Em meados da década de 1980, o cantor e poeta canadense Leonard Cohen havia encontrado Bob Dylan em Paris. Os dois conversavam sobre amenidades, até que Dylan comentou sobre o processo de composição de I &I (do disco Infidels, de 1983) e revelou que precisou de 15 minutos e um banco de táxi para dar vida à canção. Empolgado, perguntou ao amigo quanto tempo levou para escrever Hallelujah, o single de Cohen à época. Envergonhado dos sete anos e vários cadernos que usou, o autor de A brincadeira favorita (1963) respondeu quase em um tom de murmúrio: “alguns anos” e mudou de assunto. Se comparada a Born in chains e seus quarenta anos de fervura, do disco Popular problems (2014), Hallelujah teve apenas uma breve gestação.
Nada disso surpreende: Cohen sempre foi um homem de martírios e jornadas, como explica a jornalista britânica Sylvie Simmons em I’m your man: A vida de Leonard Cohen, biografia recém-lançada no Brasil e considerada definitiva sobre o canadense. Entre a carreira de sucesso e o começo — quase — fracassado, Cohen passou por diversas fases: do consumo exagerado de drogas — como LSD e haxixe — à vida monástica após o lançamento e turnê do disco The future (1993). Em um trabalho artesanal de costura de tantos retalhos de uma vida — que já ultrapassou oito décadas —, Sylvie se desdobra para explorar os cantos mais sombrios de um personagem que se revela, página a página, muito mais interessante e surpreendente do que possa parecer.
I’m your man, que teve seu título retirado do disco e canção homônimos, foge do clichê de retratar Cohen como um conquistador, um homem sedutor — um Dom Juan canadense e folk. “Eu quis conversar com as mulheres que foram importantes para ele, pois elas tiveram um papel incrível, não só horizontalmente, mas verticalmente também”, disse Simmons em entrevista exclusiva ao Rascunho. Ainda que as mulheres, amantes e amigas tenham sido importantes, os relacionamentos tomam um plano secundário, escondidos — no bom sentido — atrás da arte. Essa determinação explica a dissecação do processo criativo de Leonard durante a escrita de seu primeiro romance e, depois, de Beautiful losers (1966), inédito no Brasil.
Claro, é possível reconhecer o artista preocupado com questões como religião e sexo, a maturidade e a sabedoria, mas o Cohen dos anos 1960 é um homem muito mais utópico e sério, talvez sintomas da juventude que já começava a deixar o seu corpo. A sua visão de mundo só mudou no final da década, quando deixou de lado a literatura e a poesia para tentar ganhar algum dinheiro com música. Inicialmente, não pensava em ser cantor — queria somente criar canções para colocar nas vozes de outros.
Se há um grande triunfo no livro — e há! — é justamente o poder de inserir o leitor nas cenas sem parecer piegas ou inexato, pelo contrário. Sylvie Simmons compõe um prisma interessante, mostrando as facetas de Cohen. Tão metamórfico quanto David Bowie, o canadense tinha dentro de si muitos homens: o filho, o marido, o amante, o showman e o pai. Leonard foi como o personagem de seu poema em prosa O novo líder (disponível em português sob tradução de Fernando Koproski no livro Atrás das linhas inimigas do meu amor). O texto apresenta um jovem bêbado e lânguido, perdido entre a concupiscência e a santidade. Ao contrário do novo líder, à medida que envelheceu, Cohen percebeu que ambas as coisas podem ser uma só.
Se há um grande triunfo no livro — e há! — é justamente o poder de inserir o leitor nas cenas sem parecer piegas ou inexato.
Tudo branco
Sylvie, que já escreveu sobre as vidas de Neil Young e Serge Gainsbourg, enxerga Cohen como um homem comum, reservado e com pequenas peculiaridades — capaz de deixar a família para lutar na revolução cubana ou pedir desculpas a uma Janis Joplin já morta após revelar suas aventuras sexuais no famoso Chelsea Hotel. Cohen poderia ter feito parte da turma de Andy Warhol, mas foi vetado por “não ser chique o suficiente”.
Casos de rejeição e devoção povoam a vida de qualquer artista, entretanto, na trajetória de Leonard parece que tudo é intensificado. Ao mesmo tempo em que era um poeta festejado em Montreal, ele não conseguia viver de sua arte e precisa fazer pequenos trabalhos ou recorrer à herança deixada pelo pai. Let us compare mythologies (1957) e The spice-box of earth (1961), seus dois primeiros livros de poesia, não o tiraram de seu esconderijo involuntário e fizeram com que deixasse o Canadá para viver na ilha grega de Hidra. A experiência, literalmente lisérgica, foi um divisor de águas e o permitiu ter a liberdade literária que tanto esperava e ansiava, como se a distância do “mundo real” o fizesse um artista mais pleno e preenchido.
Esse período, registrado em Hidra 1960 (também de Atrás das linhas), pode ser resumido pelos versos:
Tudo o que se move é branco
uma gaivota, uma onda, um navio,
e se move puro demais para ser imitado.
Despedace a dor
(…)
Violente a dor,
arruíne a visão fácil,
o aviso fácil, a água
para os que precisam queimar.
Em I’m your man, Sylvie descreve os anos na ilha como uma bomba na vida mundana, uma espécie de cataclismo criativo que projetou Cohen para o momento certeiro em que se transformaria em um ícone da música canadense. Do tempo que viveu com a belíssima Marianne na ilha, compôs a icônica So long, Marianne, que entraria no seu primeiro LP, Songs of Leonard Cohen (1967).
Incansável
As jornadas de Leonard sempre foram às cegas, intuitivas e perigosas. Cohen jamais renunciou à poesia, porém, seu último livro, Book of longing, já completou uma década e nada mais foi lançado. I’m your man oferece algumas respostas. O inferno pessoal do artista, traído e roubado pela empresária/amiga/amante que o obrigou a voltar para estrada, a dedicação aos projetos musicais, como o disco Old ideas (2012) — que marcou o seu retorno definitivo.
A biografia explora o homem contraditório por trás do elegante ladies’ man que parece ter nascido em um terno. Segundo Simmons, Cohen nunca foi alguém preso às certezas, mas sempre fiel às suas dúvidas. “Ele sempre esteve à procura do que é espiritual. Ele estudou cientologia, foi às igrejas cristãs, é um monge zen e conheceu a cultura hindu. Cohen é incansável, existe algo de romântico na sua noção de espiritual”, conta a jornalista ao Rascunho.
Qualquer imagem que enquadre Leonard é um erro. Assim como ele viajou entre os sons dos instrumentos e das palavras, para conhecê-lo é preciso estar disposto a compreender todos as nuances que o formaram, todos os equívocos que o fizeram retroceder.