O discreto charme da burguesia

"As sobras de ontem", primeiro romance de Marcelo Vicintin, não convence ao tentar dar vida a um figurão do ramo empresarial no Brasil contemporâneo
Marcelo Vicintin, autor de “As sobras de ontem”
03/01/2021

A literatura brasileira é rica na tradição de evocar suas elites políticas e/ou econômicas. Isto acontece, sobretudo, porque foram poucos os autores que não se originaram desta casta privilegiada. Desde os primeiros anos heroicos de identificação da nacionalidade, José de Alencar já trafegava nesta via, como atestam muitos de seus personagens. Eles são médicos, advogados, políticos, nobres, frequentadores das requintadas festas do Segundo Reinado. É notório que há os remediados, mas estes, ideologicamente, seguem a receita dos que estão por cima, tentando vorazmente igualar-se a eles ou mesmo lhes roubar o lugar.

Machado de Assis, caso à parte em nossa literatura, glória que nos chegou cedo demais e que talvez naquele momento ainda não a merecêssemos, foi escritor de origem humilde, morador do que se poderia chamar, à época, de subúrbio. Ele, melhor do que ninguém, soube apresentar-se desde cedo, devido à premência do meio que frequentava, como aprendiz de feiticeiro. Queriam-no como tipógrafo, profissão operária, mas Machado conseguiu escapar da sina — diz a lenda que lia muito na hora do serviço e, para não ser demitido, seu chefe, Manuel Antônio de Almeida, ofereceu-lhe o cargo de revisor. Daí em diante, vencendo a trama dos que conspiram contra a ascensão social, sabe-se o final da história. No crepúsculo da existência, Machado não apenas fazia parte dos privilegiados, como conhecia suas manhas. Foi mestre em retratar, com muita ironia, personagens da mesma elite brasileira, como Brás Cubas, Bento Santiago, Cristiano de Almeida, o Conselheiro Aires, etc.

No começo do século 20, temos um livro de Oswald de Andrade que trilha na mesma via: Memórias sentimentais de João Miramar (1924). Embora o que exista de revolucionário na obra seja a forma artística, o retrato da decadente elite cafeeira do período — configurado no personagem principal, jovem irresponsável e mimado, que segue na vida adulta sustentado pela mãe — é pintado com tintas fortes.

Poderia citar mais exemplos dos ricos e suas tramas na nossa literatura, como São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, autor de esquerda que soube construir um personagem como Paulo Honório, fazendeiro capitalista. Por incrível que pareça, Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, trata-se de romance que, pelo lado reverso, conta a história das elites do final do século 19. A guerra de jagunços, como caso à parte na nossa realidade, é um jogo de gato e rato a refletir a ideologia dos proprietários, sobretudo rurais. É lógico que o efeito artístico da obra é de outra transcendência, mas a necessidade, para o narrador, de um interlocutor culto, oriundo da ordem legal, vem a validar a ideologia dos poderosos. Bem mais adiante, para completar os exemplos, cito obra que revela as entranhas do poder e a relação do universo político com o econômico, que marcou no século 20 um período da vida nacional. Trata-se de Agosto (1990), de Rubem Fonseca, autor consagrado, que nos deixou não faz muito tempo.

Como se pode observar, não é verdadeira a afirmação de que os autores brasileiros não escrevem sobre as mazelas das elites do país, e que são poucas as narrativas que partem do ponto de vista destas mesmas elites. Em uns a questão aparece de maior monta, enquanto em outros surge de modo sutil. Autores só podem falar sobre suas experiências, e a dos escritores de nossa literatura, por mais que tenham rastejado, não surgiram no patamar da miséria absoluta.

Momento atual
Em As sobras de ontem, Marcelo Vicintin apresenta o momento atual brasileiro, em que vários empresários foram presos pela operação Lava Jato. Grande parte do assunto principal deste livro está na voz de um dos protagonistas, herdeiro de uma empresa de navegação, que volta de Wall Street com o objetivo de assumir a presidência do grupo. Ele revela suas falcatruas como empresário, a prisão, algumas experiências no cárcere e, depois, sua vida em prisão domiciliar, portando a famosa tornozeleira eletrônica.

Nos dias de hoje, devido à necessidade de vender livros, as editoras procuram assuntos do momento, capazes de seduzir o leitor. A prisão de muitos empresários e de alguns políticos esteve presente nas mídias durante boa parte do tempo e, sobretudo, no horário nobre dos telejornais, contribuindo para calorosos discursos antipolíticos e abrindo caminho para candidatos aventureiros, praticantes de descalabros dos mais deslavados, que se apresentavam como salvadores da pátria, flertando com o golpismo e estimulando-o. Embora a discussão estabelecida pelos personagens principais atravesse tal imbróglio, ela se perde num misto de crise existencial e ânsia de consumismo.

Numa obra literária o principal não está na história a ser contada, mas na forma de como ela se materializa como narrativa. Pode-se dizer que o ponto alto do livro está no antagonismo entre Egydio Brandor Poente, o empresário, e Maria Luiza Alvorada, conhecida como Marilu, uma alpinista social, oriunda de uma família que mergulhou na falência. Como o livro tenta descrever a vida da elite empresarial de São Paulo, há personagens caricatos, como o playboy Tácio, e Cacá, um homossexual que tem a função de promover festas e fazer marketing pessoal de seus clientes preferenciais, a fim de que permaneçam na mídia.

A narrativa intercalada torna-se um risco para qualquer autor, mas Vicintin se sai bem, tentando, inclusive, um contraponto entre as atitudes de Egydio como empresário e suas preferências culturais, com a citação de filmes cults, como o Anjo exterminador, de Luis Buñuel, de obras literárias e filosóficas.

Inverossímil
O livro peca no momento em que tal personagem coloca o tédio como móbile das ações que o levaram à prisão:

Hoje eu olho sem arrependimento para minhas tentativas de fugir do tédio. Fui alguém que, preso em areia movediça e convicto de que ninguém viria me salvar, resolvi terminar tudo do meu jeito e dançar até a morte. Nós, seres finitos, temos a obrigação de não sermos chatos. A chatice é privilégio dos deuses.

Tal passagem se dá no momento em que descreve por que praticou delitos que o levaram ao cárcere. Mais adiante, após contar episódios complotistas, que envolvem personagens altamente suspeitos, insiste: “Existe uma condição à qual o ser humano não consegue se adaptar, não importa quantas vezes seja exposto a ela: o tédio”. Seria este o vazio existencial que o teria levado a aventuras, a práticas criminosas que resultaram no seu processo e a consequente estadia de 18 meses na prisão de Tremembé.

Sabemos que, no mundo empresarial, predomina a ânsia pelo lucro, a luta cada vez mais intensa pela conquista de mercados. O dinheiro ganho com isso pode ser empregado de diversas formas, como na satisfação dos desejos mais excêntricos do seu proprietário ou mesmo no patrocínio de projetos sociais ou de apoio à cultura. No entanto, do modo como se apresenta no texto, a atitude de Egydio dificilmente seria verossímil. O presidente de uma das mais importantes empresas do país não subornaria políticos por causa do tédio, mas sim para alavancar seus negócios. No romance, isto talvez ocorra, porque todo escritor só consegue escrever a partir de suas experiências e, na maioria das vezes, a experiência do autor é a do artista, o que torna arriscado ele se colocar na pele de gente que vive uma realidade que não é a sua. Pelas referências culturais, o espírito de Egydio não é o de um empresário, mas de um homem relacionado às artes, como Proust, que ele cita, e Jean des Esseintes, de Às avessas, a quem ele faz referência mais de uma vez.

Um verdadeiro empresário não colocaria tudo a perder porque se sente entediado com a burocracia diária de funcionamento de uma empresa. A necessidade de voos cada vez mais altos seria justificada por uma concorrência cada vez mais acirrada, realidade atual de todos os mercados.

A parte do livro narrada por Marilu, ou Mariloca, ou Mariladra, como o próprio apelido revela, não diz mais do que os anseios de consumo de uma mulher contaminada pelo ressentimento de uma burguesia decadente desejosa de permanecer no topo da sociedade. Um exemplo: “Minha tia Carlota costumava dizer que é melhor chorar em Paris que ser feliz em Osasco”.

O problema que reside nesta parte da narrativa — resultante de um diário que vem escrevendo desde jovem, segundo a narradora —, é que foi empreendida por alguém que despreza o mundo da cultura. Escrever não é algo fácil, a narradora, entretanto, possui um vasto potencial de escritora, inclusive com características de linguagem muito semelhantes ao modo refinado de como Egydio constrói seu texto. A exceção é o que ela repete com insistência: “É mara”. Cabe ao leitor procurar o significado.

No fundo, sabemos que tudo advém do escritor. De diversas formas ele tenta mascarar sua presença atribuindo vida própria aos personagens.

Apesar dos problemas colocados acima, o livro merece ser lido. O que há de bom não precisa ser trazido a debate. A função da crítica não é a de apenas elogiar, mas de dialogar com possíveis problemas. Só assim a obra poderá potencializar-se.

As sobras de ontem
Marcelo Vicintin
Companhia das Letras
213 págs.
Marcelo Vicintin
Nasceu em São Paulo (SP), em 1981. É formado em Administração pela Eaesp-FGV, com MBA pelo Insead, na França. Nos últimos 15 anos trabalhou em diversas empresas no Brasil e no exterior. Fundou em 2015 a Axis Renováveis, especializada em energia solar. As sobras de ontem é o seu primeiro romance.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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