Primeiro romance do alagoano Nilton Resende, Fantasma é uma narrativa composta por várias narrativas. Ou, como várias vezes o narrador em terceira pessoa deixa claro, uma história em um palimpsesto. Curto, sem tempo, espaço e vozes definidas, a história fica na memória do leitor após o término, como se estivéssemos buscando uma lógica. A lógica. Como se na vida também ela existisse. E não há.
Nada é dado de graça no livro, nem mesmo a premissa. Descobrimos, aos poucos, em capítulos que variam de um parágrafo até 15 páginas (o último), qual é o fio condutor, se é que há uma única história.
Tudo se dissolve ou é aparentemente dissolvido, como um fantasma. A imagem do que já foi. Esse personagem, o fantasma, ao que tudo indica, era uma criança que se jogou (caiu?) de uma casa com três andares. O espírito ficou preso no lugar que depois se tornou uma pousada.
A pousada recebe hóspedes que vem e vão. Eles deixam marcas, registros. A casa é um não lugar, assim como o fantasma é uma não pessoa. O narrador nos conta o que o fantasma vê. Aí vêm as ótimas observações escritas por Resende.
Nos lugares, após frequentados por pessoas diversas, há sempre um pouco delas: odores, rapas de pele, pelos, salivas, lembranças sonoras, humores vários. Grudam-se às paredes, tecidos, pisos. Por vezes, varam-nos. Os lugares todos são palimpsestos de visitas.
Das características que chamam a atenção, além do fato da imagem sempre presente de que tudo é fumaça e se apagará, é a cadência da escrita. Nilton Resende produz como quem controlasse o tempo de uma orquestra. Não há chatice nas longas orações marcadas por vírgulas e complementos. Pelo contrário, há mundos.
O fantasma
O objeto livro em si já causa um incomodo. Ao que me consta, a Trajes Lunares, casa editorial responsável pela obra, tem Nilton Resende como um dos editores. A capa na cor rosa tem uma obra de arte sem título de Afonso Sarmento. É uma espécie de rosto formado por uma cauda de peixe, pássaros, um olho e uma boca. Abrir o livro é tentar decifrá-lo. Concluir a leitura é, talvez, falhar na missão. Ainda assim vale a pena.
Olhemos os personagens. O fantasma, primeiramente. Esse espírito que acompanha toda a história pensa, comenta e até mesmo discute. Sabemos disso porque há uma fonte específica para ele na obra. A casa, por sua vez, também merece consideração pois é, mesmo indiretamente, um personagem fundamental. Uma das famílias que se hospedam no local, três crianças, pai e mãe, suspeitam terem visto o fantasma. Por ter sido uma suspeita, é o narrador que nos conta. Nenhum familiar fala em voz alta. “O sono da razão produz monstros” ou a culpa é da casa? Estamos diante de um palimpsesto mais uma vez. O silêncio muitas vezes é o som mais alto.
Romance construído por imagens diversas, do abandono familiar, passando pela solidão e busca pelo passado, Fantasma ecoa na cabeça do leitor. O autor varia por modelos narrativos, por discurso direto livre ou não. Nesse jogo de espelhos sobre a possibilidade e impossibilidade do real, o fantasma demonstra ter sentimentos. “Isto de não me verem destrói-me qualquer sorriso”, diz ele, melancólico.
O fantasma somos nós?
Pensando no romance como um todo, Fantasma é menos sobre os personagens e mais sobre nós. Nos espaços que passamos, em festas, bares e hotéis, há histórias que, por algum motivo, não foram registradas. A nossa própria presença nesses locais, posteriormente, também não terá registros. Somos espíritos. Todos os dias há quem morra, há quem se mate. Poucos se importam. Os fantasmas seguem por aí.
Multiartista, Resende é autor, entre outros, do volume de contos Diabolô e diretor do curta-metragem A barca, baseado no conto Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles. Olhando, agora, para todas essas produções, incluindo Fantasma, penso que o estranhamento ao optar por formas diferenciadas de abordagens seja uma de suas marcas. O melhor de tudo isso é que há qualidade.