O duplo de Nobre

"Só (seguido de Despedidas)" revela o multifacetado duplo literário do poeta português Antônio Nobre
Antônio Nobre, autor de “Só (seguido de Despedidas)”
01/08/2012

1. Aproximação (via Manuel Bandeira)
“Tu que penaste tanto e em cujo canto/ Há ingenuidade santa do menino;/ Que amaste os choupos, o dobrar do sino,/ E cujo pranto faz correr o pranto” — com essa estrofe se abre um dos primeiros (e mais famosos) poemas de A cinza das horas, primeiro livro de Manuel Bandeira, publicado em 1917. Intitulado A Antônio Nobre, o poema é estampado logo depois de A Camões, e há entre os dois um brutal contraste: se o último soa frio e artificial, o primeiro parece produto de um lirismo espontâneo e sentido. Treze anos antes, fora em Bandeira diagnosticada a tuberculose que, se não o levaria tão cedo quanto temia o próprio poeta, faria da “indesejada das gentes” sua inseparável companheira na longa peregrinação por sanatórios e “climas saudáveis”. Tudo isso está na poesia de Bandeira, um dos nossos autores nos quais a matéria vivida se faz mais nitidamente presente na obra poética; e Antônio Nobre, o jovem poeta português arrastado pela tísica, surgiria para aquele como um vulto no espelho.

Se tanto Camões quanto Antônio Nobre surgem nos escritos de Bandeira como formas de um “tu” a quem se dirige a subjetividade lírica, no caso do soneto dedicado ao primeiro há uma deferência excessiva, o tom solene de quem esculpe uma obra em preito a um mestre inatingível; já o soneto dedicado a Antônio Nobre é como o sincero desabafo de quem se confessa a um amigo. “Com que magoado olhar, magoado espanto/ revejo em teu destino o meu destino!”, escreve Bandeira, projetando na figura do autor de — na figura, ressalte-se, que o autor de traçaria de si mesmo, como logo destacaremos —, sua própria, lúgubre trajetória existencial, inscrita entre a dor e a poesia. Mas não era plena a identificação, e isso porque o autor de A cinza das horas, livro publicado numa edição de 200 exemplares (pela qual, aliás, o próprio Bandeira pagara trezentos mil-réis), não esperava para si um destino similar ao de Antônio, a quem a obra garantira a eternidade: “Mas tu dormiste em paz como as crianças./ Sorriu a Glória às tuas esperanças/ E beijou-te na boca… O lindo som!// Quem me dará o beijo que cobiço?/ Foste conde aos vinte anos… Eu, nem isso…/ Eu, não terei a Glória… nem fui bom…”. Bandeira viveria muito mais que Antônio Nobre, e sua obra acabaria conhecendo também a consagração; contudo, obviamente não poderia sabê-lo quando compôs aquele poema, registro de um diálogo com o duplo lírico do poeta lusitano, que tão fortes marcas deixaria no imaginário português (e mais além).

2. Da poesia nobriana
Se aquém e além-mar a poesia de Antônio Nobre não tardaria a alcançar uma grande repercussão, esse impacto está relacionado à mescla de elementos biográficos e literários que, posteriormente, inscreveria o poeta no panteão em que figuram Camões e Garrett, Camilo e Pessanha, entre tantos outros. Nascido no Porto, em 16 de agosto de 1867, e vitimado pela tuberculose com apenas 33 anos, Antônio Nobre teve a curta vida de um inadaptado, tanto no que tange aos meios acadêmicos coimbrãos — comprovam-no as reprovações no curso de Direito que o biógrafo Guilherme de Castilho atribuiria a traços de personalidade como uma “atitude de superioridade desdenhosa” e um “desprezo instintivo por todos os formalismos convencionais” — quanto no que diz respeito ao meio literário — seria alvo de grupos de escritores que o acusavam, por exemplo, de plagiar Guerra Junqueiro. Mas foi o elaborado processo de construção de um multifacetado duplo literário, da personalização nacionalista “Antônio” à trágica e dolente figura de “Anto”— personae que aparecem na abertura e no encerramento de , sua perene obra-prima —, o que operou como eficaz estratégia literária para sintetizar constelações temáticas pós-românticas, simbolistas e decadentistas, mesclando-as com elementos biográficos, o que propiciaria leituras empáticas como a de Manuel Bandeira.

Publicado em duas edições durante a vida do poeta, é uma obra que ainda apresenta instigantes desafios para a crítica. As diferenças de organização entre as edições de 1892 e de 1898, bem como as supressões e acréscimos textuais, sugerem diferentes possibilidades para a leitura deste livro que a intenção poética, sem dúvida, concebeu como uma obra organicamente estruturada. A tarefa de interpretar o capital volume — “Que é o livro mais triste que há em Portugal!”, como afirma o famoso verso final de Memória, espécie de registro lírico-prefacial que, a partir da segunda edição, funciona como peça de abertura —, a um tempo crônica poética de uma subjetividade e de um povo, recebe valioso auxílio por conta das inúmeras notas preparadas por Annie Gisele Fernandes e Helder Garmes para a edição aqui comentada, esclarecendo referências biográficas, históricas e culturais. Os poemas compostos posteriormente à primeira edição de , e não incorporados à versão de 1898 por decisão autoral, foram reunidos em Despedidas, livro publicado em 1902 (portanto, já após a morte do poeta) por seu irmão, Augusto Nobre. As dificuldades suscitadas pela leitura de Despedidas são outras que não as que impõem a leitura de : no caso do livro póstumo, assume relevo o fato de se tratar sobretudo de uma compilação de poemas nos quais assoma a condição inacabada. Não obstante, trata-se de uma obra importantíssima, seja pelo inconcluso épico O desejado, seja por belíssimos poemas, como o soneto Adeus a Constança.

Pelo esmero com que foi preparada, pela rica apresentação, pelas preciosas notas, pela Bibliografia básica e pelo Vocabulário auxiliar apensos ao volume, a publicação de Só (seguido de Despedidas) vem responder à perene demanda por edições bem cuidadas de obras de indiscutível importância, tanto para os leitores exigentes quanto para aqueles que se dedicam aos estudos literários. Cabe enfatizar, a propósito, que essa demanda vem sendo muito bem atendida pela coleção Clássicos Ateliê, dirigida por Ivan Teixeira e Paulo Franchetti, da qual faz parte a obra comentada.

Só (seguido de Despedidas)
Antônio Nobre
Ateliê
448 págs.
Antônio Nobre
Nascido no Porto, Antônio Nobre (1867-1900) foi um dos autores mais importantes do fim do século 19 em Portugal. Após estudos mal-sucedidos em Coimbra, partiu para Paris, onde se formou em Ciências Jurídicas, ali familiarizando-se também com a estética simbolista. Na capital francesa, publicaria sua primeira e mais importante obra: o livro Só, que receberia uma segunda edição, bastante modificada, ainda em vida do poeta. Vitimado pela tuberculose, Nobre faleceu aos 33 anos, deixando escritos que seriam reunidos na obra póstuma Despedidas.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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