O empalhador de homens

Resenha do livro "Os leões selvagens de Tanganica", de José Eduardo Degrazia
José Eduardo Degrazia, autor de “Os leões selvagens de Tanganica”
01/11/2002

O bestiário domina o imaginário da literatura brasileira, seja tematicamente em autores como Moacyr Scliar (Carnaval de animais) e Wilson Bueno (Jardim zoológico), seja em contos isolados. O animal vem servindo de sobra para o manejo simbólico e exposição da irracionalidade humana. Os leões selvagens de Tanganica, do gaúcho José Eduardo Degrazia, apanha essa matriz sob um outro ponto de vista: é o excesso de racionalidade que iguala as espécies. O escritor já expressava um raro domínio das formas curtas e concisas em O atleta recordista (finalista do Nestlé, 1996) e A terra sem males (2000). Suas novas incursões jogam com uma sobriedade narrativa, abolindo qualquer reflexão no decorrer das tramas. O andamento é absolutamente descritivo, asfixiante, recusando a utilização de juízos e sentenças. Os episódios são substantivos, pairam acima do maniqueísmo. Degrazia não comenta os resultados, apenas conta o que vê. Fiel a uma estrutura infantil (potencializada na figura do caçador, do circo e da raposa, por exemplo), evoca a ingenuidade das parábolas de Leonardo da Vinci. Com uma diferença, a lição de moral perdeu sua força persuasiva. Assim como uma criança pronuncia tragédias sem entender verdadeiramente o que está dizendo, o autor oferece um museu de aberrações a partir de uma normalidade acachapante. Não existe diálogo entre os personagens e seus bichos, mas uma catatonia, um mutismo inconseqüente que coloca todos na mesma hierarquia e no mesmo estrado da cadeia alimentar. O medo contagia, resultado de uma competição pelo pior entre os reinos: “a inveja não mede seus atos para igualar o sofrimento”. A seqüência de estórias colabora para zoofobia: o público de um circo passa a ser devorado por leões (assim como leões também são devorados pelo público), piranhas realizam um equilíbrio social abocanhando os pobres, ratos trituram gente nos vagões, uma cidade é invadida por elefantes, um trabalhador contrai uma gripe suína e termina no chiqueiro. A morte passa a ser esvaziada de significação. Ao contrário da maioria das narrativas que emprega os bichos para a consagração da violência e do instinto, o terrorismo acontece na ausência de drama, na mais pérfida e premeditada calma. O conto O enterro do pássaro entrega a interpretação: “só nos interessava o lado cênico da morte. Sobre a sepultura espargimos pétalas de rosa. Depois fomos lavar as mãos pois o jantar estava servido”. Apocalíptico, Degrazia parece propor substituir os animais empalhados por uma coleção de homens.

Os leões selvagens de Tanganica
José Eduardo Degrazia
Movimento
64 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho