Os escritores perderam seu lugar como heróis culturais. Mas por que não podem pelo menos competir com as estrelas do pop em seu campo? Promovamos os escritores como sexy e fabulosos!
Manifesto da Revista Canteen.
O escritor francês Honoré de Balzac observou em Ilusões perdidas que o maior problema a ser resolvido pelo artista é como ser notado. Em um artigo do New York Times, o historiador e escritor de livros de viagens Tony Perrottet lembra algumas estratégias usadas pelos escritores ao longo da história para se autopromover. Entre as estratégias Perrottet menciona o balão de ar quente que Maupassant teria mandado sobre o Sena, em 1887, com o nome de sua mais recente história, Le Horla; ou as anônimas e exaltadas resenhas que o próprio Walt Whitman escrevia sobre seus livros — “An american bard at last!”, diria Whitman sem um ápice de falsa modéstia. Gore Vidal, famoso por suas frases engenhosas, deixou esta evidência sobre suas técnicas de autopromoção: “Nunca perco a oportunidade de ter sexo e aparecer na TV”.
Mais perto de nós, em 2010, a escritora brasileira Paula Parisot passou sete dias confinada numa caixa de acrílico de 3 por 4 metros em uma livraria em São Paulo para promover seu romance Gonzos e parafusos. Um dos convidados e parte integrante da performance foi seu mestre Rubem Fonseca, escritor famoso por sua reclusão. Fonseca passou quase três horas no local, ajudou a servir café da manhã para sua pupila e, parecendo fascinado, sussurrou-lhe por trás do vidro palavras carinhosas: “Precisa comer, viu?”; “Tá tão magrinha”; “Chora não, meu bem”.
A imagem de Fonseca e Parisot levou-me a pensar na tensão entre a vontade de reconhecimento de uma jovem escritora e a vontade de anonimato do escritor consagrado. Uma problemática que parece fazer parte, por outro lado, do fascínio literário de nossa época e que está associada também à questão do silêncio e a uma certa crise da literatura. Penso, por exemplo, em romances como Bartleby e companhia, de Enrique Vila-Matas, e El escritor comido, do argentino Sergio Bizzio, ou desde um registro ensaístico, como El libro tachado — Prácticas de la negación y del silencio en la crisis de la literatura, de Patricio Pron, que, entre outras questões, também rastreia as ligadas ao desaparecimento do autor na tradição literária do Ocidente.[1]
E aqui conecto o tema com a figura de Archimboldi, protagonista do romance 2666, de Roberto Bolaño, o escritor oculto, aquele que foge da fama. O mistério rodeia a figura de Archimboldi na primeira parte do livro. Ninguém sabe nada sobre sua vida: nem os críticos, nem os editores, nem seus leitores. Seus livros aparecem sem fotos na orelha, seus dados biográficos são mínimos (escritor alemão nascido na Prúsia em 1920), seu local de residência permanece desconhecido.
Archimboldi chama a atenção em contraste com uma época em que o escritor aparece como uma superestrela, uma época de exposição da intimidade tão acentuada como a nossa. E sua figura dialoga com a ênfase na obra de Bolaño por uma certa ética do fracasso, um fascínio pelos escritores desconhecidos, pela possibilidade sempre latente de escrever uma grande obra e não ter reconhecimento. O crítico espanhol Ignacio Echeverría definiria esse fascínio como o “vértigo de la literatura incumplida”.
Será que essa trilha de superexposição seguida pela maioria dos escritores contemporâneos estaria prejudicando a literatura? Parece que é essa a opinião de Vila-Matas, que, em um texto intitulado Música para malogrados, diz: “En el preciso instante en que los escritores empezaron a ser vistos se malogró todo”. Em outro lugar, lembrando a Bolaño, Vila-Matas aponta para o momento de felicidade do escritor antes da fama: “[…] cierto periodo de felicidad de algunos artistas, de gloriosos días sin gloria vividos antes de haber oido hablar del mundillo literario, de las envidias, de los egos y el mercado: días en los que esos artistas fueron misteriosos y antisociales […] A veces, el tiempo de silencio es el paraíso de los escritores”.
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Em 2666, Hans Reiter conversa com Ingeborg, sua mulher, em seu pequeno apartamento de Colônia, depois de terminada a Segunda Guerra. O casal discute os motivos que o levaram a escolher um pseudônimo (Benno von Archimboldi) para tentar publicar seu primeiro romance, Lüdicke. Reiter quer pensar que o fez para se proteger de uma possível investigação pelo assassinato do funcionário nazista Leo Sammer. Ingeborg não acredita nele e lhe diz com um enorme sorriso: “Você tem certeza que vai ser famoso!”. “Até aquele momento”, escreve Bolaño, “Archimboldi nunca tinha pensado na fama […] que quando não se cimentava no arrivismo, cimentava-se no equívoco e na mentira. Além do mais, a fama era redutora. Tudo o que ia parar na fama e tudo o que procedia da fama inevitavelmente se reduzia. As mensagens da fama eram primárias. A fama e a literatura eram inimigas irreconciliáveis”.
É também uma mulher, a fotografa de escritores Brita Nilsson, personagem desse outro grande romance contemporâneo sobre escritores ocultos, Mao II, de Don Delillo, quem relaciona o gesto de ocultação à vaidade do autor ou, simplesmente, a uma personalidade tímida. Enquanto o escritor e personagem central do romance, Bill Gray, afirma que: “Quando um escritor não mostra a cara, ele se torna um sintoma localizado da famosa relutância de Deus a aparecer”.
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Em uma passagem do romance 2666 define-se a escrita como uma sessão de hipnotismo, e o sujeito que escreve como um sujeito vazio. Não seriam estes casos de escritores ocultos ou reclusos (Salinger, Archimboldi, Pynchon, Bill Gray) exemplares para pelo menos desestabilizar de novo a tirania do autor, exemplos da figura da ausência e da desaparição? Talvez em princípio, mas o paradoxal é que o gesto de ocultação do autor que serviria para que os leitores se concentrassem unicamente na obra e não na vida do escritor produz o efeito contrário, e o mistério da biografia passa a ocupar um lugar central, ofuscando a própria obra atrás da mitologia do silêncio e da reclusão do escritor.
Assim, há escritores que alcançam a fama por seu protagonismo público e sua autopromoção, e há outros que alcançam a fama precisamente por negar-se a participar do espetáculo midiático contemporâneo. No entanto, é preciso diferenciar o ocultamento consequência do fracasso e o ocultamento derivado do sucesso. No segundo caso, quando o escritor de sucesso se reclui, sem importar seus motivos, o que faz é incrementar a curiosidade e fascínio dos leitores por sua biografia.
A literatura de Bolaño parece colocar em cena esta possibilidade: a ausência da obra/a preeminência da vida. Paradoxalmente, aqui, o que entra em tensão seria um certo desaparecimento do autor e ao mesmo tempo um interesse reforçado pela sua vida, sem colocar a obra no lugar central.
Em nenhum momento das 848 páginas de 2666 nos encontramos diretamente com a obra de Archimboldi. Conhecemos seus títulos, seus temas e algumas características de seu estilo. Sabemos o que pensam os críticos sobre a obra de Archimboldi, sabemos sobre as disputas interpretativas entre diversos grupos de críticos literários. Mas a obra como tal nunca aparece. O que aparece é a vida de Archimboldi, os detalhes de sua biografia, desconhecida para seus leitores na ficção, mas conhecida para nós, tornada matéria da ficção.
Archimboldi parece encarnar muitas das características tão positivamente vistas por Bolaño: a valentia, a solidão, a decisão de se manter no anonimato, longe do mundillo literário, longe dos centros de poder, a vida errante e à intempérie, o compromisso radical (quase sacrificial) com a literatura. Essa seria também a própria autofiguração do escritor, a imagem com a qual Bolaño queria ser lembrado. Mas a tensão entre esse ideal de anonimato e a vontade de reconhecimento também faz parte de sua biografia.
Nesse triângulo formado pela pressão do sistema, a vontade de fama e alguma resistência ainda possível na literatura parece debater-se nosso escritor contemporâneo. Ir a coquetéis, autopromover-se no Facebook, no Twitter e no Instagram, ir a eventos literários e talk shows, participar de ensaios fotográficos[2], “tomar de vez em quando um porre com os outros escritores” (como me recomendou, muito seriamente, uma agente literária carioca para o sucesso de minha carreira como escritor) ou então afastar-se desse mundo, continuar escrevendo no anonimato sem esperar nada em troca: nenhum reconhecimento, nenhuma fama.
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Perto do final de 2666, a baronesa Von Zumpe, agora encarregada da editora que publica os livros de Archimboldi, diz a ele que seria o momento de dar uma entrevista: “Agora você é famoso”, diz a baronesa, “uma coletiva não seria mal. Talvez um pouco excessiva para você. Mas pelo menos uma entrevista exclusiva a algum jornalista cultural de prestígio”. “Só nos meus piores pesadelos”, responde Archimboldi.
NOTAS
[1] Estas questões foram também discutidas por Joca Reiners Terron em artigo publicado em setembro de 2014 no suplemento literário da Folha de S. Paulo. O artigo se intitulava O escritor devorado: a catástrofe do sumiço do autor.
[2] O epígrafe do texto foi tomado precisamente de uma matéria da revista Canteen, de Nova York, intitulada Hot Authors, que apresentava sensuais ensaios fotográficos com escritores e escritoras americanas.