O romance sempre foi um gênero bastante eficaz para se discutir tanto a natureza humana quanto os problemas sociais. Apesar de, muitas vezes, ser olhado com suspeição — os autores usam a imaginação para escrevê-los –, possibilita discussão intensa, e livre das amarras do academicismo, revelando que ficcionistas são mais capazes de pilotar nesta pista de derrapagens que é a linguagem, do que autores de obras ditas “sérias”. Na verdade, ninguém melhor do que o poeta ou o romancista para conviver com os percalços de um terreno nada seguro.
Outro ponto interessante, na atual literatura brasileira, é a economia de páginas e palavras, principalmente entre os escritores recentes, onde se nota a exiguidade narrativa, talvez consequência do baixo investimento das editoras, que temem o não retorno financeiro, sempre problemático em sociedades que investem muito pouco em cultura e leitura.
Lucas Lazzaretti, em O escritor morre à beira do rio, passa indiferente por todas essas questões. Num romance de 356 páginas, com parágrafos longos, paginação larga e fonte até certo ponto pequena, discute a natureza humana e a relação entre personagens e paisagem, sem esquecer a relação política entre os homens e os grupos humanos, num condomínio de temporada habitado por poucos moradores durante a maior parte do ano.
A chegada de um personagem estranho, que o narrador denomina de “o escritor”, desequilibra o já precário fio que regula as vidas dos poucos aposentados que vivem no local e dos trabalhadores do entorno. De sua janela, no escuro da noite, este narrador observa os hábitos do homem recém-chegado. Abre-se assim a cortina, entrando em cena, de modo disfarçado, a questão do que é, na verdade, a criação literária. No fundo, não se sabe quem é realmente o escritor, se o narrador ou o novo morador.
Outro dado, que marca a narrativa com a face da violência, é a presença do caseiro Teno e de sua mulher, Nina. Trindade, Cotia e Tibério também impregnam o ambiente com características que transcendem a realidade comum.
Como na literatura dostoievskiana, os personagens assumem uma intensidade inesperada, mesmo que suas características os destinassem ao lugar comum dos homens sem pretensões. Vejamos esta passagem: “O escritor anda pela madrugada. Cerca de duas semanas depois de sua chegada, com aparições esporádicas em algumas noites, fumando, escrevendo e andando”. Ele, mais oculto do que à mostra, é fiel ao ambiente noturno. A maior parte dos acontecimentos narrados tem lugar num inverno rigoroso, típico da região sul, o que acentua a introspecção. O narrador é outro personagem complexo, de quem passamos sentir desconfiança.
O condomínio de casas é margeado por um rio, bastante presente na vida local, e por uma represa, que com suas comportas a abrir e fechar regula o volume de água deste rio. Ela e uma usina são componentes ameaçadores, com seus ruídos que reafirmam o universo noir do romance. Há ainda a inquietação vinda do mundo exterior, isto é, da capital e das cidades vizinhas, com a chegada de gente que vem ao condomínio para a temporada ou em dias de feriado, provocando uma acentuada mudança no comportamento dos seus moradores, uma espécie de esgarçamento do fio de vida de cada um deles.
Mas é com a entrada em cena de outra narrativa, já com o romance bastante avançado, que se pode entender o lugar de cada um e do próprio escritor na ambiência local. Este narrador voyeur acaba por conseguir um manuscrito, e a história trazida por ele entra em cena, numa criação em abismo, aliás, mais um, porque abismos é o que não falta no romance. A metaliteratura, às vezes tão esgotada, assume vigor renovado. Por mais de uma centena de páginas o livro atinge outro patamar, revelando verdades de outros tempos e de outros lugares do Brasil, principalmente de uma cidade pequena. Através de uma narrativa policial, o microcosmo serve de molde para o nosso país, submerso nas trevas dos interesses econômicos, no patrimonialismo e na violência política e policial. Não faltam pancadas na já malfadada ditadura militar e naqueles que trilharam os caminhos abertos por ela.
Lazzaretti consegue tirar leite de pedra, sobretudo quando descreve a vida no condomínio, seus personagens, e as pequenas ações praticadas por eles. Talvez o valor de um autor não esteja na capacidade de inventar ou narrar grandes histórias, mas em saber conduzir uma narrativa quando o assunto parece repetitivo e sem interesse. A violência presente na natureza humana e, ainda, em personagens de quem não esperávamos tais ações, surpreende. E não deixa de ser verossímil.
Um bom livro que, se bem explorado pela crítica, estudado e discutido, pode trazer novo sopro para a nossa literatura, mesmo que momentaneamente livros e histórias pareçam perder importância num universo contaminado por falsários da narrativa, criadores de casos em redes sociais.