O escritor no espelho

“O motivo”, primeiro livro do consagrado Javier Cercas, não faz por merecer sua republicação
Javier Cercas: estréia pífia.
01/12/2005

Escrever um romance sobre um romance dentro de um romance é como aquela brincadeira de colocar um espelho à frente de outro espelho, em que a imagem vai se refletindo indefinidamente. É divertido no começo, mas parece que vai cansando no final, quando nos damos conta que só um espelho já bastaria.

Essa experiência é sempre um risco para o escritor, principalmente se suas tramas não são das melhores, já que suas deficiências acabam multiplicadas pelo romance dentro do romance.

O espanhol Javier Cercas ganhou fama devido a uma bem-sucedida história dentro de outra história, Soldados de Salamina, em que, a partir de um escritor que inicia uma investigação para um livro, compõe um maravilhoso relato de um episódio da Guerra Civil na Espanha.

Antes de Soldados de Salamina, Javier Cercas já havia brincado com espelhos na novela O motivo, publicada em 1987 num livro de contos, e agora relançada solitariamente. É um livro simpático, mas no qual Cercas abusou das imagens.

O protagonista, o escritor Álvaro, está em busca da grande obra de sua vida. Álvaro resolve escrever sobre um autor que planeja um romance em que um casal mata um vizinho de prédio para lhe roubar. Um assassinato semelhante acaba realmente ocorrendo no prédio do escritor e ele se sente culpado, como se sua história tivesse causado a morte.

Impressionado com as próprias idéias, Álvaro passa a enxergar em seu prédio os personagens criados por seu protagonista. Assim, ele se transforma em cria de si mesmo, e age para que a interferência imaginada pelo escritor realmente aconteça na sua vida e na de seus vizinhos. Álvaro passa a ingerir em suas rotinas, tentando obrigá-los a praticar atos que deveriam estar somente no romance dentro daquele outro romance. É nessa hora que Cercas exagera, transitando perigosamente pela inverosssimilhança para facilitar as coisas para seu alter ego Álvaro e para o alter ego de Álvaro, aquele outro escritor.

Parece confuso, e é. Cercas optou por um jogo de espelhos para mostrar alguns truques da literatura, mas o que fez foi estragar a mágica, anunciando precipitadamente, em pouco mais de duas dezenas de páginas — a partir da 25.ª, quando Álvaro realmente começa a escrever a novela —, tudo o que vai acontecer em O motivo.

Um dia o escritor encontra seus vizinhos no elevador; o casal leva consigo um objeto comprido envolto em um papel pardo. O escritor imagina que esse objeto é um machado, e ao chegar em casa resolve que o casal de seu romance matará a machadadas o velho rentista. Alguns dias depois coloca o ponto final em seu romance. Nessa mesma manhã, a porteira descobre o cadáver do velho, assassinado a machadadas.

Há somente um escritor em O motivo, e ele é Javier Cercas, multiplicado pelo jogo de espelho. E Javier Cercas é muito melhor que Álvaro, o que se comprova facilmente numa comparação entre O motivo e Soldados de Salamina. Deve-se, é claro, levar em conta que O motivo foi escrito quinze anos antes, quando o desconhecido Javier era, provavelmente, como Álvaro, com suas dúvidas existenciais e literárias.

As divagações de Cercas no início da obra e a apresentação da estrutura na novela que vem a seguir é que dão título a O motivo. Cercas ambiciona, por meio de Álvaro, explivar o processo criativo e mostrar o “poder” da literatura nos destinos dos personagens. Mas a tentativa soa tão ingênua quanto os 25 anos de idade que Cercas tinha à época. O motivo soa mais como um deslumbramento de um jovem que descobre a literatura e que tem talento para transformá-la em sua profissão.

Como todas as outras artes, a literatura é uma questão de tempo e trabalho, dizia a si mesmo. Álvaro acreditava que a inspiração é como os fantasmas: todo mundo fala dela mas ninguém jamais a viu. Por isso aceitava que toda criação é composta de um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração. O contrário disso era abandoná-la nas mãos do aficionado, do escritor de fim de semana; o contrário era a improvisação e o caos, a mais abjeta falta de rigor.

O que Cerca tentou em O motivo deu muito mais certo em Soldados de Salamina, quando deixou de lado as explicações e foi direto à criação. Se é então para encontrar algum valor em O motivo, ele está na constatação de como Cercas evoluiu de uma obra para outra. Na apresentação de O motivo, Cerca diz que “talvez um escritor sempre acabe se arrependendo do primeiro livro que publica”. Em 1987, não seria para tanto no caso de O motivo. Mas republicá-lo agora realmente foi um exagero.

O motivo
Javier Cercas
Trad.: Tony Rodrigues
Francis
118 págs.
Javier Cercas
Nasceu em Ibahernando, Espanha, em 1962. É romancista, cronista, colaborador da edição catalã do jornal El País e professor de literatura espanhola na Universidade de Gerona. Seu primeiro livro publicado no Brasil, Soldados de Salamina, já ganhou 32 edições mundo afora e, pelas mãos do cineasta David Trueba, virou filme.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho