O escritor no espelho

Nelson de Oliveira em duas versões: ficcional e erótico, em "A maldição do macho"; e crítico e jornalístico, em "O século oculto"
Nelson de Oliveira: entre a ficção e o ensaio
01/12/2002

Pode-se acusá-lo de exagerado, absurdo, excêntrico, menos de preguiçoso. Pois poucos autores têm a suficiente competência para lançar, no mesmo mês, uma obra de ficção e uma antologia de artigos críticos. O nome do monstro é Nelson de Oliveira, 36 anos, paulista de Guaíra, autor de A maldição do macho, romance pícaro-sexual, e de O século oculto e outros sonhos provocados, compilação de artigos de crítica (alguns saíram aqui no Rascunho). Por conta de sua obra múltipla, não é fácil falar desse cara, ou melhor, desse duas-caras. Mas esse nem é o único problema.

Amiguismo
Designer gráfico de formação, contista, romancista e, de uns tempos para cá, jornalista literário, Nelson pensa a literatura do ponto de vista prático. Numa analogia com o futebol, Nelson seria um Tostão. Ao mesmo tempo em que é craque dentro das quatro linhas — de papel —, joga bem como olheiro, técnico, comentarista, e, por que não, torcedor. É de paixão que falamos: literatura, para ele, não é letra fria — é um ser mutante que torna a vida mais real. Mas, na timidez de nosso ambiente literário, costuma-se delimitar espaços para as jogadas. Do lado de cá, o escritor, o artista; do lado de lá, o jornalista, o crítico. Que fazer, quando o jogador usa camisas de times rivais?

Em entrevista ao Estante de livros, blog da poeta Ana Elisa Ribeiro (www.estantedelivros.blogger.com.br), o poeta mineiro Ricardo Aleixo risca o xis. “Aqui e no resto do Brasil, tem muita gente fazendo coisas legais. O que falta não é mais atividade, e sim diálogo, interações críticas. Sinto que estamos ficando entregues a um perigosíssimo clima de amiguismo, que acaba, por sua vez, servindo de porta de entrada para o valetudismo.”

Uma opção é distribuir nas resenhas os tais tapinhas nas costas. Ou, para mostrar independência, desancar o autor, como sói (ai) acontecer com a crítica dente-de-leite: bater aparenta manifestação de sagacidade, mas é só máscara para imaturidade ou desonestidade intelectual — vide o pueril Diogo Mainardi canelando Drummond em recente coluna na Veja. Entre o oco ora viva e a vaia no vazio, fazer jornalismo literário é ato, menos que polido, político. Há que se administrar escolhas e cotovelos. Ouvi dizer: toda civilização se constrói sobre uma sutil noção de distâncias. E é, entre outras coisas, sobre distâncias de que trata O século oculto.

Prosa anti-realista
Observando de muito perto uma literatura quase sempre longe de leitores e críticos, a novidade que se tira, dessa reunião de artigos, é o esboço de uma linhagem literária — que eu chamaria de anti-realismo. Etiqueta que colo aqui sem pretensão, só pra dar um rumo a essa prosa, o anti-realismo — em seu viés mais lúdico e irresponsavelmente cortazariano, primo do expressionismo e do surrealismo — congrega uma série de autores muito distintos entre si, mas bastante próximos quando o negócio é distorcer a narrativa a ponto de descolá-la do real e construir outro universo com sonhos, pesadelos, alucinações, automatismos inconscientes, desrobotização da linguagem, polissemia, busca de estrutura anti-romanesca e não-linear, subjetivismo arraigado, contaminação violenta e mútua entre as culturas alta, baixa e pop etc. etc.

Caminho aberto por Machado de Assis (lembre-se do capítulo O delírio, do sempre moderno Memórias póstumas de Brás Cubas) e retomado por Oswald de Andrade, durante o século 20 o gênero anti-realista — no Brasil, urbano e cosmopolita por excelência, bombardeado, sobretudo nos 60, pela dicção da beat generation, pelo realismo mágico e pelo nouveau roman — vai sendo recriado por autores como Rosário Fusco, Murilo Rubião, J. J. Veiga, Campos de Carvalho, Samuel Rawet, José Agrippino de Paula, Maura Lopes Cançado, Uilcon Pereira, Paulo Leminski, Sérgio Sant’Anna, Ignácio de Loyola, João Gilberto Noll, Moacyr Scliar, chegando hoje a Marcelo Mirisola, André Sant’Anna, Joca Reiners Terron e o próprio Nelson.

Desvendando o “eixo do mal”, Nelson foca prosadores que, lidos como transgressivos demais, ficaram à margem — em especial, Fusco, Uilcon e Agrippino. No excelente ensaio Os 100 melhores romances (esquecidos) do século, o autor dá uma banana ao cânone e refaz o caminho dessa linhagem subterrânea em textos curtos e saborosos, estilisticamente iluminados por uma clareza e um senso de humor raros na crítica. O último satanista trata de Tribo, primeiro romance de Campos de Carvalho, excomungado pelo próprio autor, que concedeu a Nelson uma de suas últimas entrevistas. A sofredora do ver e Reconstruindo a fúria são, respectivamente, uma apresentação e uma recriação da obra de Maura Lopes Cançado. O solitário caminhante do mundo biografa o singular contista Samuel Rawet. Luzes do subterrâneo faz uma divertida reconstituição dos crimes do poeta Glauco Mattoso. Miniconto: melhores (?) momentos é um rápido, mas não rasteiro rastreamento desse microgênero literário. E As miragens da prosa habitada por imagens cria outra linhagem híbrida, em que confluem artistas gráficos, cartunistas, Lewis Carroll, Joaquín Torres-García, Oswald de Andrade, Bob Brown e ele, o mestre, Valêncio Xavier.

Entrando pelo cânone
Do mesmo modo como virou a luneta para o passado em busca do ouro perdido, em artigos como O novo conto brasileiro: apocalipses, Nelson espiou o próprio quintal, abrindo espaço a escritores de seu tempo. Outro lance de efeito. Afinal, na crítica especializada, para cada leitor com uma vontade mínima de produzir pesquisa criativa há 100 redigindo o mesmo trabalho sobre Drummond, Rosa, Graciliano, Mário… (há honrosas exceções, como a revista Rodapé). Ao notar que a literatura dos 90 era (é) um processo em consistente ascensão e não havia uma contrapartida do outro lado para registrá-la e decodificá-la, Nelson arregaçou as mangas. Como se dissesse: crítica é um serviço sujo, mas alguém tem que fazer. Foi assim que ele, escritor surgido nos 90, editou a polêmica antologia Manuscritos de computador (Boitempo).

São João Batista da Geração 90 (torço pra que o exercício da crítica não se lhe reserve o papel de Salomé…), sua postura expõe uma posição comum a nossa época: desencastelados das torres de marfim e do serviço público, os escritores se articulam, criam revistas, editoras. Dois perigos há nessa suruba. Um é, como cantariam os saudosos Mamonas Assassinas, “me passaram a mão na bunda e eu ainda não comi ninguém”: algum escriba melindrado sentir-se de fora e meter fogo no clube. O outro, como alertou Aleixo, é todo mundo se achar o rei da cocada preta. E aí teremos um ambiente em que — preguiça das preguiças — todos são gênios. Como suspiraria Pessoa (bem lembrado, aliás, na excelente orelha soprada por Carpinejar): “Estou farto de semideuses!”. Engenhosa arquitetura de distâncias, O século oculto dribla com donaire esses perrengues, levantando a bola do texto e abaixando a do ego, conseguindo, paradoxalmente, incluir excluídos na festa e criar igrejinhas de excomungados.

Há outras surpresas a comentar, neste — necessário — livro. Mas agora é a hora do gongo.

Pícaro picareta
Velocidade, visibilidade e leveza: preceitos das Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino, são pilares da obra oliveirana. Ao lado desse tripé, o discípulo de Campos de Carvalho faz em A maldição do macho uma espécie de tributo sacana a um tipo de personagem caro ao autor de A lua vem da Ásia: o pícaro. Rodrigo, o picaresco narrador-protagonista — do tipo que se mete em peripécias peripatéticas, meio que tragado por um fluxo desregrado de fatos incongruentes, cômicos e quase sempre eróticos, quase sempre se dando muito bem —, é um artista plástico brasileiro que, depois de fugir de casa aos 11 (!) anos, vive em Londres.

Obcecado pelo número três, ao completar 33 anos Rodrigo está convencido de que algum tipo de maldição recairá sobre ele. Metido entre um rolo amoroso e outro, adrenado por pílulas psicodélicas e perturbado por raciocínios nonsense — filosofices bobas tipo “o gozo só não nos parece uma necessidade vital quando estamos gozando” —, Rodrigo enfim encontra sua maldição.

Nheco, nheco
Que poderia ser bem uma bênção, a qualquer macho que se preze: um exército de xoxotas cruzando seu impávido pau, trazendo ao romance uma atmosfera de tensão que, no limite, faz com que qualquer objeto se torne sujeito da imaginação hipersexual do narrador. Rebelde bem-comportado, Rodrigo é um cafajeste simpático, que sofre de paudurescência cerebral — numa discussão, não é inteligente lhe dar as costas. Toda essa virilidade, porém, não vira potência literária. Maldição não tem a mesma criatividade de livros como Treze, a profundidade (sem trocadilho) de Subsolo infinito ou a variedade técnica de O filho do Crucificado (em minha opinião, seu melhor livro). Mas, à parte o esplêndido conto Quantos? (O filho do Crucificado), o autor nunca avançou tanto na satanista busca pela epifania no gozo — sintoma paradoxal das fixações místicas do narrador.

Excruciado entre a voracidade de preencher lacunas amorosas e seu próprio vazio espiritual, o narrador viaja da gótica Londres à barroca Ouro Preto fugindo de sinistros traficantes de drogas. Em que alivie as traquinagens de Rodrigo com suas três deliciosas irmãzinhas, ao virar uma espécie de romance sexo-policial psicodélico o livro perde o compromisso com a verossimilhança — o final, de tão delirante, se aproxima da forçação de barra. Nenhum problema com o clima fantástico, lar de Nelson. O que pega, a meu ver, é que o livro não se resolve entre uma bem assentada linearidade realista e a carnavalização ampla e irrestrita. O que se reflete na linguagem — sempre elegante, Nelson aqui procurou ser mais cristalino e fluente do que nunca; seus jogos com a lógica verbal, tão caros à sua ficção, surgem com menos freqüência. Assim, dentro da obra oliveirana, Maldição se afigura um ótimo livro de “entretenimento”.

Por um lado, o leitor pode lê-lo em um bom par de horas e se deleitar com a ligeireza e o clima orgíaco (propício a fazer o livro passar, como já se comentou a respeito do Caderninho rosa de Lory Lamb, de Hilda Hilst, no “teste do colo”: enquanto a leitura avança, no colo, o volume, ops, levanta). Por outro, o leitor exigente pode se incomodar com sua gratuidade, sua carpintaria bem-feita demais, suas intenções barrocas artificialmente espontâneas demais. Nos maus momentos, a queda pelo rocambolesco o aproxima de autores lúbricos da estirpe de (lembram?) Pitigrilli. Nos bons, o charme canalha do narrador ecoa a busca angustiada do protagonista do luminoso O homem que amava as mulheres, de François Truffaut.

Grande sacada: no capítulo Casulo, duas personagens criam uma quarta dimensão do espaço-tempo ao se esconder em um prosaico baú. Mas o que elas fazem lá dentro não posso contar — ou o editor desse jornal nunca mais me convida para uma resenha.

3×4 de Nelson de Oliveira
Ontem ele não comeu nada. Chegou cansado em casa, sem fome, tomou banho, declamou para Érica um capítulo d’As aventuras de Pinóquio e foi dormir. Apesar dos 12 livros publicados, a filha Érica é a maior realização de Nelson Luiz Garcia de Oliveira, nascido a 16 de agosto de 1966 em Guaíra (SP). Leonino e palmeirense, ele distribui 62 kg em 1,80 m e nunca conseguiu memorizar a gramática da moda. Formado em artes plásticas no Mackenzie, é casado há 13 anos com a designer Tereza Yamashita, a quem conheceu em 1985 — “anno mirabilis”, data de sua mudança pra São Paulo, quando descobriu a literatura e as outras artes. A partir daí, quis ser artista plástico. Mas, ao ganhar uma bolsa para escrever um livro, tudo mudou. Desde então, suas contas são pagas com seu trabalho de designer gráfico; contudo, ele já recebeu uma grana considerável com direitos, principalmente dos livros infanto-juvenis, e com os concursos que ganhou.

Muito caseiro — cada dia tem ido menos ao cinema, e jamais tirou os pés do Brasil por muito tempo —, tem mania de não comprar livro em livraria, só em sebo. Não curte esportes nem pratica porra nenhuma. É moderado ao beber e fumar. E a favor da legalização da maconha. (Parou de cheirar e de fumar, pois tem medo de ser preso e sofrer abusos sexuais na prisão.) A melhor viagem foi a Ouro Preto, onde escreveu parte d’A maldição do macho. Vota sempre à esquerda, embora desanimado com a política. Não admira ninguém. As pessoas são frágeis, quando não desprezíveis: acusam os outros dos crimes que cometeriam se tivessem a chance. Louvar alguém por ser genial é ingenuidade, pensa: toma como slogan o mote shakespeariano “Contra a estupidez humana, os próprios deuses lutam em vão”. Uma extravagância: ter ido ao inferno e voltado — no romance Subsolo infinito. Hobbies: transar, ler e escrever. Nessa ordem, e jamais as três coisas ao mesmo tempo.

Daqui a 20 anos, estará isolado, sem grana, impaciente com os jovens, relendo os melhores livros e mandando resenhistas antipáticos tomar no cu. Só imbecis e fodidos seguem carreira de escritor, acredita: loucos varridos viram poetas. Ama Grande sertão: veredas, A lua vem da Ásia, Claro enigma, Galáxias, A hora dos ruminantes, Antes do baile verde, Caprichos e relaxos, A educação pela pedra e A obscena Senhora D. Acha Lobo Antunes o melhor romancista vivo; aprecia também Auster, Hornby, Houellebecq, McEwan, Oz, Saramago. Por aqui, gosta de Wir Caetano, Clarah Averbuck, Daniel Galera, Daniel Pellizzari, Ana Elisa Ribeiro e Bruno Zeni. Projetos: terminar o mestrado em literatura na USP, revisar um romance, um livro de contos e procurar uma editora. Entre dez críticas positivas de dez luminares ou cem mil exemplares vendidos, quer as críticas. “Cem mil exemplares renderiam uns trezentos mil. É pra sonhar? Sonhemos alto: pra ser feliz, pelo menos um milhão de dólares. Se é que a felicidade existe.”

A maldição do macho
Nelson de Oliveira
221 págs.
Record
O século oculto e outros sonhos provocados
Nelson de Oliveira
223 págs.
Escrituras
Ronaldo Bressane

É escritor e jornalista, autor da trilogia de contos A outra comédia (Infernos possíveis, 10 presídios de bolso e Céu de Lúcifer) e do volume de contos O impostor. O texto publicado nestas páginas é o 15.º capítulo de seu romance ainda inédito Mnemomáquina.

Rascunho