Vou contar o milagre sem contudo dar o nome do santo, e a razão é das mais prosaicas: simplesmente não lembro qual foi o autor que uma vez ouvi afirmar ter por objetivo, ao conceber um novo livro, criar sempre algo diferente por completo de tudo que houvesse escrito até então, pois não achava graça alguma em repetir o já feito. Noutras palavras, não se contentava em ser apenas um escritor, queria ser uma espécie de vários em um. Talvez o desejo do criador de se reinventar a cada nova obra não seja uma ocorrência assim tão rara, por isso minha dificuldade em identificar aquele autor. A afirmação, por exemplo, poderia muito bem ter partido de Cristovão Tezza. Pensei nessa possibilidade ao concluir a leitura de seu romance Um erro emocional, o primeiro depois de O filho eterno, que levou todos os prêmios literários mais importantes do país. E nesse caso não seria mera idiossincrasia a necessidade de romper de forma radical com o passado, pelo menos com o mais recente.
Tezza teve de enfrentar dois grandes desafios para gerar a nova obra. O primeiro foi o estrondoso sucesso do livro anterior, situação que muitas vezes eleva a um patamar inatingível a expectativa do público e do próprio autor em relação ao novo trabalho. O segundo, o fato de O filho eterno trazer uma história pessoal e comovente: a experiência do pai que se vê na condição de ter um filho portador da síndrome de Down. Não havia como repetir o tema ou buscar outro drama pessoal equivalente: O filho eterno nasceu para ser único. Era um caminho natural, por assim dizer, que ele procurasse vencer esses obstáculos pela via do contraponto ou mesmo da completa ruptura. Mas, ao invés de inovar totalmente, Tezza voltou no tempo e retomou uma fórmula por ele já exercitada: a história que se passa num curto período de tempo, com alternância sistemática do foco narrativo e onde o que mais importa é a ação interior dos personagens. Foi assim no elogiado O fotógrafo, de 2004, cuja trama se desenvolve num único dia.
Um erro emocional se passa em algumas horas da noite em que o veterano escritor Paulo Donetti bate à porta da jovem e bonita Beatriz, uma garrafa de vinho e uma pasta na mão, e anuncia ter cometido o tal erro. Ele é paulista e autor do bem-sucedido romance A foto no espelho, mas vive uma fase ruim na carreira; ela é sua leitora e fã. Os dois se conheceram um dia antes em Curitiba, onde mora Beatriz e aonde Paulo viajou para participar de um evento literário. O encontro fora casual. Beatriz jantava na companhia de um antigo desafeto de Paulo, Cássio, um também escritor que ele havia impulsionado no início de carreira e que mais tarde devolveu a gentileza criticando-o duramente numa resenha. Depois de conhecer Beatriz, Paulo decidiu prorrogar sua permanência na cidade. O erro emocional a que ele se refere é esclarecido logo em seguida à sua entrada em cena, quando declara ter-se apaixonado por ela. Contudo, após o preâmbulo melodramático e contrariando a expectativa do leitor, a conversa envereda por outro caminho, e Paulo revela, agora de um jeito menos abrupto, o verdadeiro objetivo daquela visita: ele quer que Beatriz digite, revise e organize os originais de um novo livro, e é isso justamente o que ele traz naquela pasta.
Estrutura complexa
Seria muito menos difícil listar o que o livro não conta do que resumir o que efetivamente acontece nessa noite, a começar pelo desfecho, que o leitor terá sozinho de imaginar. Paulo e Beatriz quase não falam, um mais contido que o outro. Ele fracassou em mais de um relacionamento, teve sua rebeldia adolescente domada pelo pai e se deixa levar em alguns momentos por aquela arrogância patética dos gênios decadentes. Beatriz, por sua vez, perdeu a família inteira — pai, mãe e irmão — num acidente de carro e tampouco teve sorte no casamento. Ambos estão divorciados e temem novas frustrações amorosas, por isso a ansiedade, a dúvida e a trava. Como não conseguem avançar no relacionamento, a história que constroem juntos é tênue, e o que existe de mais concreto no encontro é o que vai em suas cabeças. Resulta que o leitor fica sabendo muito mais dos personagens do que eles conseguem descobrir um sobre o outro.
A narrativa tem uma estrutura bastante complexa: um narrador em terceira pessoa costura a ação presente mesclando os dois pontos de vista principais, que emulam o diálogo interior de cada um dos personagens. O passado é construído com flashbacks que vêm da memória dos dois. Há ainda uma projeção de futuro: Beatriz imagina a todo momento como irá descrever à amiga Doralice a experiência que está vivendo nessa noite, solução que garante alguns momentos de humor e conseqüente descontração numa história de uma densidade que chega em alguns momentos a ser claustrofóbica.
A edição da Record vem numa bonita e sóbria capa em azul, num contraste talvez proposital com o vermelho usado em O filho eterno. O título, pinçado da frase de abertura, fica a meio caminho entre a sacada genial e um daqueles conceitos fabricados da auto-ajuda, o que reflete de certa forma a entressafra criativa de Paulo.
Em resenha de Um erro emocional para a Folha de S. Paulo, o jornalista e professor Felipe Pena usa dois conceitos aparentemente contraditórios para qualificar a prosa de Tezza. Ele afirma que o novo livro “traz de volta a narrativa delicada do escritor”, para logo adiante ressaltar seu “discurso suntuoso”. Ora, é difícil imaginar algo que seja a um só tempo “delicado” e “suntuoso”, mas os dois adjetivos convivem harmoniosamente neste caso.
A suntuosidade do discurso é evidente. Tezza segue apostando nas frases longas e de ritmo lento, sua marca registrada e que já se observou estar na contramão de uma tendência atual. Mas essa característica, longe de se configurar um demérito, com ele se transforma em virtude estilística. Coordenar diferentes vozes de forma simultânea é outro luxo, um exercício que exige talento e competência narrativa, e isso Tezza tem de sobra. Há contudo uma dissonância: para emular um diálogo interior a duas vozes, Tezza usa uma pontuação mais livre, desafiando a ortodoxia gramatical, o que pode trazer alguma dificuldade ao leitor. Um bom exemplo são os travessões, como se pode ver no belo trecho escolhido para ilustrar esta resenha. A idéia talvez tenha sido mesclar as vozes de modo a que elas se confundissem e formassem uma unidade. Mas nem sempre o leitor consegue abstrair o tanto que o autor quer, e em vários momentos fica perdido.
Quanto à delicadeza citada por Pena, ela tem origem na concorrência de vários outros fatores: sutileza, bom gosto, elegância, ourivesaria dos detalhes são alguns deles. Tezza não quer chocar o leitor, mas seduzi-lo. Para tanto, revela pouco e esconde muito. Ele não pretende ser transgressor, mantém o léxico num padrão elevado, está inclusive bem mais comedido no uso de palavrões (em contraste com a gratuidade com que eles aparecem em O fotógrafo). Toda sua força criativa está concentrada na história que quer contar da maneira mais original e melhor possível e buscando ao máximo a participação do leitor.
Um erro emocional é um livro angustiado e angustiante em cuja essência está o velho conflito da incomunicabilidade. Foi com ele que um dos melhores escritores brasileiros da atualidade conseguiu driblar um adversário difícil e retomar às suas origens.