O escritor dos fantasmas

A obra de Isaac Bashevis Singer dá sempre uma dimensão profunda e humana a mais inverossímil das situações
Ilustração: Ricardo Humberto
01/08/2004

Em 10 de dezembro de 1978, na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura, Isaac Bashevis Singer abriu seu discurso de agraciado satisfazendo uma curiosidade antiga de forma lapidar: “As pessoas freqüentemente me perguntam ‘por que você escreve numa língua moribunda’? E eu quero explicar isto em rápidas palavras. Primeiro, gosto de escrever histórias de fantasmas, e nada combina melhor com um fantasma do que uma língua em extinção. Quanto mais morta a língua, mais vivo o fantasma. Fantasmas adoram o iídiche e, pelo que sei, todos eles falam esse idioma. Segundo, não só acredito em fantasmas, como também em ressurreição. Tenho a certeza de que os corpos de milhões de falantes do iídiche um dia se levantarão de seus túmulos e sua primeira pergunta será: ‘Existe algum novo livro em iídiche para se ler?’ Para eles, o iídiche não estará morto. Terceiro, por 2000 anos o hebraico foi considerado uma língua morta. De repente, ele se tornou estranhamente vivo. O que ocorreu com o hebraico pode também ocorrer um dia com o iídiche, embora eu não tenha a mais tênue idéia de como este milagre possa acontecer. Há ainda uma quarta e menor razão para não abandonar o iídiche, e ela é: o iídiche pode até ser uma língua em extinção, mas é a única que eu conheço bem. Ele é a minha língua-mãe, e uma mãe nunca estará de fato morta”.

A honraria suprema que pode almejar um escritor deve a Singer essa peculiaridade histórica: pela primeira e única vez, o Nobel premiou uma obra toda ela escrita na língua dos judeus da diáspora, um dialeto baseado no alto-alemão do século 14, acrescido de elementos hebraicos e eslavos. E, ao conhecer a ficção de Singer, mesmo sem saber previamente um mínimo de cultura judaica ou de iídiche, o leitor gói (não-judeu) perceberá, quase que intuitivamente — talvez até mesmo por artes de um atavismo mais (ou menos) remoto —, que não existia outra possibilidade para o autor, tanto se confunde sua própria biografia com as histórias por ele contadas. O iídiche é também, nas palavras de Singer, “um idioma do exílio, não ligado a um território”; dos judeus obrigados, por várias e diferentes motivações — e quase sempre com um componente de violência —, a viver errantes ou apátridas; do povo orgulhoso de suas raízes que, expulso com freqüência da terra natal, mantinha em outro país, através dos costumes algo exóticos e também da língua, sua identidade e tradição.

No ano em que se comemora o centenário do nascimento do notável escritor, a Companhia das Letras edita uma obra importante que ainda não havia merecido publicação no Brasil. Trata-se de The Collected Stories, lançado nos Estados Unidos há vinte e dois anos e que na edição brasileira ganha agora o título de 47 contos de Isaac Bashevis Singer. A seleção é do autor, publicada originalmente em inglês, embora todas as histórias tenham sido de fato concebidas em iídiche. O volume é um cartapácio de 720 páginas, vestidas de um despojamento contrastante ao requinte habitual das edições da Companhia das Letras, mas com o nítido e louvável propósito de baratear o custo do projeto e, dessa forma, tornar a obra acessível a um número maior de leitores brasileiros. Mesmo com a contenção orçamentária, ainda assim é uma edição bem cuidada. Além dos 47 contos, participam do volume um brilhante ensaio de Moacyr Scliar, O mundo de Singer, e uma nota do autor, ambas prefaciando a antologia de forma simples, mas competente. Ao final, um glossário mínimo traz inclusive algumas receitas da culinária judaica.

Já no prefácio da obra, o leitor começa a ser seduzido por uma das mais ricas contribuições vindas de escritor judeu à literatura universal. Ao longo de suas sete páginas, Scliar conta, entre outras coisas, que Singer nasceu Icek Hersz Zynger, a 14 de julho de 1904, em Radzymin, lugarejo polonês próximo a Varsóvia, filho e neto de rabinos ligados ao hassidismo (ou chassidismo), uma seita inspirada na Cabala que remonta à Europa oriental do século 18 e surgida como um contraponto mais moderno à austeridade elitista do judaísmo tradicional. A mãe, por sua vez, era filha de um rabino mitnagued, ou seja, opositor do hassidismo e, portanto, fiel à ortodoxia religiosa. Representante de uma corrente mais pobre e menos instruída, que via Deus em todas as coisas e acreditava no canto e na dança para alcançar a divindade, o pai era também o ser afável que combinava uma vida inteira dedicada à oração e ao estudo com a alegria das celebrações religiosas e a contação de histórias, para o que juntava as pessoas da comunidade em sua casa. A mãe, por sua vez, criatura culta e inteligente, mantinha-se distante e reservada. Prensado entre esses dois modelos, o menino Icek cresceu solitário e introspectivo. Chega a ser óbvia a conclusão de que grande parte da ficção de Singer tem origem nas histórias ouvidas na sala da casa de sua infância em Varsóvia, e eram hassides os seus protagonistas. Contudo, ao mudar o nome em 1925, foi a mãe, que se chamava Batsheva, a homenageada no “Bashevis” que passou a assinar.

Dois irmãos mais velhos também têm papéis importantes na biografia de Singer: Israel Yehoshua, o escritor relativamente bem conhecido de Os irmãos Aschkenazi, que incentivou o caçula em seus primeiros passos na literatura, e Hinde Esther, histérica e epiléptica, cuja patologia veio a inspirar várias de suas futuras personagens.

A carreira literária de Singer vingou de fato depois de ele ter emigrado para os Estados Unidos, em 1935, seguindo os passos do irmão Israel e abandonando na Europa a mulher e o único filho. Foi nesse ano que se tornou redator do Forverts (The Jewish Daily Forward), um jornal editado em iídiche onde publicava suas novelas em capítulos seriados, à maneira dos folhetins. Seguiram-se vários anos de paralisia: o descrédito quanto à existência de leitores interessados na língua escolhida e a dúvida quanto a sua própria preferência temática — “não havia lugar para os demônios em Manhattan ou Coney Island” —, fatos talvez agravados com a privação financeira imposta pelo jornalismo, fizeram com que Singer desistisse por vários anos de escrever ficção, só retornando a ela em 1945, motivado pelas notícias da Segunda Guerra e da cultura judaica sendo destruída por ela. A partir de então, até a morte em 1991, não parou mais de produzir. A família Muskat, O mágico de Lublin, Inimigos, uma história de amor, Yentl, o menino da yeshiva, O Golem e No tribunal de meu pai são alguns dos seus títulos mais conhecidos, muitos deles já editados no Brasil.

Singer sempre se considerou um contador de histórias. Assim como nosso Erico Verissimo, que também se autodefinia com essa mesma singeleza, em sua vasta obra, o romance tem um lugar destacado, e três deles — The Manor, The Estate e A família Muskat — são épicos freqüentemente comparados à saga Os Buddenbrooks de Thomas Mann. Contudo, foi na brevidade das short stories — contos e novelas — que Singer encontrou sua melhor forma de expressão. Também se interessou pela literatura infantil e, na seqüência do discurso por ocasião da entrega do Nobel, fez das justificativas dessa opção um espetacular inventário das próprias convicções literárias: “Existem quinhentas razões de eu ter começado a escrever para crianças, mas, para poupar tempo, mencionarei apenas dez delas. Número 1) As crianças lêem livros, não resenhas. Número 2) As crianças não lêem para encontrar sua identidade. Número 3) Elas não lêem para se livrar de culpa, para matar a sede de insurreição ou para sair da alienação. Número 4) Elas não usam psicologia. Número 5) Elas detestam sociologia. Número 6) Elas não tentam entender Kafka ou Finegans Wake. Número 7) Elas ainda acreditam em Deus, família, anjos, diabo, bruxas, demônios, lógica, claridade, pontuação e outras coisas obsoletas. Número 8) Elas gostam de histórias interessantes, não de comentários, guias ou notas de rodapé. Número 9) Quando um livro é chato, elas bocejam abertamente, sem qualquer vergonha ou receio. Número 10) Elas não esperam que seu bem-amado escritor redima a humanidade. Jovens que são, elas sabem que isso não está em seu poder. Apenas os adultos têm essas ilusões infantis”.

Na nota de abertura ao 47 Contos, Singer repete alguns desses argumentos, enquanto nos deixa outras pérolas de sua preocupação estética: “(o conto) constitui o desafio extremo para o escritor criativo”; “tem de ter sempre como alvo direto o seu clímax”; “tem de ter um projeto definido e não pode ter o que se chama de ‘fatia da vida’ no jargão literário”; “a brevidade é sua própria essência”; “os mestres do conto, Chekhov, Maupassant, assim como o sublime autor da história de José no Livro do Gênesis sabiam exatamente para onde estavam indo”; “a ficção em geral não deve nunca ser analítica”; “a literatura genuína informa enquanto entretém”; “consegue ser ao mesmo tempo clara e profunda”; “aceita ser comentada por outros, mas nunca tenta explicar a si mesma”; “tem o poder mágico de fundir acaso com objetividade, dúvida com fé, as paixões da carne com os anseios da alma”; e por aí vai. No entanto, alguns dos contos que foram selecionados e por ele mesmo classificados como tal, são na realidade exemplos de novela, palavra aqui empregada na acepção da novella italiana ou da “noveleta” de alguns teóricos: aquela narrativa breve situada a meio caminho entre o conto tradicional e narrativa longa de conflito único, esta já consagrada com idêntico nome. Gimpel, o bobo, Os pequenos sapateiros, Yentl, o menino da yeshiva e O violinista morto pertencem a este grupo. Também ocorre de algumas narrativas explorarem mais de uma trama. O caso de Lua e loucura, que fecha a antologia, é emblemático, ao contrariar, sem maiores pruridos, um dos preceitos ditados pelo próprio autor: junta histórias que não têm uma ligação mais evidente entre si além do fato de terem saído das conversas entre os mesmos dois mendigos. Mas, em se tratando de Singer, nem o eventual desvio formal consegue anular o mérito do texto ou sugerir seu enquadramento em qualquer outro gênero.

Para além da escolha original do idioma, do perfeito domínio da técnica narrativa e da peculiaríssima visão de literatura, Singer também deve seu brilho à temática eleita e a sua própria condição de judeu migrante. Embora tenha produzido quase toda a obra na América (a exceção é a novela Satã em Goray, escrita e publicada em Varsóvia, em 1932), seu universo ficcional remete sempre à infância e adolescência vividas na Europa. É de lá que vêm quase todos os elementos predominantes de seu inimitável estilo e também a intenção de perpetuar um mundo morto, o das pequenas comunidades judias das aldeias polonesas.

Em primeiro e honroso lugar, está o folclore judaico, este fortemente ligado ao misticismo e à magia. Não é de graça que muitos comparam a obra de Singer ao realismo fantástico sul-americano, especialmente ao de Gabriel García Márquez, e a protagonista de Henne Fogo, mulher de personalidade bizarra que começa a atrair o fogo para objetos próximos a ela e acaba carbonizada em condições estranhíssimas, é um bom exemplo dessa coincidência. Fenômenos psíquicos, clarividência, premonições e telepatia são recorrentes. Os dybbuks — almas penadas e travessas que costumam se apossar do corpo das pessoas — aparecem em várias das histórias, inclusive protagonizando sessões de exorcismo. Mas os personagens, por mais excêntricas que sejam suas crenças e atitudes, jamais se transformam em caricatura ou alvo do escárnio do autor. É que Singer dá sempre uma dimensão profunda e humana a mais inverossímil das situações, além de crer seriamente na espiritualidade e, sobretudo, naquilo que escreve. Ele narra usando o mesmo despreconceito com que o menino Icek ouvia as histórias do folclore de seu povo, na casa dos pais em Varsóvia.

A educação de Singer, toda ela guiada pelo estudo religioso, transformou-se noutra fonte inesgotável de sua inspiração. Mesmo não seguindo a vocação familiar ao rabinato, ele soube explorar como poucos artistas o significado dos símbolos mais caros ao judaísmo. Singer não faz questão de explicar ou atenuar o sentimento de “povo escolhido” próprio de sua gente, tampouco faz apologia com ele; ao contrário, vale-se de uma exemplar naturalidade (sinceridade, leia-se) quando narra o distanciamento que os patrícios querem guardar dos gentios e de seus hábitos, por considerá-los impuros ou demasiado mundanos. Poucos judeus têm a coragem de assumir francamente essa convicção, preferindo quase sempre tergiversar sobre ela. Fiel à máxima de que “a literatura genuína informa enquanto entretém”, Singer também acaba proporcionando ao leitor gói um fantástico painel da cultura judaica, notadamente através dos contos que têm a Polônia como cenário.

A terceira característica marcante em Singer é o erotismo. Sendo os personagens moldados em carne e osso, mas principalmente em sangue, movidos por paixões intensas e fantasias muitas vezes sobre-humanas, era de se esperar que o sexo tivesse um papel de destaque na sua ficção. Tal como acontece na vida real, ele está latente nos menores acontecimentos e, ao emergir, vem com toda a carga represada, sem contudo trair a espontaneidade. Além dessa recorrência natural, por assim dizer, à condição humana, possessões demoníacas têm sempre algo de luxuriante, tanto quanto as tentações que fazem os judeus por vezes perder a trilha determinada na Torá. Ao longo da antologia, muitos são os desvios que têm motivação sexual. Evidentemente, o erotismo tornou Singer um escritor popular, ao tempo em que também escandalizava alguns de seus leitores. Sobre isso, ele declarou uma vez: “Claro que a vida não é só feita de sexo, mas eu gosto de escrever sobre sexo tal como Dostoievski gostava de escrever sobre o crime”.

Quarto grande componente da obra de Singer, o humor, e nele talvez a característica mais evidente de qualquer literatura de ascendência judia. O humor judaico é único, incomparável, forjado pela necessidade constante de afastar o desespero nas situações mais adversas às quais foi submetido esse povo ao longo dos séculos, ou, em outra das sugestivas frases do próprio Singer, decorrente da capacidade que só o judaísmo tem de “encontrar felicidade onde outros apenas veriam miséria e humilhação”. Na perfeita definição de Moacyr Scliar, ele é “um humor peculiar, contido, melancólico, filosófico; não é humor para gargalhadas, antes para um sorriso”.

Costurando esses ingredientes ou, muitas vezes, apenas movendo-se quase que imperceptivelmente sob eles, o pessimismo de Singer quanto à condição humana atravessa toda a sua obra.

Os 47 contos podem ser divididos em dois grupos principais: os ambientados na Europa oriental e os que se passam na América. Mais do que refletir a própria vida de Singer, a divisão baseia-se numa notável transformação pela qual passa o narrador quando muda o continente. Na Europa ele é um homem simples, crédulo, místico, ligado à terra, às profissões mais rudimentares, temente a Deus e seguidor dos mandamentos originais de sua tradição. As narrativas de caráter fantástico têm todas esse cenário. Quando deixa Frampol, Shidlovtose, Lapschitz ou qualquer outra aldeia rumo a Varsóvia, já sofre um grande choque ao adentrar num mundo maior, citadino e bem mais propício à assimilação cultural. Ali não existe outra alternativa para ele a não ser o gueto. Mas, ao atravessar o Atlântico, é um narrador bem mais complexo e cético que toma as rédeas: o escritor pobre e intelectual que precisa administrar a penúria econômica e viver com dignidade num país movido a dinheiro. As histórias de seu povo passam a ser apenas reminiscências — poderosas, é bem verdade — e não mais a matéria-prima de sua criação. Na América, ainda que não refiram explicitamente a preferência por guetos, os protagonistas são sempre judeus, alguns mais, outros menos assimilados, mas todos patrícios, reféns do gregarismo típico desse e de outras tantas minorias sociais.

Independentemente de qual seja o narrador ou o cenário, a condição judaica ainda é a mola mestra da literatura de Singer, e o eterno contraponto entre os dois mundos retratados — um original e outro adquirido — vai sendo constantemente reforçado pelos vários ingredientes autobiográficos que compõem as narrativas. Como acontece com todos os grandes mestres, ao narrar o mundo que conhece bem, acaba comovendo o universo.

A estupenda história de Os pequenos sapateiros, um dos grandes momentos da coletânea, é também um exemplo perfeito do que significava para um judeu deixar suas raízes para viver em outro lugar. Desde seu homônimo fundador da linhagem, e por quinze gerações, a profissão de sapateiro passou de pai para filho na família de Abba Shuster. Era o que eles sabiam fazer, e faziam muito bem, até que o primogênito dos sete filhos de Abba sonhou com uma vida melhor na América e emigrou. Atrás dele, um após outro, todos os filhos sapateiros foram deixando Frampol para tentar a sorte nos Estados Unidos. Aqui prosperaram, tornaram-se conhecidos e respeitados como fabricantes de calçados, fizeram fortuna, constituíram família, construíram suas sete casas nos arredores de Nova Jersey, todas às margens de um mesmo lago, viviam felizes, mas não conseguiam convencer o pai, agora viúvo e solitário, a vir morar com eles. Quando estourou a Segunda Guerra e o anti-semitismo grassou pela Europa, a aldeia de Frampol foi destruída. Abba não teve mais como resistir e acabou vindo ao encontro dos filhos. Os horrores da guerra, o périplo a que foi obrigado para conseguir fugir e a epopéia da viagem oceânica foram provocando no já idoso Abba uma confusão mental que começou quando ele passou a comparar o que vivia com passagens da Bíblia:

“Durante o dia, Abba vigiava por uma escotilha em seu catre. O navio subia como se fosse chegar ao céu, e o céu roto despencava como se o mundo estivesse voltando ao caos original. Aí o navio tornava a mergulhar no oceano, e mais uma vez o firmamento se dividia das águas, como no Livro do Gênesis. As ondas eram amarelas de enxofre e negras. Agora elas serrilhavam no horizonte como uma cadeia de montanhas, lembrando Abba das palavras do salmista: ‘As montanhas saltavam como carneiros, os morros como cordeiros’. Depois iam se erguendo de novo, como na miraculosa Separação das Águas. Abba tinha pouco estudo, mas as referências bíblicas rondavam sua cabeça, e ele se viu como o profeta Jonas, que fugiu perante Deus. Ele também estava no ventre de uma baleia e, como Jonas, rezava a Deus por proteção. Então lhe parecia que aquilo não era oceano, mas um deserto ilimitado, cheio de serpentes, monstros e dragões, como está escrito no Deuteronômio.”

Quando finalmente aportou, já não compreendia coisa alguma:

“O navio já estava ancorado no porto de Nova York, mas Abba não tinha a mais vaga noção disso. Viu imensos edifícios e torres, mas tomou-os pelas pirâmides do Egito. Um homem alto de chapéu branco entrou na cabine e gritou-lhe algo, mas ele continuou imóvel. Por fim, ajudaram-no a se vestir e levaram-no para o porto, onde seus filhos e noras e netos estavam esperando. Abba ficou desnorteado: uma multidão de proprietários de terra poloneses, condes e condessas, meninos e meninas gentios, saltou em cima dele, abraçando-o e beijando, gritando em uma estranha língua que ao mesmo tempo era iídiche e não era iídiche.”

Entretanto, não foram os filhos, nem a recepção calorosa, tampouco os cuidados e o conforto de que agora dispunha o que salvou Abba da decrepitude. Ao reencontrar num armário os velhos apetrechos de seu ofício, trazidos consigo da Europa, e retomando com eles a ancestral atividade de sua família, mais uma vez conseguiu agregá-la em torno de si: aos domingos, o pai e os sete filhos passaram a consertar sapatos, agora por mero diletantismo, cantando a mesma canção que os distraía durante o trabalho em Frampol.

Avô e neto é outra belíssima narrativa que tem no confronto entre dois mundos — agora as duas gerações anunciadas no título — o seu fio condutor. A história se passa em Varsóvia, quando a Polônia estava sob domínio russo e os judeus começavam a sofrer com os pogroms. O avô é um hassidista que nunca fez outra coisa na vida a não ser dedicar-se às tradições religiosas de sua gente. Numa bem-humorada passagem, exemplar da característica já referida, o narrador sintetiza:

“Em criança, Reb Mordecai Meir já havia entendido que se alguém quer ser um judeu de verdade não tem tempo para mais nada. Louvado seja Deus, sua esposa, Beyle Teme, entendera isso. Nunca lhe pedira para ajudar na loja, para se ocupar dos negócios, para assumir o encargo de ganhar a vida. Ele raramente tinha dinheiro no bolso, exceto alguns guilderes que ela lhe dava semanalmente para esmolas, para o banho ritual, livros, rapé e fumo do cachimbo.”

O avô não compreende a língua dos gentios nem acredita que a situação para os judeus possa vir a se tornar tão grave. O neto, ao contrário, perfila-se com os rebeldes que começam a desafiar a autoridade do czar, prenunciando a revolução bolchevique. Ele procura o avô, depois de anos de afastamento, a quem só faz trazer apreensão e sofrimento com suas idéias revolucionárias e sua atitude desafiadora da própria lei judaica. O rapaz acaba morrendo num confronto com a polícia, e o conto tem um final soberbo: o avô dizendo o Kadish (oração aos mortos) sem o quorum necessário e para o neto que ainda não havia sido enterrado, contrariando assim os preceitos do Talmude para que possa fazer a homenagem, enquanto o policial russo o humilha e debocha de sua crença:

“ ‘Ei, você aí, judeu, cachorro velho, está falando com quem, com o seu Deus?’, perguntou o policial. De alguma forma, Reb Mordecai Meir entendeu essas poucas palavras. O que será que ele pensa? Como fazer para ele entender? Reb Mordecai Meir defendeu-se em seus pensamentos. Como nenhum mal pode vir de Deus, aqueles criados à Sua imagem não podem ser completamente maus. E disse ao policial: ‘Sou judeu, sim. Rezo a Deus’.

Eram só essas as palavras gentias que Reb Mordecai Meir conhecia.”

O fim remete ao começo, e agora não é mais o “sorriso” da definição de Scliar o que a narrativa provoca no leitor, mas perplexidade diante do sofrimento da qual não tem como fugir. O desencanto de Singer atravessa a última linha e faz com que o conto se prolongue além dela.

Outra narrativa que merece destaque por conta de sua popularidade é Yentl, o menino da yeshiva. Peça escrita em 1974 em parceria com Leah Napolin, ganhou uma versão cinematográfica, em 1983, dirigida e estrelada por Barbra Streisand e foi então publicada em forma de novela. No início do século 20, uma garota fascinada pelo conhecimento religioso se traveste de menino para freqüentar uma yeshiva, ou seja, escola destinada ao estudo do Talmude e da Torá, um privilégio masculino na tradição dos judeus. Em meio às peripécias todas a que se submete para esconder o verdadeiro sexo, se apaixona por um colega, Avigdor, o que acaba provocando no pobre rapaz um tumulto íntimo de proporções bíblicas, quando ele descobre em si idêntico sentimento. A idéia não é original na literatura, tampouco no cinema, mas em Singer o componente religioso traz um tempero especial a ela.

Não menos importantes e também populares são os contos O Spinoza da rua do Mercado, Um amigo de Kafka, Breve sexta-feira, Uma coroa de penas, entre vários outros. O invisível, Zeidlus, o papa e O último demônio têm como narrador o próprio diabo, enquanto que, em A sessão espírita, o refinado humor de Singer é o que predomina.

Um único senão merecerá comentário. Mesmo que, como já se falou, Singer tenha escrito toda a obra em iídiche, ele publicou quase sempre em inglês. Cioso de que a tradução fosse o mais fidedigna possível, envolvia-se diretamente com o trabalho dos tradutores, o que nos permite deduzir que um original em inglês com o aval do próprio autor é base mais do que idônea para qualquer versão. A tradução de José Rubens Siqueira para os 47 contos é correta, bem realizada em quase toda a extensa obra, embora estranhamente, em alguns momentos, soe demasiado literal, o que atrapalha a fruição. Talvez porque, sendo o inglês uma língua que prima pela síntese e muitas vezes não considera nociva a repetição de elementos, o tradutor tenha algumas vezes deixado de levar isso em conta, parecendo apressado ao gosto de um leitor mais exigente. A boa tradução muitas vezes demanda um trabalho de reescrita para que o texto vertido se mantenha à altura do original. Por outro lado, a linguagem de Singer é sempre muito direta, simples, sem grandes sofisticações, e justamente esse aspecto é o que pode trair um tradutor mais afoito. A simplicidade aliada a um bom resultado é sempre algo difícil de se conseguir em qualquer dos estágios da criação artística, e disso a tradução também não escapa.

Isaac Bashevis Singer é um artista maiúsculo, surpreendente, que recebe, com o lançamento no Brasil de seus 47 contos, uma edição compatível ao seu talento e posição de honra na literatura universal. Ganham os leitores, principalmente os que ainda não o encontraram, um título obrigatório. Tendo já o Nobel no currículo, e com ele o reconhecimento máximo, Singer demonstra, nas palavras finais da apresentação da obra, o pessimismo e a lucidez que caminham juntos em sua literatura: “Na melhor das hipóteses, a arte não pode ser mais que um meio para esquecer o desastre humano por um momento. Ainda estou trabalhando com afinco para fazer esse ‘momento’ valer a pena”.

Os leitores de Singer, fantasmas ou não, espalhados pelo mundo não têm a menor dúvida de que tal momento sempre valeu a pena.

47 contos
Isaac Bashevis Singer
Companhia das Letras
720 págs.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho