É realmente elogiável a iniciativa da Editora Globo ao empreender — com o selo “Biblioteca Azul” — a 4ª edição traduzida, revista e ampliada de A comédia humana, de Honoré de Balzac, reunindo 88 obras, compiladas em 17 volumes. O famoso autor e sua fecunda trajetória criativa justificariam, entre os nomes e títulos arrolados como fundamentais da literatura universal, o empenho laborioso dessa corajosa aventura editorial. Mas se há infindáveis méritos em reeditar Balzac com tamanho rigor e precisão, o que há de mais alentador na recente publicação é, sem dúvida, a organização, o conjunto de apresentações, comentários e detalhadas análises, em que transparece a devoção que o grande estudioso e crítico Paulo Rónai (1907-1992) dedicou ao escritor francês, ao longo de um extenso período de sua vida, tornando-se um de seus maiores especialistas.
Desse modo, é dupla a satisfação de quem se depara com o primor da nova edição brasileira: a de fruir na íntegra a maior parte dos volumes da vastíssima Comédia balzaquiana, além de poder contar com a iluminação orientadora dos argutos comentários de seu mais habilitado conhecedor. A propósito, no volume inaugural da coleção, Balzac e a comédia humana, escrito por Rónai, ficamos sabendo, na “Nota dos editores”, que a nova edição é, com efeito, uma “homenagem ao legado de Paulo Rónai às nossas letras”. Nelson Ascher também enriquece o intento editorial, logo no preâmbulo do livro, contando-nos que o crítico húngaro teria ficado famoso no Brasil como tradutor e divulgador de literatura estrangeira e, sobretudo, como apresentador, para o público brasileiro, da prosa e da poesia de seu país de origem — a Hungria. Mas o aspecto mais fascinante e duradouro na trajetória intelectual do refinado erudito teria sido, justamente, a paixão com que se deu à análise minuciosa das obras de Balzac.
Espelho do século 19
Diante disso e seguindo as pistas seguras que nos dá o mestre Rónai, notamos que é muito comum que se exalte, principalmente, o caráter documental da Comédia humana, em que historiadores e sociólogos vão colher dados a respeito dos mais diversos fenômenos da primeira metade do século 19. Assim, não é raro que encontremos como um dos mais justificados motivos para que empreendamos a sua leitura o fato de que o amplo conjunto de seus textos representa um verdadeiro espelho daquela época.
Nesse sentido, não faltam argumentos que invistam na máxima de que toda obra literária, em boa medida, reflete o momento histórico em que foi criada. E Balzac pôde conhecer testemunhas não apenas da Revolução Francesa, como também do Antigo Regime. Quando criança, assistiu a brilhantes cenas da epopéia napoleônica e acompanhou as duas Restaurações Bourbônicas (antes e depois dos Cem Dias), viu surgir e desaparecer o regime conservador de Luís XVIII e o sistema reacionário de Carlos X. Presenciou todo o reinado liberal-burguês de Luís Filipe, a Revolução de 1848 e a eleição de Napoleão III para presidente da República. Tudo isso concentrado em uma vida de apenas 51 anos. Mas o que ele mais percebeu, em meio às profundas transformações de sua época, foram as que se verificavam nos bastidores da sociedade. Rónai observa que:
Os progressos da técnica traziam uma série de inovações, antes de tudo as estradas de ferro, que, para os olhos sagazes, anunciavam imensas modificações da vida coletiva e particular. Surgiam novos poderes: o capital, a imprensa, a publicidade. Patenteava-se a ascensão prodigiosa do dinheiro, que reivindicaria um papel cada vez maior em todos os domínios. Estavam, pois, aparecendo e desenvolvendo-se as forças que passariam a moldar todo o período da história européia até a Primeira Guerra Mundial. Esboçavam-se, desde então, os tipos humanos que as novas possibilidades não deixariam de produzir. A comédia humana de Balzac contém uma imagem fiel e pormenorizada de toda essa fermentação, de seus resultados visíveis e de suas conseqüências conjeturáveis.
Historiador de costumes
Com efeito, o próprio Balzac nunca se autodenominava “romancista”, mas sim “historiador de costumes”, e entendia que sua tarefa consistia em apresentar a sua época através dos personagens que criasse. Estes seriam os tipos a que se poderiam reduzir os componentes de uma geração, que chegavam a dois ou três mil na França de então. Desse modo, a sua “história de costumes” deveria ter igual número de figurantes. E, de forma originalíssima e exclusiva, ele levou a cabo tal intento, criando, no grande espectro de sua Comédia, uma profunda unidade, fundamentada no estratégico procedimento de fazer voltar, sistematicamente, ao longo das páginas de suas diversas histórias, os mesmos personagens. Daí por que os romances de Balzac nunca comecem nem acabem.
Conforme ensina ainda o estudioso húngaro, cada um deles traz sementes que vão germinar além do fim e, por sua vez, apresenta o desenvolvimento de germes lançados em um ou mais romances anteriores. Morrendo a figura principal, as outras continuam a própria vida, esperando a sua vez para passar ao primeiro plano. É comum, por exemplo, que personagens felizes, num determinado plot romanesco, reapareçam desesperados e infelizes num outro; de um livro para o seguinte, há os que envelhecem, os que passam por verdadeiras metamorfoses, e esse transitar continuado dos tipos concebidos, que, freqüentemente, inclusive, vivem misturados a pessoas da vida real, só faz aumentar a ilusão da realidade — que acaba revelando, sem dúvida, uma das grandes características da guinada estilística proposta pelo grande escritor às tendências literárias francesas vigentes à época.
Estilo balzaquiano
Um dos melhores ensaios sobre o estilo balzaquiano é de Hippolyte Taine, que, com muita pertinência, observou o quanto A comédia humana, por meio da pena engenhosa de seu autor, conseguira retratar a complexidade da nova sociedade francesa que se afirmava no século 19. Ele escreve a respeito:
Esse estilo é um caos gigantesco. Tudo existe nele: as artes, as ciências, os ofícios, toda a história, os filósofos, as religiões, tudo lhe forneceu palavras. Em dez linhas percorrem-se os quatro cantos do pensamento e do mundo. Há aqui uma idéia swedenborgiana, ao lado, uma metáfora de açougueiro ou de químico; duas linhas além, um trecho de tirada filosófica, depois, um gracejo picante, um matiz de enternecimento, uma semidivisão de pintor, um período musical. É um extraordinário carnaval de metafísicos pedantes, de silenos libidinosos, de sábios lívidos, de artistas desengonçados, de operários de uniforme, todos enfeitados e ajaezados com todas as magnificências e os badulaques, roçando os vestuários e os espólios de todos os séculos, aqui um farrapo, além um traje bordado a ouro, a púrpura costurada aos trapos, os diamantes adornando os andrajos, toda essa multidão turbilhonando e suando na poeira e na luz, sob o resplendor do gás, cujo áspero brilho palpita e deslumbra. A princípio sentimo-nos chocados, depois vem o hábito, e em seguida a simpatia e o prazer. Fica-se impressionado com essa irrupção de figuras estranhas, essa largueza de perspectivas, essa imensa e súbita abertura de todos os horizontes…
Tal profusão novelesca de tipos, em cuja base residia, sobretudo, a exaltação do homem médio (e não mais aristocrático), típico representante da classe burguesa que visava à ascensão social e econômica e que, de repente, percebeu-se representado literariamente, foi a chave com que Balzac abriu o espírito dos leitores de seu tempo, cuja fome por romances era imensa.
Mas somente com a criação de sua Comédia humana é que se operou a grande transformação na trajetória literária e na vida de nosso autor, que até então vivera miseravelmente com os parcos recursos advindos das primeiras obras, consideradas subliterárias.
Flertes epistolares
Junto às glórias iniciais do sucesso, vieram também as infindáveis cartas que lhe dirigiam, principalmente, as mulheres leitoras, inaugurando, na rotina do escritor, a necessidade de salvar um tempo para tais correspondências, uma vez que estas, em boa medida, potencializavam a crescente procura por seus romances. Vez ou outra, orientado pelo que as cartas lhe comunicavam, diante da recepção de determinada obra, Balzac chegou a escrever “sob medida”, a fim de atender os anseios de seu vasto público feminino.
Além disso, é preciso lembrar que ele — talvez bem mais do que outros — passara a compreender perfeitamente a interdependência das indústrias do papel e do livro, tendo sido um dos primeiros a considerar a editora não como simples intermediária entre a tipografia e o público, mas, sim, como coordenadora de múltiplas atividades industriais, o que o fez investir em sua própria editora, a qual, porém, não teve êxito.
O melhor conhecedor de sua vida, o visconde Spoelberch de Lovenjoul chegou a precisar o número de doze mil cartas recebidas por Balzac, entre 1830 e 1850. Algumas dessas mensagens, publicadas em Paris, oferecem uma interessante mostra do que poderia ser o perfil de algumas de suas leitoras:
São solteironas protestando contra o retrato da solteirona, impiedosamente traçado; louras tomando as dores por alguma heroína loura, maltratada num romance; senhoras reclamando contra conceitos injuriosos acerca das mulheres casadas; esposas incompreendidas trazendo a sua própria história para dar assunto ao romancista — e quase todas pedindo encontro para demonstrar pessoalmente quanto Balzac se enganara ao pronunciar este ou aquele julgamento a respeito do sexo feminino. O escritor lia, entre lisonjeado e aborrecido, os bilhetes de todas essas mulheres “às vezes apaixonadas, mais comumente, porém, apenas curiosas e pervertidas”.
Mas foi exatamente uma dessas cartas, a assinada por “Uma estrangeira”, que o arrebatou, conduzindo-o ao romance mais intenso e duradouro de toda sua vida, até então repleta de aventuras no universo feminino, especialmente com mulheres mais velhas do que ele (o que, inclusive, justificaria, na concepção de alguns críticos, a predileção do autor por traçar perfis femininos maduros, como se deixa entrever em A mulher de trinta anos, bastante emblemática quando se pensa nos sentidos que a expressão “mulher balzaquiana” foi assumindo ao longo do tempo).
A estrangeira, com quem ele passará a manter assídua e inflamada correspondência, tratava-se, na verdade, da polonesa Eveline Rzewuska (casada com o latifundiário Wenceslas Hanski, muito mais idoso do que ela), que Balzac passou a chamar de condessa Hanska e que viria a se tornar sua esposa. Precisou, porém, esperar por mais de oito anos (até a morte do marido) para enfim desposá-la, depois de um tempo de atribuladíssimas viagens que pudessem favorecer-lhes os encontros. Vale conferir o peso determinante de tal experiência na vida do autor por meio da leitura de suas famosas Cartas a uma estrangeira.
Paris: a cidade-chama
Tratando do crescente sucesso de Balzac, especialmente depois da publicação de alguns dos romances que viriam a compor sua obra magna, um de seus maiores inimigos, Sainte-Beuve chegara a acusá-lo de oportunismo, pois percebia nas lisonjas que dirigia às mais diversas cidades francesas, em que tantas vezes situava seus personagens, uma nítida e ardilosa estratégia para cooptar leitores. De fato, quase toda a França aparece na Comédia humana, mas Balzac continua sendo, por excelência, o romancista de Paris.
Entretanto, como bem observa Rónai, o epíteto da charmosa cidade-luz transmuta-se no de cidade-chama, na pena do escritor, uma vez que, embora atraído pelo fascínio de suas seduções, jamais deixa de fazer ver o quanto a sociedade parisiense (que impera sobre a paisagem), em pouco tempo, se consome em suas chamas:
Atrai de longe os moços de toda a França, de toda a Europa, do mundo inteiro, ricos e pobres, ávidos de amor, de êxito, de riqueza […] A maioria consome-se inteiramente no fogo: esgota-se na luta, adoece e morre; cai na miséria e se estiola longamente; ou foge da chama, espavorida, e resigna-se a uma existência mesquinha. Outros conseguem manter-se muito tempo à luz, dançam cintilantes aos olhos de seus semelhantes, chegam às alturas; mas o fogo lhes secou a seiva do coração, esterilizou-lhes a sensibilidade, fê-los renegar os ideais. Em Paris, aliás, o êxito quase não é menos perigoso do que o fracasso: ali o sucesso é louco, “capaz de esmagar as pessoas que não têm ombros e rins para sustentá-lo”, como se vê no caso de Venceslau Steinbock, o talentoso mas abúlico artista por quem a prima Bete (do romance homônimo) se apaixona. A vitória e a derrota são obra de um minuto…
Segundo Balzac, em Paris, melhor do que em qualquer outra parte do mundo, a vida se resume a uma eterna luta de instintos, mal disfarçada pelas formas polidas da civilização. De certa forma, esse cenário contraditório, que atrai e aniquila, que seduz e prepara o bote, acaba sendo o pano de fundo recorrente em muitos de seus romances.
Num dos mais importantes — eleito por parcela significativa de críticos como o melhor —, O pai Goriot, a atmosfera parisiense é tão incisiva e reveladora que Jules Bertaut teria arriscado afirmar que Paris, no desenrolar daquelas páginas, assumiria o verdadeiro protagonismo. Nesse sentido, importa conferir o que afirma Vautrin (personagem importantíssimo do romance, que encarna o porta-voz das intenções diabólicas e tentadoras daquele ambiente) ao principiante e ainda inocente Rastignac:
Paris, veja, é como uma floresta do Novo Mundo, onde se agitam vinte espécies de tribos selvagens que vivem do produto das diferentes classes sociais. Você é um caçador de milhões. Para apanhá-los usará ciladas, engodos, chamarizes. Há várias maneiras de caçar. Uns caçam dotes, outros liquidações. Estes pescam consciências, aqueles vendem seus assinantes com os pés e os punhos amarrados. Os que voltam com o alforje bem cheio são saudados, festejados, recebidos na alta sociedade. Façamos justiça a este solo hospitaleiro. Você tem como campo de ação a cidade mais complacente do mundo.
Conservador ou revolucionário?
Cumpre observar, no entanto, que a Paris desenhada por Balzac é a que revela as transformações radicais que se operaram nas mentalidades daquele início de século, sobretudo porque seus personagens se deixam moldar pela necessidade de ascensão social a qualquer preço, o que inevitavelmente situa o “vil metal” no centro de todos os embates.
Em interessante ensaio sobre o século 19, intitulado O século sério, Franco Moretti aponta também como traço evidente, no ambiente romanesco balzaquiano, a ênfase dada à inseparabilidade entre pessoa e coisa, e cita as palavras de Erich Auerbach a respeito:
Balzac não somente localizou os seres cujo destino contava seriamente, na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada, como o fazia Stendhal, mas também considerou essa relação como necessária: todo espaço vital torna-se para ele uma atmosfera moral e física, cuja paisagem, habitação, móveis, acessórios, vestuário, corpo, caráter, trato, ideologia, atividade e destino permeiam o ser humano […]
Com efeito, essa “coisificação” do ser — em que a objectualização do indivíduo é flagrante e as descrições de personagens e seu entorno ora se saturam de aparatos, vestuários, ornamentos, ora de despojamentos e desleixos grotescos de toda espécie de miséria, sempre num detalhamento exaustivo — aparece como traço fortemente marcado no estilo de Balzac. Vejamos, apenas a título ilustrativo, esta descrição da sra. Vauquer (dona da precária “pensão burguesa”, em que reina a “miséria sem poesia; uma miséria econômica, concentrada, gasta, que não tem ainda lodo, mas manchas; que não tem buracos nem andrajos, mas uma podridão envelhecida…”, onde se passam muitas das cenas de O pai Goriot):
Essa peça [a pensão] adquire todo seu esplendor no momento em que, pelas sete horas da manhã, o gato da sra.Vauquer precede sua dona, salta sobre os armários, fareja o leite contido em várias tigelas cobertas com pratos e faz ouvir seu rom-rom matinal. Logo depois aparece a viúva, enfeitada com uma touca de filó da qual sai um coque de cabelos postiços malposto, arrastando os chinelos rotos. Seu rosto avelhantado, gorducho, do meio do qual sai um nariz em bico de papagaio, as mãozinhas rechonchudas, o corpo roliço como o de um rato de igreja, o busto amplo e oscilante estão em harmonia com essa sala que ressuma desgraça, onde se acaçapa a especulação e cujo ar calidamente fétido a sra. Vauquer respira sem enfado. Seu rosto frio como a primeira geada do outono, seus olhos enrugados, cuja expressão passa do sorriso prescrito às bailarinas à amarga carranca do agiota, toda sua pessoa, enfim, explica a pensão, como a pensão implica sua pessoa. Não há galé sem guarda, não se imagina uma sem o outro. A gordura baça dessa mulherzinha é o produto dessa vida, como o tifo é a conseqüência das exalações de um hospital. Sua saia de baixo, de malha de lã, que aparece sob o velho vestido reformado e cujos chumaços saem pelos rasgões do forro cheio de fendas, resume a sala de estar, a sala de refeições e o jardinzinho, anuncia a cozinha e faz pressentir os pensionistas.
Segundo Moretti, tal procedimento seria recorrente no realismo característico das descrições do século 19 (não apenas balzaquianas, mas também, por exemplo, as impetradas por Walter Scott) porque haveria uma necessidade de “fixar a história” (numa explícita tendência de sobrecarregar o presente, mas sempre como apêndice do passado), muito comum à grande ideologia política daquele período que foi o pensamento conservador.
Entretanto, sobre a postura ideológica assumida por nosso autor, é bastante interessante observar o que nos esclarece a respeito, novamente, Paulo Rónai. Pelo que o crítico nos faz compreender, as correntes políticas mais antagônicas se servem do nome do romancista como de um escudo:
Léon Daudet explora-o em seus ataques ao “estúpido século 19”, ao passo que Marx e Engels o consideram uma das principais testemunhas da acusação no grande processo do capitalismo e da burguesia. Discute-se ainda hoje a moralidade ou imoralidade de seus livros. Um Jean Carrère condena-o ao pelourinho por ter sido “mau mestre”, corruptor de uma geração; um Paul Bourget, que o venera com entusiasmo de discípulo, aponta nele o juiz de uma geração corrompida.
O pai Goriot
É no ambiente da Casa Vauquer que circula, já no início do melhor romance do escritor francês, a precisa galeria de tipos balzaquianos. Um deles, por exemplo, o Sr. Poiret:
[…] era uma espécie de autômato. Vendo-o passar como uma sombra cinza ao longo de uma alameda do Jardin-des-Plantes, a cabeça coberta com um gorro mole, mal segurando a bengala com castão de marfim amarelado, deixando flutuar as abas enrugadas da sobrecasaca que ocultava uns calções quase vazios e pernas metidas em meias azuis que tremiam como as de um ébrio, mostrando um colete branco sujo e um peitilho de grossa musselina enrugada, que se unia imperfeitamente à gravata enrolada em volta de seu pescoço de peru, muitos perguntavam se essa sombra chinesa pertencia mesmo à audaciosa raça dos filhos de Jafé que perambulam pelo Boulevard des Italiens.
Moram ao todo, na pensão, sete locatários — e sempre tendo em mente a minúcia descritiva de uma proposta realista que visa suprimir os confins entre o mundo da realidade e os domínios da arte, assim nos adverte o narrador de O pai Goriot, logo às primeiras páginas: “Ah! Sabei-o: este drama não é ficção nem romance. All is true: ele é tão verídico que qualquer um pode reconhecer em si mesmo e, talvez em seu próprio coração, os elementos que o compõem”.
O enredo do famoso drama pode ser resumido a um típico e drástico caso de ingratidão filial (que mantém diálogo intertextual explícito com o Rei Lear de Shakespeare).
O Sr. Goriot, homem simples e rude, antes da Revolução, trabalhava como operário numa fábrica de massas. Acabou conseguindo acumular um capital que mais tarde lhe permitiu dedicar-se ao comércio, “com a superioridade que uma grande soma de dinheiro confere a quem a possui”. Embora fosse “paciente, dinâmico, enérgico… um diplomata para planejar e um soldado para executar […] fora de seu singelo e obscuro armazém, voltava a ser o operário estúpido e vulgar, incapaz de compreender um raciocínio, insensível aos prazeres do espírito, o homem que dorme no teatro…”. Ficando viúvo precocemente, acaba transferindo sua afeição às filhas Anastácia e Delfina, a quem tudo dedica, inclusive a fortuna.
As moças, a partir do momento em que começam a ser seduzidas pelo luxo dos altos círculos da sociedade parisiense e casando-se, a primeira delas com um conde e a segunda com um rico banqueiro, envergonhadas diante dos hábitos toscos do pai, evitam encontrá-lo. E o pobre homem, já envelhecido e quase sem recursos financeiros, já que depauperado pelas irrefreáveis ambições das filhas, acabará na pensão Vauquer, morrendo na mais absoluta penúria e abandono.
Apenas um dos moradores da pensão, o jovem Eugênio Rastignac — o verdadeiro protagonista do romance — que se mudara do sul da França para Paris para estudar Direito, é que terá piedade do pobre homem, assistindo-o em sua hora derradeira. A indignação do estudante diante do estado a que o velho fora reduzido é bem elucidada no seguinte trecho:
Eugênio, que entrara pela primeira vez no quarto do pai Goriot, não pôde evitar um gesto de estupefação ao ver o quarto miserável onde vivia o pai, após ter admirado o luxo da filha. A janela não tinha cortinas. O papel que forrava as paredes estava desbotado em vários lugares, devido à umidade, e enrugado, deixando ver o reboco da parede amarelada pela fumaça. O velho estava deitado num catre, tendo sobre o corpo um cobertor fino e sobre os pés um acolchoado feito com os pedaços aproveitáveis de vestidos velhos da sra. Vauquer. O assoalho era úmido e cheio de poeira […] O mais humilde criado vive, certamente, muito melhor na sua água-furtada do que o pai Goriot na casa da sra. Vauquer. O aspecto do quarto causava frio e apertava o coração, parecia mais a cela triste de uma prisão.
Mas o que parece ser o traço mais importante desse romance — muito além dessas questões éticas que tangenciam a dinâmica da ingratidão e da fossilização dos afetos — é a tensão que o narrador balzaquiano consegue estabelecer, magistralmente, no espírito daquele jovem, a princípio ingênuo e bem intencionado, que vive em crise por ser tentado a se corromper na “lama da sociedade parisiense”, onde todos têm seu preço.
Balzac, Eça, Dostoiévski
Segundo Rónai, esse Rastignac de Balzac pode ser visto como o personagem inaugural, o que teria inspirado uma série de outros que o seguirão (como, por exemplo, o Teodoro de O mandarim, de Eça de Queirós, ou ainda o grandioso Raskólnikov de Crime e castigo, de Dostoiévski), em meio ao grande rol dos personagens-chave de vários romances da boa literatura universal. São eles os que — guardando as respectivas diferenças e distâncias — sofrem eternas crises de consciência diante do que lhes dita sua verdade interior, em contraste com o que a avalanche de perturbações e necessidades de toda ordem, sobretudo as materiais, lhes impõe.
Há um diálogo de O pai Goriot que bem resume essa tensão e pode ser tomado como emblemático, quando se busca rastrear em toda Comédia humana e também em outros contos do autor, uma de suas mais fortes obsessões, refletida em grande parte de seus escritos. Trata-se do assim chamado “dilema do mandarim”.
Assassinos virtuais
O jovem Rastignac, recém-chegado da província à “cidade-chama”, vai se dando conta da dura trajetória que o espera, se tiver que vencer por seus próprios meios e parcos recursos. Ambicioso e ávido por ascender social e economicamente, é constantemente tentado pelas propostas diabólicas que lhe faz o Sr. Vautrin, que insinua como estratégia viável para que ele consiga obter, com maior facilidade, o que tanto almeja, que se elimine um indivíduo, na realidade, um pária, que não faz a menor falta à sociedade (crime que ficaria sem ter a menor chance de ser desvendado) e cujo assassinato traria, como conseqüência, o acesso à fortuna e à inserção social que o jovem deseja.
A pergunta crucial que Eugênio dirige ao amigo Bianchon, estudante de Medicina, traz à luz o seguinte dilema, nos termos resumidos por Sigaux:
Se lhe bastasse, para tornar-se o rico herdeiro de um homem a quem nunca tivesse visto, de quem nunca tivesse ouvido falar e que fosse um mandarim riquíssimo que morasse no fundo da China, apertar um botão que o fizesse morrer, será que você o faria?
Melhor dizendo, se qualquer ser humano pudesse — em circunstâncias análogas à de Rastignac — “matar um mandarim” para enriquecer, sem que ninguém jamais suspeitasse do crime, sem que houvesse o medo do castigo, talvez o ato monstruoso de dar fim à vida alheia se atenuasse, a ponto de se poder até mesmo conceber a tese de que há em todos nós um assassino virtual, capaz de matar, desde que jamais descoberto. Ao menos é o que se colhe a partir da leitura do famoso conto O assassínio do mandarim, do ficcionista inglês Arnold Bennett, outro autor extremamente influenciado pelo Pai Goriot de Balzac.
O eterno dilema
Eugênio não cederá à proposta de Vautrin, mas “matará seu mandarim” de outra forma, tornando-se amante de uma das filhas de Goriot, conseguindo assim o que queria, transformando-se de idealista ingênuo em arrivista sem escrúpulos. O “assassínio do mandarim” foi imposto a Rastignac pela sociedade.
Há quem veja, nos cuidados extremos que o jovem dedica ao velho ultrajado e moribundo, um culto inconsciente às reminiscências dos valores puros do bom moço do Sul da França, capaz de se comover ainda com os dramas humanos. Há também quem perceba — psicanaliticamente — em sua conduta, algo que tangenciaria a “teoria da compensação”, uma vez que, ainda que tenha se deixado corromper para obter êxito na inescrupulosa sociedade parisiense, continuava a dizer a si mesmo que, apesar de tudo, mantinha no coração os mais nobres sentimentos.
Se pensarmos que Balzac morreu em 1850, bem antes que Sigmund Freud ficasse célebre por suas teses, poderíamos arriscar afirmar que a genialidade do escritor francês se deveu, em grande parte, à sua arguta capacidade de observação do humano, em todas as nuances de sua manifestação.
Segundo Paulo Rónai, o “dilema do mandarim” já estava formulado no conto A estalagem vermelha, desde 1831, e saindo do plano meramente literário havia se tornado um pesadelo constante do autor. Daí porque se tornou também o problema central de toda Comédia humana.
O drama do Pai Goriot se intensifica por meio do drama de consciência de Rastignac, personagem-símbolo que encarna muitas das contradições que passarão a ser freqüentes nos protagonistas dos romances modernos, que surgirão quase cem anos depois desse inventário de tipos que nos legou Honoré de Balzac. Talvez, o próprio autor intuísse a força específica desse romance, uma vez que considerava a história do pai atraiçoado pela filhas ingratas como a mais importante de todas.
Ainda que pareça estranho aos leitores de nossos dias, cinéfilos assíduos, operadores de todas as mídias, super-conectados com as mais diversas espécies de redes sociais, adeptos de uma literatura direta, rápida e visual voltar à lentidão minuciosa das exaustivas descrições do universo balzaquiano, talvez valha à pena estimular-lhes a dar o primeiro passo. Com certeza, terão o privilégio de estar diante do mais fidedigno retrato de costumes da História Privada da França do século 19. Além do que, em meio à infinita galeria de personagens que se desenharão ao longo daquelas inesgotáveis páginas, quem sabe possam descobrir marcas deixadas pelo grande mestre francês em muitas produções artísticas contemporâneas.
E se isso ainda não fosse suficiente, bastaria recordar, por exemplo, o instigante e atualíssimo tema da crítica da imprensa por meio da ficção — que já aparece em Ilusões perdidas e Os jornalistas — revisitado, contemporaneamente, em obras como Os imperfeccionistas, de Tom Rachman, Exclusiva, de Annalena McAfee, e Millenium, do sueco Stieg Larsson, que, conforme ensina o jornalista Alberto Dines, “seguem a trilha iniciada por Balzac há, pelo menos, 176 anos…”.