O que é a poesia diante do enigma da vida? Uma tentativa de desvendá-lo ou de reforçá-lo? O que poderia um poeta diante da imposição de seu destino?
A poesia da paulista de São João da Boa Vista, Orides Fontela (1940-1998), pode ser lida como uma resposta pessoal, pontiaguda e substantiva a essas questões e a dezenas de outras não menos essenciais. Desde sua aparição no cenário literário, com a descoberta e posterior organização de seu primeiro livro (Transposição, 1969) pelo crítico e conterrâneo Davi Arrigucci Jr., a poética singular de Orides tem surpreendido e encantado a todos que tiveram a oportunidade de lê-la. Não foi diferente comigo.
Sua poesia já foi incensada por mestres como o crítico Antonio Candido e teve sua potência reconhecida por figuras nada desprezíveis da cena literária: o próprio Davi Arrigucci; o professor, poeta e editor Augusto Massi; as filósofas Marilena Chauí e Olgária Matos; a professora e ensaísta Nelly Novaes Coelho; o professor Alcides Villaça, entre outros professores, poetas e amigos de ocasião.
Antonio Candido, por exemplo, afirma no prefácio do livro Alba (1983): “Um poema de Orides tem o apelo das palavras mágicas que o pós-simbolismo destacou, tem o rigor construtivo dos poetas engenheiros e tem um impacto por assim dizer material da vanguarda recente. Mas não é nenhuma dessas coisas na sua integridade requintada e sobranceira; e sim a solução pessoal que ela encontrou…”
O professor Alcides Villaça em um de seus artigos sobre a poesia de Orides [Símbolo e acontecimento na poesia de Orides, Novos estudos Cebrap, 1992] faz a seguinte reflexão: “Sem bairrismo, sem regionalismo, sem nacionalismo; à margem de ‘vanguardas’; imune à parodização como sistema, sem biografismo, sem confessionalismo, sem psicologismo; sem expansão retórica, mas sem obsessão minimalista; fora do anedótico, do panfleto, da provocação, sem bandeira política, estética ou ecológica, sem escatologia agressiva, dramatismo ou ressentimento — em que águas, afinal, lança âncora a poesia sem rótulos de Orides?”.
A busca de respostas a essa questão de Villaça revela-nos o desconforto e a delícia da poesia de Orides. É uma poesia que pensa e exige decantação. O leitor deverá dar o tempo necessário à encantação de cada poema de Orides. E esse movimento necessário à recepção adequada de toda grande poesia está na contramão dos tempos rapidíssimos e de superfluidez que vivenciamos hoje.
Dois grandes lançamentos podem ajudar o leitor que desconhece a poesia de Orides e iluminar a leitura daquele que a conhece pouco: O enigma Orides, de Gustavo de Castro, e Orides Fontela — Poesia completa, organizado pelo poeta e crítico Luis Dolhnikoff. Os livros foram publicados com apoio do Rumos, do Itaú Cultural.
Uma Orides esquálida, irascível, demasiadamente humana, e lúcida de doer salta de suas páginas. Uma poeta que estudou filosofia e não conheceu o amor, pelo menos não o amor romântico.
O livro de Gustavo é uma reportagem biográfica (um possível romance-documento) sobre Orides muito bem escrita e com revelações fascinantes de sua vida, pensamento e fazer poético. Uma Orides esquálida, irascível, demasiadamente humana, e lúcida de doer salta de suas páginas. Uma poeta que estudou filosofia e não conheceu o amor, pelo menos não o amor romântico. Que tinha consciência de sua não beleza física e de sua inadequação ao mundo. Diz ela:
Não amei ninguém. Eu falo do que conheço e do que vivi. E não conheço o amor. (…) Mas não sou virgem. Perdi a virgindade de forma muito prática.
Um de seus poemas revela:
Aforismos
matar o pássaro eterniza
o silêncio
matar a luz elimina
o limite
matar o amor instaura
a liberdade.
Se não bastassem as dezenas de depoimentos de pessoas próximas que deslizam pelo texto, Gustavo ainda recupera uma entrevista histórica que Orides concedeu à revista feminina Marie Claire (1996). Nela, Orides é ácida, direta e sem autocomiseração. Só a entrevista já valeria o livro:
Da minha vida particular basta saber uma coisa: eu sou professora aposentada, o meu dinheiro não está dando para o aluguel e eu preciso dar um jeito de arranjar um emprego para equilibrar meu orçamento. De modo que preciso de emprego e não de comentários. Portanto, vamos perguntar da obra, certo?
(…)
Às vezes me chamam de briguenta. Eu não sei como me relacionar bem. Primeiro, sou filha única. Fui criada muito tímida, fechada. Segundo, eu tenho que conviver num meio burguês, no qual não fui criada, tenho umas maneiras meio grossas. Não tomei chá em criança, como se diz. Embora tome agora, não funciona mais.
Mas ainda tem mais, muito mais: uma reprodução do depoimento que Orides escreveu a pedido de Alberto Pucheu sobre poesia e filosofia. E a cereja do bolo: a reprodução dos originais encontrados de 27 poemas inéditos de Orides.
Dois deles:
Da poesia
Um
gato tenso
tocaiando o silêncio
Teologia II
Deus existir
ou não: o mesmo
escândalo.
Os dois poemas são exemplares da poética e, talvez, do estilo final de Orides. Uma poesia densa, tensa e sintética. Que abraçou e superou procedimentos estéticos do modernismo com sua capacidade reflexiva e densidade de linguagem.
Os dois poemas são referidos e analisados com brilhantismo na introdução de Luis Dolhnikoff à Poesia completa de Orides. Claro que a edição, sabiamente, incorporou os poemas inéditos recolhidos por Gustavo.
Dolhnikoff faz várias observações que nos interessam ao longo de sua introdução. Por exemplo: “Orides Fontela foi uma poeta antilírica, ao menos no sentido em que, se em sua poesia o eu lírico ainda tem vez, no entanto tem pouca voz, trocado pelo protagonismo da palavra. Isto a aproxima, afinal, das vanguardas visualistas, de que o fato de ser uma renovadora do modernismo deveria afastá-la”.
O poema Da poesia opera uma poderosa síntese metalinguística. Dolhnikoff nos chama a atenção para a sua construtivista e densa trama sonora: “GATO está em anagrama em TOCAiando, e tenso é uma assonância forte de silêncio. Mas Orides diz mais com menos, ou seja, depura as lições do alto modernismo. (…) ela usa essa tensão/contenção em uma poesia cuja matéria formal informa e conforma densamente o material semântico”.
Em outra chave, a meu ver, o poema revela também um olhar particular de Orides em relação à poesia e, talvez, à vida. Um olhar que ela apurou com suas experiências zen budistas.
Em 1972, Orides começara a participar do culto semanal do primeiro centro Soto Zen na América do Sul, tornando-se um dos primeiros brasileiros a frequentar as seções de meditação regularmente. Pra ela foi uma verdadeira iniciação em vários aspectos da cultura, do pensamento e da busca japonesa associados ao zen.
Ironicamente, em 1996, Orides comenta na já referida entrevista à Marie Claire que “procurava a iluminação mesmo. Mas só cheguei a um pisca-pisca”.
Em todo caso, se a experiência budista não iluminou sua vida nem seus problemas domésticos e recorrentes, apurou seu olhar e adensou cada vez mais sua linguagem. Felizmente, a poesia de Orides não reflete sua biografia. O que a distancia enormemente de alguns de seus contemporâneos, por exemplo, de um Roberto Piva.
Orides constrói sua poesia com a coragem e o topete de afirmar sua diferença em vários níveis. Por um lado assume-se como mulher e pobre, à margem dos sonhos de ascensão social e econômica e por outro assume certa fidalguia do espírito, nutrida pelas leituras que fez em seu curso de Filosofia, dos autores que elege e por sua particular visão de mundo.
Em seu depoimento sobre poesia e filosofia ela esclarece sua visão sobre poesia: “…poesia não é loucura nem ficção, mas sim um instrumento altamente válido para apreender o real — ou pelo menos meu ideal de poesia é isso. Depois é que surge o esforço para a objetividade e a lucidez, a filosofia. Fruto da maturidade humana, emerge lentamente da poesia e do mito, e inda guarda as marcas de co-nascença, as pegadas vitais da intuição poética.”
Leitora de Heidegger, Orides o lê não como um filósofo, mas como um poeta em prosa. Para ela a poesia vem antes de tudo. Ou pelo menos a “intuição poética”. Talvez, por isso, apesar de ser evidente o apuro formal de seus poemas, ela revela com certa ingenuidade acreditar em “inspiração”.
O tecido de seu texto é “inspirado” por imagens universais, fotografias de instantes que carregam a eternidade, momentos oportunos, faíscas de iluminação:
Kairós
Quando pousa
o pássaro
quando acorda
o espelho
quando amadurece
a hora
Chegar a esse apuro formal e dizer tanto com doze palavras, ou menos, a rigor sete palavras, não é pra qualquer poeta. O que ela consegue condensar em seis versos, na mão de um prosador/ensaísta/filósofo seria matéria para inúmeros tomos sobre as características essenciais do tempo e de como o vivenciamos.
Sabemos que kairós é uma palavra grega que denota uma visão particular do tempo, como fruição e qualidade. Palavra que se distancia de kronos, que também poderia ser traduzida por tempo, mas o tempo do relógio, do cronômetro.
A vivência humana e desperta do tempo é kairós. É na apreensão deste instante eterno e único que se fazem presentes os três mil mundos do conceito budista de ichinen sanzen. Nele estão o passado, o presente e o futuro. Nele estão as possibilidades dos cem mundos, dos vários fatores e dos componentes da forma, percepção, concepção, volição e consciência. É nele que “amadurece a hora”, no exato instante que o pássaro pousa e que o espelho se desvela com nosso despertar.
Na construção do poema o advérbio de tempo “quando” costura e demarca as várias possibilidades de apreensão. O três dísticos representam com precisão a passagem do tempo. O número três é a função adequada para deixar o movimento em aberto, para gerar a sensação de um ciclo que continua. Mesmo o agora é sempre quando em movimento.
Os cortes cirúrgicos de cada verso em enjambements são fundamentais para sua potencialização. As três ações são demarcadas em um presente histórico: pousa/acorda/amadurece. O fluxo do tempo é o mesmo da vida: do repouso anima-se a vida e se desenvolve até o seu fenecimento. O fluxo do tempo maior abraça o fluxo do tempo menor. Já dizia o Buda: tudo passa pelo ciclo de nascimento, envelhecimento, doença e morte.
Outro poema seu em três tempos que também aprisiona a eternidade:
A loja (de relógios)
I
O relógio
horologium
a hora
o logos.
II
Os peixes estão
no aquário
o touro está
na balança
e a virgem
parindo
os gêmeos.
III
Os relógio estão
na eternidade.
A crítica literária Flora Süssekind já observou na obra de Orides uma incidência considerável de sujeitos indeterminados, ou sujeitos compostos por substantivos abstratos e verbos no infinitivo. Tudo isso, segundo Flora, revela uma resistência a figurar explicitamente o sujeito lírico. Creio que mais do que uma resistência, no caso de Orides é uma estratégia poética, uma consubstanciação “intuitiva” direcionada ao protagonismo da palavra.
Por exemplo, no livro Transposição (1969), os sujeitos de suas “ações” são o fluxo, a manhã, o verbo, o sol, o círculo, a vida, o amor, a semente. Em Helianto (1973), os sujeitos são a rosácea, o tempo, a luz, a rosa, arcanjos, a vida, a estrada, etc. No terceiro livro, Alba (1983), a luz, trovões, centauros, os anjos, as parcas, a água, a estrela, etc.
Podemos notar, a partir de seu quarto livro, Rosácea (1986), que sua poesia abstrata e tendendo ao sublime passa por uma reavaliação e redirecionamento. Orides reconhece: “Até Alba meus versos viviam pairando lá em cima, sublimes demais. (…) Agora faço uma poesia mais vivida, mais encarnada (…) Fiz tudo ao contrário: comecei no abstrato e terminei no concreto”. [Poesia, sexo, destino: Orides Fontela, em Leia Livros (1989)]
Herança
Da avó materna:
uma toalha (de batismo).
Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.
Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.
Mas, apesar do que diz a poeta, ela não consegue se desfazer por completo do sublime, pelo menos não na acepção de “superlativamente belo”:
Kant (relido)
Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.
O poeta e crítico Felipe Fortuna observa argutamente que Orides escreveu poemas inteiros sem verbos, ou seja, sem as noções esperadas de ação, processo ou estado que do ponto de vista sintático seriam essenciais para a função de núcleo de predicado das sentenças. Mas a poesia, ao contrário da prosa, é pródiga nessas artimanhas de significação.
Ode
Neste tudo
tudo falta
(neblina)
e nesta
falta: eis
tudo.
Vários de seus grandes leitores críticos identificam o “silêncio” como a metáfora essencial da poesia de Orides Fontela. O poema que paradoxalmente caminha para o não dito, para o calar de Wittgenstein, para com isso dizer muito ou revelar aquilo que não se consegue colocar em palavras.
Sim, Selvagem/ o silêncio cresce, difícil. Sim, depois dela só há/ o silêncio. Dói a imagem de Orides enxugando as lágrimas na capa dessas edições e seus poemas como esfinges a desafiar a massa ignara de não leitores.
NOTA
Os livros Orides Fontela — Poesia completa e O enigma Orides foram publicados com apoio do Rumos, do Itaú Cultural.