O elogio do encontro

“Hanói”, de Adriana Lisboa, é o elogio do encontro amoroso e da crença na humanidade
Adriana Lisboa, autora de “Hanói”
01/09/2013

Hanói, de Adriana Lisboa, conta uma história de encontros e desencontros de criaturas comuns em seu cotidiano de trabalho, andanças, paixões, infortúnios e esperanças. A vida ordinária desses personagens ganha dimensões extraordinárias a partir da relação que estabelecem entre si, com seus sonhos e desventuras. Dentro dessa dinâmica, outras questões são problematizadas, sem a pretensão de se verem esgotar, o que pode gerar, do ponto de vista do leitor, uma inquietação: E daí? Para onde vamos?

A leveza com que tudo vai sendo descortinado, dada a gravidade dos fatos e da iminência de uma morte anunciada desde a primeira página, é no mínimo paradoxal. Entretanto, isso acaba sendo bem resolvido a partir da cuidadosa construção dos personagens e do firme propósito do projeto narrativo de discutir a finitude, a amizade, e o amor — ou seja, a vida e a morte, na contracorrente do dramalhão e da idealização romântica.

A única característica comum a todas as coisas, ele pensou, (…) é que elas num determinado momento começam a existir e num outro momento deixam de existir?

Ou você achou que era para sempre?

Tecido fino
O livro é organizado em cinco partes, numeradas sem subtítulos indicativos de eixos temáticos particulares. Isso porque não há cortes significativos que separem cada um desses blocos. O enredo, logo nos primeiros capítulos, apresenta os personagens a partir de fatos, lembranças, desejos e ações que os envolvem e estabelecem o papel que vão ocupando na trama, sendo aparentemente bem simples.

David é um jovem de trinta e dois anos, amante da música, trompetista sem carreira de sucesso e funcionário em uma loja de material de construção que é surpreendido pelo diagnóstico de uma doença terminal. Mora em Chicago e é filho de Luiz, brasileiro, e Guadalupe, mexicana, já falecidos. É separado de Lisa, a quem sempre incomodou sua “falta de ambição” — para ela, comodismo; para ele, simplicidade.

A jovem Alex, de origem vietnamita, trabalha no mercado de bairro de Trung, ex-monge budista, vietnamita como sua mãe, Huong, e sua avó, Linh. Esta engravidou de um soldado americano e partiu para a América, fugindo do pós-guerra. Quando não está no trabalho ou na faculdade, Alex cuida de Bruno, filho que teve com um homem casado que ainda a mobiliza afetivamente, mas se limita a ser pai do menino, volta e meia.

David e Alex, de origens e trajetórias tão distintas, esbarram-se neste momento de suas vidas. Ele, desfazendo-se dos pertences numa tentativa bem-sucedida de desapego, estabelece novos contatos, amigos e um afeto muito especial por Alex. Ela, envolvida entre a maternidade, o trabalho e os estudos, descobre nele uma ternura adolescente “para coisas mais prosaicas” e como ser mulher, amar e ser amada. A delicadeza desse encontro faz de Hanói um tecido muito fino: um elogio do encontro amoroso e da crença na humanidade.

O romance destaca-se, entretanto, mais pela maneira como é organizado do que por seu enredo, apesar de contar uma boa história. Seus personagens, num presente narrativo predominante, transitam por memórias recentes e remotas que atravessam toda a narrativa, mas sem linearidade temporal. Trung, por exemplo, “vivia com as memórias dos campos de reeducação”; Huong e Linh recolhem-se numa pequena cidade após não se adaptarem à guerra cotidiana de uma metrópole: “Suas almas não estavam grudadas no corpo, Alex pensava. Pairavam em algum outro lugar, como se fossem pipas que elas empinavam e que flutuavam lá no alto, onde havia mais ar puro e menos todas as coisas”.

Adeus
Quando as palavras parecem insuficientes para falar desses personagens, de suas dores e de seus amores, outros recursos são usados. Neste caso, o artifício plástico das imagens e metáforas vem socorrer a quebra da comunicabilidade. Um bom exemplo é o elefante de pedra verde que o oncologista manuseia enquanto dá ao paciente a notícia de sua morte iminente. A metáfora é recorrente ao David expressar seu recolhimento e desapego, tentando se preparar para a morte que se aproxima — como os elefantes, que abandonam seus bandos para morrerem sozinhos.

Lá no fundo do oceano de silêncio onde David estava mergulhado, por um instante ele teve a impressão de que o elefante ia responder. Seu novo porta-voz de pedra verde, que falaria com voz pequena, mineral e ponderada. Já que as palavras de David pareciam estar enfiadas dentro de alguma gaveta, num canto do seu cérebro doente, e em meio à pressa e à desordem ele não conseguia encontrá-las.

Esse reforço para encontrar palavras numa gaveta em desordem vem também do ritmo harmônico, acompanhado por referências musicais (jazz, paixão de David).

Além de relevante na construção do protagonista, a musicalidade costura a trama, dialogando com a linguagem verbal, como que mostrando sua precariedade no dizer o indizível das experiências limites. Anunciando, talvez, uma parceria entre a música e a literatura, no sentido de favorecer a expressão do que pode ser dito ou sentido quando as dificuldades de comunicação se impõem pelos absurdos do inexorável que nos surpreende, como o abandono amoroso ou a solidão da morte.

Esse percurso sugerido pelas referências musicais funciona quase como uma trilha sonora. Quem foi que disse que a vida não tem fundo musical? Os dias de David, depois da notícia da doença terminal, tinham, e isso o ajudava a prosseguir: “Alegria. Era preciso alegria. Pensar em Cartola cantando A cor da esperança. Amanhã a tristeza vai transforma-se em alegria e pronto”. Buscar a alegria era poder manter a esperança acesa e a qualquer fio de vida ainda atribuir sentidos, mesmo que tênues. Uma alegria esfumaçada pela falta de perspectiva de uma visão que vai se apagando, de um corpo que se debilita a cada momento, mas ainda é capaz de pulsar e segurar nas mãos o instante que escapa por entre os dedos.

“Aun cuando este día parece propicio para descubrir los terrenos insondables”, citação de Miguel Ángel Zapata, é a epígrafe do romance. Mesmo quando este dia parece propício para descobrir os terrenos insondáveis, percebe-se que nada há para ser descoberto nesses terrenos. É preciso reinventar o amor, reinventar a esperança, reinventar a vida, reinventar a relação com a morte. “Era assim. Tudo por um fio. Sempre um fio. E você nunca sabia em que momento, exatamente, o fio ia fazer snap.” Enquanto isso, dar asas ao desejo de tudo ter sido um erro de diagnóstico, inventar uma banda para tocar seu trompete, inventar uma viagem, projetar em Hanói, nas ruas escolhida por Alex, um caminho a percorrer de mãos dadas. O que seria Hanói? Um cemitério de elefantes, para onde se parte sozinho à espera da morte ou onde se vislumbra viver a intensidade dos caminhos insondáveis do encontro amoroso, antes do último adeus?

Hanói
Adriana Lisboa
Alfaguara
240 págs.
Adriana Lisboa
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É autora de seis romances, uma coletânea de contos e quatro livros infanto-juvenis. Recebeu, entre outros, os prêmios José Saramago, pelo romance Sinfonia em branco, e Moinho Santista, pelo conjunto da obra. Seus livros foram publicados em doze países. Graduada em música e pós-graduada em literatura, mora atualmente nos Estados Unidos.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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