulisses, em seguida, corre para o cruzamento onde a máquina passa e seus personagens dentro. Dá adeus ao maquinista, sem ter resposta. Depois, para alguns passageiros, que também o ignoram. Até que, sentado num vagão de gasolina, um negro canta uma canção na qual diz que vai para casa, para onde o querem. Este homem responde, até desaparecer numa curva, aos acenos do menino. Ele volta saltitante para casa, cai quando adentra o quintal e então vai procurar ovos nos ninhos das galinhas. “Encontrou um. Olhou-o por um momento, apanhou-o, levou-o até sua mãe e muito cuidadosamente o entregou; com isso queria dizer o que nenhum homem consegue adivinhar e nenhuma criança pode lembrar para contar.”

A partir daí, o que William Saroyan nos faz enxergar é algo tão arrebatador, simples e, ao mesmo tempo, misterioso, que este que vos escreve não tem receio em sugerir o livro como parte da vida de qualquer humano que pretende ser — ainda mais agora, nesta virada de século, quando tudo parece tão moderno e, ao mesmo tempo, perdido, desprovido de luz de vida.

Ulisses descobre e se encanta com tudo, enquanto Homero atravessa o doloroso rito da passagem para o mundo adulto. Ele precisa trabalhar para ajudar no sustento da família. Encontra na agência o velho senhor Crogan, um homem que rodou os Estados Unidos trabalhando, se recusa a se aposentar, tem problemas no coração e toma seus goles de vez em sempre para agüentar o tranco.

O primeiro choque de Homero é quando começa a entregar os telegramas comunicando a morte dos filhos de Ítaca que foram lutar na Segunda Guerra Mundial. Um dia, ele pergunta ao senhor com quem, de vez em quando, divide tortas compradas a um preço bem em conta porque amanhecidas, se aqueles rapazes não morrem por nada. “Morrem?”

— Estou no mundo há longo tempo — disse ele. — Longo demais, talvez. Deixe-me dizer-lhe que na guerra ou na paz nada é por nada… quanto mais a morte. — O velho parou um momento para beber outro gole. — Toda gente é uma pessoa — disse ele —, como você é uma pessoa. Ora, assim como há maldade em você ao lado da bondade, há maldade e bondade em toda gente. Estão misturados em todos, nos milhões de todas as nações. Sim, de nossa nação, também. Assim como a consciência de um homem luta com os oponentes em sua própria natureza, assim, também, esses oponentes lutam no corpo total dos vivos, em todo o mundo. E é então que temos uma guerra. O corpo está lutando contra suas doenças. Mas não se preocupe com isso, pois o bem permanece sempre que aparece. O corpo doente e o espírito doente são sempre restaurados à saúde. Podem ficar doentes outra vez, mas sempre ficarão melhores, e quando cada nova doença vem e é afastada, o corpo e o espírito se fortalecem até que, por fim, ficam poderosos, tal como devem ser, limpos da ruína, refinados, mais gentis, mais nobres, e fora do alcance da corrupção. Cada homem no mundo, certo ou errado, está tentando. — O velho parecia estar um pouco cansado. — O ladrão e o assassino estão tentando — suspirou ele. — Ninguém morre por nada. Todos morrem procurando a graça, a imortalidade, procurando a verdadeira justiça, e, um dia, esse grande corpo do homem, que somos todos nós, sem qualquer exceção, conseguirá o que quer, terá a graça, será imortal, e este maravilhoso mundo mau será um lugar de decência e bondade entre os homens.

A pílula aí de cima é exatamente para aqueles que vão ativar o que acham ser o espírito crítico do grande entendedor de literatura mundial. É piegas? É clichezão? É melado? Se achou isso, então, meu filho, trate de olhar para o umbigo da sua vida com mais atenção e vá correndo achar o livro para comprá-lo e aprender algo de útil, inclusive a arte de escrever como gente e para gente.

Aos literatos e jornalistas metidos a besta e que pensam que a vida se resume às suas “criações”, William Saroyan reservou porretes curtos e especiais. Num dos capítulos (e cada capítulo de A comédia humana é digno de ser chamado como tal), Ulisses e um amigo, Lionel, que também não sabe ler, fazem uma visita à Biblioteca Pública. Lionel levou o amigo para a aventura porque sempre faz isso. Gosta de “olhar” os livros. Em anos de experiência trabalhando no local, a velha bibliotecária nunca tinha se deparado com tal situação. “Bem — disse por fim —, talvez seja até melhor que você não saiba ler. Há sessenta anos que venho lendo livros e nada me faz crer que a diferença seja assim tão grande. Podem ir agora e olhar os livros que quiserem.”

August Gogttlieb é um garoto que ganha a vida vendendo jornais na rua. É amigo de Homero e Ulisses. Num dia em que o menor fica perdido por ter conhecido o medo, protege o garoto e o desenrolar da cena serve para Saroyan expor o que pensa a respeito do comércio de notícias ruins. Mesmo dormindo, Gogttlieb até no sonho ironiza e despreza a natureza das informações que rendem as manchetes que ele tem de gritar na rua, para ganhar alguns trocados. Naquele dia em que “salvou” o pequeno Ulisses, Thomas Splanger, gerente do posto telegráfico onde trabalha Homero, compra todos os exemplares que o jornaleiro carrega e dá-lhes o destino que o escritor acha correto: a lata de lixo.

A igreja, o prostíbulo, o cinema, o armazém (Aram, o dono, armênio, tinha sido personagem principal de um livro anterior, de 1941, My name is Aram), os terrenos baldios, enfim, os palcos por onde se movem os personagens são mostrados como se estivéssemos diante de uma grande tela. As cores são densas, mas não chocam, nos dão a tranqüilidade necessária para assimilar os diálogos, verdadeiros raios X do pensamento dos personagens. Tudo dito, repito, de uma forma absurdamente simples, como só um grande mestre do ofício de escrever poderia fazer.

Saroyan domina tanto sua arte, que pode repetir nomes, palavras, num mesmo período, sem que isso fira nossos sentidos. Redundantes somos nós, pobres leitores mortais em busca de um sentido de vida.

Ao escrever os 39 capítulos enxutos distribuídos nas 268 páginas de A comédia humana, William Saroyan me pegou pela mão e, numa caminhada serena, mostrou, por meio dos Macauley, amor, paixão, alegria, sofrimento, dúvida e, mais que tudo, esperança.

Marcus Macauley, o soldado americano, morre na guerra. No treinamento, fez um amigo, Tobey George, para quem conta tudo sobre sua família e Ítaca. George é órfão, se apaixona por tudo, inclusive por Bess. Ele é ferido no front e vai ao encontro da primeira família de sua vida. Homero, pouco antes de receber o telegrama que comunica a morte do irmão, recebe uma carta onde este lhe deixa toda a “herança” (livros, discos, vitrola, roupas, bicicleta, microscópio, vara de pescar, coleção de pedras etc). Grogan, o velho telegrafista tem um ataque fulminante e morre quando a mensagem do Exército Americano começa a chegar. Tobey George é recebido como se fosse um velho conhecido. Ele é Marcus, é Saroyan, sou eu, é você, leitor. Porque, depois de muito sofrimento, se salvou, pois nunca é tarde demais.

Roberto José da Silva
Rascunho