O elogio da elegia

Resenha de “Carpideiras”, de Jussara Salazar
Jussara Salazar, autora de “Carpideiras”
01/03/2013

Depois de publicar Inscritos na casa de Alice (1999), Baobá — poemas de Letícia Volpi (2002), Natália (2004) e Coraurissonoros (2008), Jussara Salazar recupera em Carpideiras o perfil dessa profissão milenar homônima, essencial para o florilégio fúnebre de variadas latitudes.

A obra se divide em duas partes que denunciam, pelos títulos que as compõem, sua feição dramática: “I. Entremez” e “II. Ópera das carpideiras”. O caráter teatral é reforçado com a presença do coro trágico (típico da Recomendação das Almas), a reportar sua função helênica de conferir tom lutuoso ao espetáculo. Na segunda seção, a remissão é literal: ali, ganham os epítetos “teatro da luz” e “teatro dos mortos” os excertos Canto geométrico e Canto assombroso, respectivamente. Por outro lado, tal nomenclatura evidencia a filiação lírica do livro e, conseqüentemente, os contornos de oralidade que o delineiam, ecoados na imagem prototípica dos “segredos que as velhas contam ao pé do fogo”.

Épico irregular
A escritora pernambucana dispõe, na composição do volume, poemas de sua assinatura ladeados pelos cânticos emblemáticos das carpideiras. Só para oferecer um caso, lemos integralmente, em aparição camaleônica, a Incelença da despedida, reproduzida no fim do primeiro bloco (Remate: coro das caveiras), mesclada a escritos autorais. Notaremos, igualmente, no decorrer da leitura, a gama de referências veladas a textos e poetas de linhagem erudita, como Haroldo de Campos e Vladímir Maiakóvski. Todavia, alguns palimpsestos disfarçam menos os sulcos no papiro: Dante Alighieri, por exemplo, figura nuclear de Carpideiras, traz sua presença explícita no fragmento XV do primeiro módulo, num texto que tem por mote o rosemunho e a lenda da M’boi-tatá, topoi extraídos das tradições brasílicas e imortalizados por Simões Lopes Neto ou, mais vigorosamente, na escrita rosiana.

De tal modo, a poesia de Salazar expõe certa genealogia armorial, sob cujo plano-piloto águas eruditas e populares se encontram, em estuário comum. A marca do florentino também pode ser adivinhada nos prólogos em prosa que antecedem os poemas — um diálogo mais ou menos discreto com a Vita nuova, com a qual Ariano Suassuna estabelece declarado intertexto, em sua Vida-nova brasileira. Também nesse instante, outro signo oralizante será observado: os adágios que concluem cada extrato introdutório, sempre grafados em itálico. O poema iniciado por “Vai e desperta a água antes de beber” dará de tudo isso alguma idéia, remetendo textualmente, inclusive, aos círculos da obra máxima dantesca.

Aliás, o périplo das carpideiras, vislumbrado no percurso do livro, denota um caráter anagógico, prefigurando uma commedia. Depois dos martírios que as almas experimentam nos cortejos ou após as rezas defronte aos retábulos; depois das saudações a Caronte em paisagens desertas, das pragas rogadas pelos corvos e por amplo bestiário agourento; desfiadas as incelenças que demandam esperança aos mortos em suplício (“ela disse não cante/ apenas diga ao silêncio/ que plante aquela flor”); passado tudo isso enfim, eis que se impõe o enlevo das visões angelicais, em preclara alforria do espírito (“Uma vez eu vô pru céu/ os anjo vão mi levando/ de tudo eu vô m’isquecendo/ só de Deus vô mi alembrando. As velhas rematam a mortalha”).

Rigorosamente, poderíamos dizer que, similar a Morte e vida Severina ou à própria Divina comédia, os textos perfazem um só poema de substância épica. Nele, o paganismo clássico e a fé na cristandade coabitam, ainda que esta, no final das contas, estabeleça a sua hegemonia, como acontece no ideário épico de Dante ou n’Os Lusíadas de Camões. Ao mesmo tempo, efabulando à luz da transcendência religiosa, Jussara Salazar, pelo veio simbólico de seu texto, oferece uma composição hermética que, em certa medida, mimetiza a criptografia inerente ao Sagrado. Procedimento, por sinal, atomizado no perfil de Quitéria, com “seu enigma secreto, cujo sentido jamais foi decifrado”.

Uma tal rede intertextual, por indicar estudo e aperfeiçoamento da arte literária, afasta qualquer suposição de espontaneísmo criativo que a temática pudesse despertar num leitor ingênuo. Aqui, no entanto, faz-se urgente uma consideração de ordem axiológica: a inegável riqueza polifônica da obra, não sendo critério suficiente de valor, em nada impede que a fatura se mostre, como é o caso presente, irregular em qualidade estética. Para que a escrita resulte em culinária palatável, da variedade de ingredientes deve-se extrair um composto de sabor individual e específico, o que nem sempre a poeta alcança plenamente. Em certos instantes, será flagrada uma versificação prolixa, de minuciosas descrições que não conduzem a sínteses poeticamente reveladoras. Além do mais, a autora, de quando em vez, cai no alçapão dos signos gastos, exaustivamente explorados por vários registros, literários ou não, escritos ou orais.

Para ilustrar minimamente o que afirmamos, basta perceber que, no poema V do Canto confabuloso, Salazar escreve: “No dia treze uma estranha sombra corria ao anoitecer”. O número fadado, em companhia do mistério sombrio e da própria noite denunciam, numa única sentença, a sobrecarga dos estereótipos do assombro. Outra pequena restrição reside na elaboração prosódica do texto: durante todo o volume, a pontuação é uma enfática ausência. Ora, uma observação que parece puro preciosismo pode, na realidade, contribuir para o melhor rendimento dos efeitos expressivos. Lendo em voz alta, compreendemos que a vírgula, com boa freqüência, desaceleraria o discurso e, estendendo a elocução das frases, imantá-las-ia de uma gravidade lúgubre.

Conquista de territórios
Passadas essas depressões, entretanto, eis que sua palavra salta e molda percepções finas em linguagem enriquecida de bruxuleios rítmicos, fascínio melopaico, imagens duradouras. É o que podemos abstrair no poema O coro das carpideiras purifica a casa. Agora, à força sacramental da oração e à homologia com o Salmo 91 da Bíblia, agrega-se a identidade do poema em questão: o que ele pode acrescer ao que a tradição já lhe entregou. Apoiada numa dicção limpa e melódica que o texto inteiro guarda, a última estrofe (“Se tem vontade de me atirar/ água da espingarda correrá/ ou a faca da mão tremulando cairá”), como o brilho que paga o garimpo, nutre a proteção celestial com outra iconicidade além das asas divinas por escudo e broquel. Aqui, realiza-se um duplo movimento: o centrípeto, que atrai um objeto denso da civilização (os cantares bíblicos), e o centrífugo, a emitir as diferenças que ela, Salazar, construiu a partir desse mesmo aporte cultural. O valor, portanto — para usar uma metáfora econômica —, parece residir numa balança comercial favorável (ou, pelo menos, num tenso equilíbrio), em respeito à qual o imaginário comprado ao cânone não deve sufocar o que o poema produziu de sua lavra. Por isso, Ortega y Gasset (A desumanização da arte)nos lembra que ser efetivamente auctor é somar, como os generais antigos após as vitórias, novos territórios aos que o reino possui.

Em Terceiro retábulo, texto que vem alargar o nosso campo imaginativo, lemos o verso “RIO LIVRO SINUOSO”. A analogia do rio com a linguagem é curiosa por, no mínimo, dois motivos consideráveis: um, pela própria beleza imagética do verso, dado que a palavra, em feitio de oração, conduz o morto — passageiro da barca de Caronte — ao seu destino final (é preciso recordar que, em inúmeras tradições, os falecidos sem as devidas cerimônias verbais não recebem o merecido descanso e são condenados a vagar. Não é outra a angústia de Antígona, entre os gregos, ou de Ermelindo Mucanga, nos espaços moçambicanos, que Mia Couto dá a ver em A varanda do frangipani). Em outros termos, a língua, representada metonimicamente pelo livro, é a matéria líquida do Estige e do Aqueronte. A outra razão pela qual o verso soa emblemático é que Jussara Salazar cumpre, ao escrevê-lo — e daí sua importância no cenário atual —, o papel que Jorge Luis Borges atribuía ao literato: devolver a língua às suas fontes primordiais. Discurso, como se sabe, é palavra aquática (não à toa se fala em fluência idiomática), e a aproximação veiculada pela imagem fluvial vem significar, assim, uma reposição do sentido que o tempo erodiu. Eis, portanto, o compromisso ético que deve assumir qualquer poeta: ser revolucionário, primeira e essencialmente, afiando sua linguagem, a lâmina do verso.

Carpideiras
Jussara Salazar
7Letras
106 págs.
Jussara Salazar
Nasceu no Recife (PE), em 1959, e vive em Curitiba (PR) desde a década de 1980. Poeta e artista plástica, é autora de Inscritos da casa de Alice, Baobá — Poemas de Leticia Volpi, Natália e Coraurissonoros.
Peron Rios

É mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa e pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Autor do livro A Viagem Infinita: estudos sobre ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto, é professor de Literatura do Colégio de Aplicação da UFPE.

Rascunho