O elogio do silêncio

“Um romance de geração”, de Sérgio Sant’Anna, coloca a subjetividade autoral em xeque
Sérgio Sant’Anna no Paiol. Literário. Foto: Matheus Dias
01/11/2009

Um romance de geração, de Sérgio Sant’Anna, foi publicado pela primeira vez em 1980 e recebeu, recentemente, uma nova edição, mobilizada em grande parte por uma adaptação cinematográfica da obra (2008), sob a direção de David França Mendes. A importância desses eventos é incontestável, principalmente no que se refere a uma leitura mais apurada da obra de Sant’Anna como um todo e à sua contribuição para a reflexão do fazer literário e do papel do intelectual na sociedade e na vida cultural contemporâneas.

Em Um romance de geração, além de encontrarmos diferentes elementos que continuariam a ser desenvolvidos nos trabalhos posteriores do mesmo autor, é estabelecido um acalorado diálogo em diferentes terrenos. O processo criativo vai se delineando como uma ferida aberta num tempo de perplexidade e de falta de perspectivas de grandes realizações. Tudo isso se dá de maneira irônica, às vezes incongruente, numa lógica paradoxal, numa busca compulsiva por sentidos inacessíveis que ou se perderam no caminho, ou foram inventados como mecanismo de sobrevivência. O teatro-ficção desnuda essa impotência frente ao inexorável deste tempo pós-ditadura militar, de pós-utopias, de pós-tudo. É neste momento, que o sujeito busca sua força na problematização de suas fragilidades. A narrativa é dramatizada por personagens-atores e por um narrador-autor, numa superposição de planos e numa mistura de gêneros que quebram a linearidade temporal e impedem a estruturação convencional de uma trama. Por tudo isso, o teatro-ficção torna difícil o estabelecimento de um enredo definido ou definitivo.

A primeira parte é estruturada como o ensaio de uma peça, protagonizada por um casal de personagens, um escritor e uma jornalista, fazendo referências a outra peça, de outro casal, amigo de Carlos Santeiro (o escritor), num cenário que presume um público espectador ou um leitor ouvinte. A segunda parte, bem mais sucinta, é assinada por um personagem-narrador-autor (Sérgio Sant’Anna), com um tom ensaístico. Aí são apresentados o projeto original do livro, uma série de hipóteses do que tudo isso poderia ter sido e de orientações para uma improvável representação pública da peça. O que, por fim, fica implícito é o caráter híbrido do texto final. Mais do que deixar implícito este último aspecto, poderíamos dizer que o narrador-autor deixa em aberto toda uma gama de possibilidades de escritura e de leitura.

O que se destaca na primeira parte é a presença de dois personagens que se encontram num pequeno e desarrumado apartamento de um escritor em crise. Nesse plano, o escritor recebe uma jornalista para uma entrevista e passa a esboçar seus projetos no sentido da elaboração de um grande romance da sua geração. “Afinal, no fundo, é isso que todo romancista quer: escrever o grande romance da sua geração”, segundo depoimento de Sant’Anna no Jornal Estado de S. Paulo.

A fala do personagem se amplia para outras questões, num debate que abrange desde os problemas sociais, estéticos e culturais até os propriamente existenciais. Neste sentido, a jornalista envolve-se com o escritor, identificando-se ou opondo-se às questões levantadas, impondo o ponto de vista da sua condição feminina. Da pretensão de Carlos Santeiro de escrever o romance da sua geração, passa-se a delinear a possibilidade de um “romance” entre os dois, senão aos moldes românticos, pelo menos aos moldes afetivo-sexuais mais modernos. Porque afinal, como observa Ela, pelo menos uma revolução foi feita pela nossa geração: a sexual.

Tudo lá dentro
O fato de parte do texto ter uma estrutura teatral não elimina a tônica predominante de uma narrativa ficcional. A peça escrita sobre uma outra peça, apontando a possibilidade de um romance de geração, sem pretensão de ser representada enquanto dramaturgia, propriamente dita, é uma pista para compreender a estratégia de composição da obra. O que faz Sant’Anna com sua mistura de gêneros é radicalizar os experimentalismos modernistas já utilizados, por exemplo, por Mário de Andrade nos idos da década de 20. Ao se referir, em carta a Manuel Bandeira, ao seu livro Amar, verbo intransitivo — Idílio, assim o define: “O livro é uma mistura incrível. Tem tudo lá dentro. Crítica, teoria, psicologia e até romance: sou eu. E eu pesquisador”.

Poderíamos dizer que Um romance de geração é também uma mistura incrível. Tem crítica, teoria, psicologia, literatura, teatro, jornalismo, cinema, música, artes plásticas e até romance. E romance nos dois sentidos, enquanto gênero dramático moderno e enquanto história de amor, concebida pelo senso comum. Outra questão que essa mistura toda coloca em xeque é a subjetividade autoral que, como dobradiça, se articula entre a ficção e a contingência humana do artista. A identificação subliminar do autor com seus personagens e a fala dos seus atores se verifica claramente tanto no texto propriamente dito do livro, quanto no contexto externo, de vida, entrevistas jornalísticas ou tomadas cinematográficas de depoimentos.

Flora Süssekind, ao constatar uma descontinuidade entre a prosa dos anos 80 e a dos anos anteriores, aponta como alvo mais evidente da primeira a figura mesma do narrador, a subjetividade, posta em questão numa ficção próxima ao ensaio, no qual protagonistas e intriga, propositadamente hesitantes, dialogam, críticos, com aquele que narra.

A forma de peça teatral da primeira parte do texto em discussão intensifica uma espécie de abismo narrativo-ensaístico, estabelecendo uma discussão entre os diferentes elementos atuantes da trama, atores-personagens, narrador-autor e um suposto público espectador-leitor, que ensaiam, encenam, dialogam se dobram ou desdobram entre si numa busca impossível de definições e certezas.

Segundo Silviano Santiago, “as narrativas hoje são, por definição, quebradas. Sempre a começar”. Refere-se aqui ao que chamava de circularidade das narrativas de Sant’Anna nos contos do livro Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer). No conto O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de 1982, o personagem Autor, numa tomada metaficcional, refere-se a esta crítica: “O Silviano Santiago diz que eu não deixo viver meus personagens. De fato, meus personagens quase sempre são antes atores do que personagens. E sempre gostei de escrever minhas histórias como se elas se passassem num palco”. Outro aspecto importante aqui é o caráter performático que é dado ao desenvolvimento das narrativas, mesmo quando a forma teatral não fica explicitada, ou melhor, não se concretiza.

O conto O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de certa forma, pode ser lido por esse viés, apesar de ter a forma de prosa narrativa. Do ponto de vista temático, é voltado para um concerto de João Gilberto que não houve. É uma alegoria de elogio do silêncio, ou ainda, de elogio desse abismo entre o apresentável e o representável.

Mas aqui, neste texto, há palcos de verdade e uma parte de “não-ficção”. Estaremos vivendo um novo realismo na literatura brasileira? Um novo realismo que assume uma forma fragmentária? Pois está difícil, hoje em dia, não escrever em fragmentos. Porque a realidade, cada vez mais complexa, também se estilhaçou.

Realidade estilhaçada
O escritor contemporâneo, propriamente, não inaugura o novo, aos moldes do modernismo heróico, mas tem como inegável mérito radicalizar teorias e incorporar novas técnicas para encenar nesses palcos de verdade a sua ficção. A crença dos modernistas no futuro redentor e no progresso foi substituída por uma realidade presente e complexa que se estilhaçou. Neste sentido, além da literatura incorporar no seu discurso técnicas de outras artes, ela assume a linguagem precária da crise de representação, incorpora a fragmentação jornalística, aposta no silêncio e na perplexidade como motor de criação.

Muito provavelmente, o controle que os personagens-narradores- autores tentam impor aos personagens-atores acaba sendo neutralizado por uma realidade estilhaçada que mistura palcos de verdade e ficção. Trata-se de uma realidade que confunde indissoluvelmente o imaginado com fragmentos de um real difuso e irreconhecível, trapaceando a sensibilidade dos sujeitos através de construções de simulacros.

O ator-personagem Carlos Santeiro é um escritor, que depois de relativo sucesso, não conseguia mais escrever. Jogado no anonimato, entrega-se à bebida e a corridas de cavalos. Ele vivia da mesada da mãe que ainda acreditava que o filho estivesse escrevendo o romance da sua geração. Diríamos que era também um “homem sem profissão, sob as ordens da mamãe”, como o velho Oswald de Andrade, em dado momento de sua autobiografia, se definia, só que em outro momento histórico, configurado por outra realidade estilhaçada como os sujeitos que a habitam.

“O que mais eu prezo hoje em dia é o silêncio — não escrever, não ler — e as corridas de cavalos. Mas o silêncio é ainda melhor, porque nele está contido tudo. Me cansei até da ironia e da grande frase.” Paradoxalmente, o personagem é um tagarela, que fala de tudo e de todos o tempo todo, mal deixando espaço para sua parceira. Na alternância das falas dos dois (Ele e Ela), isso é bem claro.

Na segunda parte do livro em questão, um homem se desdobra em criar e descrever cenários, cenas, atores e personagens, na tentativa inglória de realizar seu desejo de escrever um romance de sua geração. O que se descortina é um leque de possibilidade enquanto um projeto sempre inacabado, mas só possível se pensado dentro da precariedade dessa busca de dizer o indizível, de ler o ilegível, de correr atrás de realizar o impossível.

No conto de Sant’Anna Cenários, por exemplo, há uma seqüência de descrições. Ao fim de cada possibilidade esboçada, interrogações, e ao fim de cada parágrafo apenas uma frase assertiva: “Não, não é bem isso.” O ato de escrever é descrito como se o olhar do narrador estivesse voltado para “um outro homem sozinho em seu apartamento e que procura escrever nesta noite um texto, buscando palavras para cenários talvez por palavras indizíveis, mas como se sua tarefa fosse esta, buscar o impossível, mostrar uma realidade que escapa das nossas mãos como um sapo e sempre se coloca mais adiante”.

Em suas oscilações entre fala compulsiva e impotência de produção, Carlos Santeiro tece considerações sobre o fazer literário:

Escrever era talvez traçar um limite. E valeria a pena traçar esse limite?… Não seria melhor, talvez, deixar que as coisas, o tempo, as pessoas, apenas seguissem seu curso? Enquanto ele se mantivesse em silêncio, a mão suspensa sobre as teclas que poderiam manchar a página branca e traçar sobre ela tal limite, subsistiriam ainda intocadas todas as possibilidades possíveis.

A exploração de todas as possibilidades, intocadas no silêncio sem limites e, portanto, infinito da criação é uma das obsessões de Sant’Anna e aquilo que, entre outras coisas, torna sua obra singular e, ao mesmo tempo, conectada com o seu tempo.

LEIA PARTICIPAÇÃO DO AUTOR NO PAIOL LITERÁRIO.

Um romance de geração
Sérgio Sant’Anna
Companhia das Letras
120 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho