Imre Kertész, cujo nome faz com que a pronúncia e a escrita sejam a todo o momento verificadas, é autor renomado e alguns livros já publicados no Brasil. Como escritor, uma de suas principais características é sinalizar, em seus romances, quem são os personagens, a quais histórias eles se filiam, bem como ambientar o cenário existente em cada uma das narrativas. No caso de Eu, um outro, essa condição se subverte. E o motivo é perceptível já a partir do título do livro. É um autor em busca de um outro. Talvez um outro Kertész, talvez um outro escritor; ora é alguém ligado ao seu passado, ora é alguém ligado à ficção. As estratégias são variadas, mas a idéia central do livro permanece: “Eu é um outro”.
A última frase do parágrafo anterior está entre aspas porque é uma citação do poeta francês Rimbaud. A escolha, mais conceitual do que aleatória, reflete, em verdade, a preocupação do escritor com a idéia de alteridade. A proposta do livro, nesse sentido, é a percepção de mundo a partir do outro. No relato, o leitor é conduzido pelos descaminhos da narrativa de Kertész na elucidação de questões do nosso tempo, do cotidiano ao holocausto, passando, claro, pelas suas memórias afetivas, elemento fundamental na formação de seu caráter, de sua disciplina e, ao fim e ao cabo, de sua natureza como escritor. Em Eu, um outro, a possibilidade de uma ilha se esgota, apesar de o personagem se observar, às vezes, como exilado.
Este exílio, em verdade, se dá a partir do momento em que o escritor observa, estupefato, a brutalidade dos fatos. Não é preciso viajar fisicamente para estar longe de si mesmo. Tal como diante de um quadro de Francis Bacon, a reação jamais é passiva. Longe disso, procura interferir no cotidiano com as palavras que projetam significado no universo que o cerca. Em contrapartida, essa condição impõe ao narrador-autor uma espécie de mantra, que é o questionamento que faz de si mesmo. “Às vezes, ocorre-me a pergunta: quem sou eu? O que sou eu? E qual é a minha história particular?” A essas indagações, em certo sentido metafísicas, acrescentam-se outras dúvidas, mais relacionadas à importância da importância de Kertész como escritor. A certa altura do livro, quando este se assume majoritariamente autobiográfico, ele rememora a época em que pensava que ninguém o lia. E mesmo depois quando soube que era lido, por algum motivo, associou essa informação à possibilidade de ser rejeitado exatamente por conhecerem sua obra.
Mosaico estilístico
Nesse ponto, vale a pena observar mais de perto quais são os elementos que constituem a obra desse escritor. No caso específico de Eu, um outro, até mesmo pela natureza do livro, há períodos em que o texto torna-se essencialmente autobiográfico, assim como há momentos em que a prosa assume o tom de um ensaio, com estilo e verniz. Com esse mosaico de referências estilísticas, é certo que o autor desenvolve uma obra cuja interpretação é sempre particular, pendendo, portanto, à idealização que se faz do outro. É dessa forma que o tema se torna recorrente. Entretanto, Kertész utiliza algumas estratégias para transformar o livro em peça mais rica e menos repetitiva junto aos leitores. É verdade que seu texto, severamente entrecortado, não é convidativo ao ambiente prosaico e carente de imaginação do mundo das imagens. Medíocre, o cotidiano do tempo presente, célere e célebre, não comporta essa literatura como peça crítica ao seu modo de vida. Ainda assim, a literatura permanece pois põe o leitor a refletir sobre a existência de um outro que depende de si mesmo, da forma como encara a realidade, como se lê a seguir:
Impressões passageiras de Frankfurt. A feira de livros. Fui devidamente carimbado como mercadoria à venda; leituras públicas de minhas obras, das quais eu mesmo não entendo palavra alguma, enquanto sempre espero o pano cair (embora não faça idéia de que pano se trata e de onde deveria cair), são absurdos agradáveis.
Em livro lançado recentemente, o escritor Marcelo Backes também faz uso dessas longas digressões e, por extensão, dos parágrafos considerados “centopéicos” pelo leitor médio, uma vez que o aposto geralmente é extenso se comparado com a prosa mínima que se pratica hoje em virtude das novas tecnologias. Contudo, a despeito das inovações do tempo presente, o autor prefere aludir a escritores do passado, como é o caso de Kafka e de Wittgenstein.
Tanto no escritor tcheco como no filósofo austríaco, a referência se dá no campo das idéias e das afinidades eletivas. É dessa forma que o Kertész põe em debate a concepção do filósofo acerca do judaísmo; do mesmo modo que “introduz” o pensamento de Kafka ao falar do mundo em que vive e da condição humana:
Pensar demais nos torna infelizes ou místicos. Ao final das contas, Wittgenstein era místico, tal como era Kafka. Só que ele trabalhava com outra matéria: a lógica. Tinha que derrubar mundos inteiros, até que — como uma pedra preciosa cintilante — de repente debaixo das ruínas lampejasse sua fé. Posso imaginá-lo nesse momento, com o tijolo na mão: fica olhando para ele e não sabe que nome lhe dar. O que ele sabe é que aconteceu um milagre e ele foi salvo.
De certa maneira, a literatura de Kertész seria outra, não fosse o estilo adotado pelo autor. Explica-se. A despeito de se tratar de uma obra autobiográfica, em nenhum momento, o autor dá pistas evidentes e claras a respeito disso. O que ele apresenta, em vez disso, são pontos que confundem o leitor que imagina um livro de memórias mais água-com-açúcar, com revelações diretas aos eventos dos quais o protagonista esteve presente. Nesse aspecto, nota-se um texto mais seco, às vezes áspero, mas sempre potente no que se refere ao significado, que os teóricos em literatura poderiam classificar como pós-moderno, posto que possibilita uma série de interpretações possíveis. Ao leitor comum, desvinculado da academia, a compreensão pode, justamente por isso, ser mais pertinente e, quiçá, saborosa.
Em Eu, um outro,Imre Kertész posiciona-se diante do mundo, esse espetáculo ao vivo e a céu aberto, de forma inteligente e sábia. Sem abrir mão de uma abordagem particular, o autor revisita alguns acontecimentos e nomes costumeiramente citados quando se trata da história cultural do século 20 de maneira não corriqueira. É por isso que o livro se faz singular, e não somente porque remete a um autor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura (no caso, em 2002). De certa forma, é como se o autor húngaro olhasse no espelho e dissesse: o escritor é outro.