O desnível entre os poetas

Do genial ao medíocre, todos lutam por um espaço entre a plêiade, pelo reconhecimento, pela aceitação
01/08/2007

1) UM FENÔMENO UNIVERSAL
Eis[1] um incômodo problema literário: o desnível entre os poetas. Facilmente detectável, ele deriva de um fenômeno recorrente — a hierarquização universal dos seres.

“Espinha dorsal” de qualquer instituição, da Terra ao Céu, isto é, do Estado à Igreja — portanto, forma de organização de qualquer sociedade dita civilizada e que tem sua concretização mais ostensiva nas Forças Armadas —, essa hierarquização é um verdadeiro guia em nosso comportamento cotidiano, manifesta em deliberados ou espontâneos atos de comparação. São atos que praticamos dia a dia a propósito de praticamente tudo, pois que estamos sempre procurando o mais — o maior, o melhor — seja na escolha de um objeto para uso ou, mais ainda, na de uma pessoa, para um “caso”, para uma tarefa ou, principalmente, para uma união. Pois que não há dois seres iguais, ela envolve a todos (com a óbvia exceção do que se puder tomar por Absoluto, como a dignidade da pessoa humana), em todos os reinos: tanto no mineral (ouro vale mais que prata), quanto no vegetal (feijão é mais nutritivo que arroz) quanto no animal (leão é mais feroz que cachorro). Assim também entre os próprios seres humanos: sob algum aspecto, e com certo grau de objetividade, alguém é superior a alguém (este jogador é melhor que aquele, este professor é melhor que aquele), mesmo que inferior sob outro aspecto. Em decorrência, também entre os objetos culturais: este romance é mais profundo que aquele, esta casa é mais bonita que aquela. Então, naturalmente, opta-se pelo superior.

Tanto quanto nosso dia-a-dia, a própria História pode ser vista como uma hierarquização de fatos e personagens, como puro reflexo da vivência cotidiana — e praticamente só registra os mais importantes. Os destaques vão para as grandes ações, as grandes descobertas e as grandes invenções, ou os cataclismas da natureza, fatos que alteram o destino dos povos. Registro vivo da História acontecendo, a mídia faz exatamente o mesmo: procura o acontecimento mais grandioso ou mais original para a manchete do dia — e tanto no campo do Bem quanto no do Mal. Talvez lamente quando nada acontece de extraordinário, tanto quanto vibra quando acontece. É o que fazemos também, sempre à expectativa do inédito, do maior, do melhor: quando, o encontro com um extraterrestre?; quando, a conquista da imortalidade?; quando, um outro Pelé? A viagem do primeiro “astronauta” brasileiro foi uma apoteose.

Essa atitude se reflete na busca desenfreada por status: todos buscam o mais elevado. Em círculos que vão crescendo à proporção em que vão baixando na escala, uns poucos atingem o sonhado primeiro nível, outros se contentam com o segundo e o restante procura se equilibrar nos níveis inferiores, em todos os campos de atividade. Qualquer indivíduo que tenha consciência de sua posição superior carrega essa superioridade na expressão e a ostenta, sobretudo quando tenta ou finge ocultá-la, onde quer que se apresente: chega um general… chega um prêmio Nobel… chega uma ministra… chega o presidente de um super-banco… chega a miss universo… Quando esta entra numa plenária masculina, pára tudo. A expressão social mais universal, mais solene e mais constrangedora desse fenômeno é a Assembléia da ONU: vai falar o representante da Alemanha… vai falar o representante da Somália… vai falar o representante do Brasil… vai falar o representante dos Estados Unidos… A dignidade das nações é a mesma; mas o peso dos países, não! A mais odiosa é justamente a mais constante no nosso cotidiano, sempre presente em nossa autoconsciência — aquela que estratifica as pessoas em classes: A, B, C, D, E até o lumpen. O fundamento dessa hierarquização é o socioeconômico; mas, sob ele, lateja a razão mais funda e jamais proclamada, de tão incômoda: o conjunto dos predicados psíquicos, um dos dois verdadeiros fatores (o outro é a feiúra)[2] que — quando reunidos — determinam a exclusão social.

Mas não precisa ir tão longe nem tão alto: em qualquer espaço (em casa, na escola, no trabalho, no clube, no partido, etc.) os olhares se voltam sempre para o mais bonito, ou o mais inteligente, ou o mais rico, ou o mais famoso, ou o mais importante — o mais. Intencionalmente ou não, foi movido por essa mística que o jornal Folha de S. Paulo escolheu essa palavrinha para batizar o seu suplemento cultural.

É exatamente o adjetivo importante, quando empregado numa comparação não-explicitada, que mais exterioriza a onipresença dessa idéia latente em todos. Diariamente, alguém fala em “um Estado importante”, ou “um jogador importante”, ou “um ministro importante”… O advérbio mais atenuaria a desconsideração pelos outros. Em que governo ou em que país existem ministros desimportantes?

O termo mais assimilável (ou menos “agressivo”) para a hierarquização é prioridade. Todos agem estabelecendo prioridades: hierarquizando tarefas e objetivos. “Fazer primeiro o mais importante” — norma básica de qualquer livrinho de auto-ajuda. O problema é como identificar o mais importante ou definir o grau de importância de cada coisa, de cada tarefa ou de cada pessoa. Sem um “termômetro” confiável, fundimos dados objetivos, que dependem das circunstâncias externas, e subjetivos, que dependem de nossas próprias conveniências: com eles, funcionando como valores, montamos nossas escalas. E vamos responder primeiro as questões mais fáceis.

Como não há nada perfeito, a hierarquização induz a uma espécie de fragmentação dos objetos e das pessoas, desviando-se do confronto no interior de uma mesma espécie para um outro, entre atributos de um mesmo ser. É ainda aquela atitude de escolha, em que se procura superar os atributos negativos através da supervalorização dos positivos. E fetichiza a parte a que reduz o todo: a cozinha é apertada, mas a suíte é bem ampla… e encomenda uma “quentinha”; a menina não é muito culta, mas é linda… e casa com o rosto dela.

Nosso mundo está pontilhado de figuras que expressam cotidianamente essa hierarquização universal, em todas as áreas do conhecimento ou da atividade: redutos (altar, trono, palco, pódio), símbolos (estrelas, medalhas, faixas, coroas), prêmios (Nobel, Oscar, Grammy), títulos (Sir, Comendador, PhD), láureas (líder, campeão, pole position), rótulos (top, hit, best-seller) e tantos outros como simples termos (super, hiper, ultra, mega, giga), todos indicativos de um primeiro nível. Além de tudo isso, objetos são usados como signos para expressá-lo de modo codificado: selos, cores, logos, que classificam mercadorias e pessoas estrategicamente, segundo interesses corporativos. Por isso mesmo, não há quem não sonhe com um desses distintivos, em sua área específica. E para todos existe um ranking. E o Guinnes, onde vão parar justamente os mais. E a deusa do mercado, a publicidade, para mostrar que seu produto ou seu candidato é o maior, o melhor. Exatamente por isso, mandamos tudo para o aumentativo: centrão… apagão… timão… acordão… mensalão…

Entre nós, até mesmo os poderes da República (concebidos pelo Iluminismo para serem nivelados, independentes e harmônicos) acabaram hierarquizados: no alto, o Executivo — que nomeia e manobra o Judiciário; em baixo, o Legislativo — que se curva ao Judiciário ou se vende ao Executivo. Mais que um simples paradoxo, é um doloroso oxímoro (um poder impotente, pois que subordinado a outro), mas nada estranhável: o Legislativo representa a população; o Executivo, a classe dominante. Os processos do “mensalão” o demonstraram de forma categórica: em sua magnífica coluna Sete dias, do Jornal do Brasil (Rio, 26/3/06), o jornalista Augusto Nunes deixa claro que foi o próprio presidente da República que mandou um ministro do Supremo mandar o presidente de uma CPI suspender o depoimento de uma incômoda testemunha. Felizmente, esta já tinha falado o essencial: o denunciado era um importante ministro, que caiu logo depois. Até ministérios são hierarquizados: um é mais importante que outro.

Tudo isso é expresso universalmente por duas formas: 1) existencialmente, de modo implícito, por simples gestos — atitudes que tomamos, como através de um olhar, de um dar de ombros, de um tom de voz, com o que indicamos claramente a consideração que temos por nosso interlocutor, isto é: o nível em que o situamos; 2) verbalmente, de modo explícito, através dos juízos de valor — as opiniões que externamos a propósito de todas as entidades, pessoas ou objetos; às vezes, por uns poucos substantivos, mas, de modo especial, pelos adjetivos. Seus três graus servem exatamente à qualificação dos hierarquizados: se o positivo indica o ser em seu estado normal (é ruim/é bom), o comparativo o situa abaixo ou acima de outro (é pior/é melhor), mas o superlativo o projeta para baixo ou para cima de forma absoluta (é péssimo/é ótimo).

Em suma: do Direito (contravenção, crime comum, crime hediondo) à Religião (pecado venial, pecado mortal), da Terra ao Céu, tudo é hierarquizado. Portanto, também a arte. Uma hierarquização saudável, não-agressiva porque natural, reconhecida pela consciência ética, é a dos valores, mas esta — pelo que constatamos no dia-a-dia — parece que foi invertida em nosso mundo.

2) OS CINCO NÍVEIS DOS POETAS
Pois bem: numa aula em que falava disso, uma aluna indagou-me quais os critérios para a hierarquização dos poetas. Respondi que são bem simples — e a aula resultou nesta classificação, que transcrevi do caderno dela.

Os poetas se escalonam até um quinto nível, com oscilações horizontais no interior de cada faixa:

1o) o genial: o que transcende a história, antecipando-a, sintetizando-a ou resgatando-a — um Camões;
5o) o medíocre: o que está fora da história, mas presente em qualquer quarteirão;
2o) o talentoso: identificável em só ser inferior ao gênio — um Antero ou um Drummond;
4o) o esforçado: identificável em só ser superior ao medíocre;
3o) o mediano: o situado entre os apenas superiores ao medíocre e os apenas inferiores ao gênio.

A História abre capítulo para falar dos primeiros: são aqueles que, num grande texto um num grande conjunto de textos superiores, prevêem o rumo da civilização (antecipação — um Dante, na Divina comédia, ou um Milton, no Paraíso perdido), que exibem um panorama dos problemas centrais do seu tempo (sintetização — um Shakespeare, em qualquer uma de suas grandes tragédias, ou um Maiakovski, em Lênin) ou que empreendem a leitura compreensiva do seu trajeto (resgate — um Camões, n’Os Lusíadas). Essas três alternativas revelam, nos espíritos mais elevados, a radical vinculação entre poesia e tempo histórico: ou sonda o futuro, ou questiona o presente, ou evoca o passado. Ou procura fundi-los, numa visão global da condição humana (como Hugo n’A legenda dos séculos). Fora disso, somente aqueles que conseguem penetrar na dimensão ontológica do ser humano, como na poesia filosófica e no alto lirismo (um Goethe, um Pessoa — e poucos outros).

Realçando assim os primeiros, a História ignora os quintos. Cede umas tantas páginas para os segundos e reúne os quartos em longos parágrafos e/ou em miúdas notas de rodapé. Os terceiros são a vasta e, às vezes, monótona maioria, em todas elas, de qualquer país.

Drummond sintetizou essa incômoda realidade num de seus poemas mais famosos, que deve doer em muita gente, mas que ninguém contestou:

O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.[3]

Como se pode perceber (e tendo por desnecessária a referência ao poeta “do quarteirão”), faltou uma referência ao “poeta universal”. Com essa sintomática lacuna, ele podia estar tácita e tática (ou inconscientemente) se acomodando no seu nível. E aí estão claramente figurados os quatro primeiros.

A diferença de valoração crítico-histórica comprova a hierarquização: é uma decorrência, intuída espontaneamente e nem sempre objetiva. Mas quando um Sílvio Romero dedica 100 páginas a Tobias Barreto e 20 a Castro Alves, o que ele está fazendo é ainda uma hierarquização — mas invertida, colocando um gênio abaixo de um medíocre (grande em outros campos): caso típico de gosto pessoal ou de interesse ideológico sobreposto a objetividade crítica.

Veja-se qualquer história da nossa poesia: como não temos ninguém no primeiro nível, ninguém abre capítulo. Quem os abre são os movimentos, não seus poetas. Aliás, temos alguns, todos ante-modernos — Castro Alves, Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Moacir de Almeida, Raul de Leoni — que, por morrerem muito jovens, não realizaram a obra que podiam e, por isso, sem força para transcender a História, abrir capítulo. Mas escrever o que Álvares de Azevedo escreveu com 20 anos ou Castro Alves com 24, somente um gênio como Rimbaud. Os mais amplos espaços são para um Gregório de Matos (mais pelos fatores histórico e ideológico do que pelo estético), um Gonçalves Dias, um Olavo Bilac, um Mário de Andrade (mais pela atuação histórico-doutrinária do que pela obra poética), um Drummond de Andrade, uma Cecília Meireles, um João Cabral… e uns poucos mais, oscilando horizontalmente no interior de sua faixa (um Tomás Antônio Gonzaga, um Raimundo Correia, um Manuel Bandeira, um Murilo Mendes, um Jorge de Lima, um Vinicius de Moraes) — sempre conforme o gosto, a visão, o conhecimento, as preferências, os relacionamentos e/ou a ideologia do historiador.

Ao falar em gênio, temos que fazer uma óbvia distinção, que tem a morte como referência — ou a idade. E identificaremos dois tipos: o do talento demonstrado e o da obra realizada — a potência e o ato da proposição aristotélica. Castro Alves viveu 24 anos; Victor Hugo, 83. Se os talentos demonstrados são equivalentes, as obras não podem ser comparadas de modo absoluto. Se quisermos confrontar o nosso bardo com poetas universalmente reconhecidos como geniais, teríamos não de cair no simplismo de imaginar o que ele teria produzido se vivesse por mais umas seis décadas, mas de limitar a obra dos outros à realizada até os seus parcos 24 anos. E constataríamos, muito melancolicamente, que não existiriam gênios como Dante, Camões, Shakespeare, Goethe, Hugo, se também tivessem morrido com essa idade. A centelha do gênio raia cedo, mas precisa de tempo para se espraiar. É uma das razões do fascínio de um poeta como Byron: criar o monumento que é sua obra com apenas 36 anos; Maiakovski, com apenas 37; mesmo Pessoa, com apenas 47.[4]

Aqui, será oportuno fazer uma distinção também entre talento e vocação, que alguns chegam a confundir, mas que se diferenciam e às vezes andam separados. A vocação é uma inclinação para um exercício especial — um “chamado” do psiquismo, como a define a etimologia; o talento é uma capacidade especial para a realização de uma tarefa — no caso da arte, a de expressar idéias/emoções de forma estética. O que possibilita a consumação é a dedicação que ambos exigem — ou se perdem.

O misticismo encara a vocação como um chamado de Deus. Mas, admitindo-se a possibilidade da existência de pessoas com alguma inclinação para o crime, como o sadismo parece demonstrar, fica difícil aceitar que Deus tenha criado um ser para a prática do mal. A psicologia prefere defini-la como o resultado da combinação dos traços genéticos de um espermatozóide e um óvulo, que os transmitem de modo necessário ao ser que geram — e assim temos indivíduos habilitados para uma determinada atividade e não outra, como os cantores e os poetas, por óbvios exemplos. Exatamente o mesmo ocorre com o talento — e assim temos indivíduos com capacidade para realizar certas tarefas em certo nível e outros não, como também o demonstram de modo irrefutável os artistas, os cientistas e os pensadores em geral. Ao lado de outros atributos psíquicos (tais como a inteligência, a memória, a imaginação, o próprio talento, etc.), a sede mental da vocação permanece como um desafio para a ciência. Um dia será tudo desvendado.

Esses dois dons, ambos inatos, oscilam numa gradação que se estende do mínimo ao máximo. A vocação pode ser fraca — quando esse chamado interior não é suficientemente retentor e, mesmo associada ao talento, permite que o indivíduo se desvie para outras práticas, ou por necessidade de empregar o tempo em atividades outras ou por pura negligência; pode ser forte — quando o chamado relega tudo a segundo plano e o indivíduo persiste contra todas as adversidades, como pobreza ou sofrimento, situações negativas e esterilizantes do ponto de vista existencial, mas fecundas e motivadoras do ponto de vista estético. O talento se estende do pequeno ao grande, conforme a capacidade do autor para descobrir/revelar atributos do ser ou para penetrar na essência dos problemas que questiona ou ainda para abranger em amplitude o universo tematizado.

Todos conhecemos alguém que executa muito bem uma arte qualquer, mas não se empenha: tem um grande talento, mas uma vocação fraca — e nenhuma dedicação; ou alguém que se dedica diariamente, mas nada realiza de satisfatório: tem uma vocação forte — mas um talento miúdo; ou ainda alguém que se esforça muito para praticar uma, e não consegue: não tem nenhum dos dois atributos — só dedicação, que sem estes não resolve.

Demonstro esses conceitos com a história (que me foi contada pelo poeta Domingos Carvalho da Silva) de dois jovens que praticavam a poesia nos tempos de universidade. Uns 30 anos depois, se reencontram: um é um renomado e rico advogado; outro, um remediado professor e poeta reconhecido.

— Que prazer em revê-lo, meu amigo! — exclama o advogado. — Tenho acompanhado o seu sucesso na literatura!

Replica o poeta:

— O prazer é meu. Também tenho visto o seu sucesso no Direito, mas lamento que tenha abandonado o verso.

E o outro:

— Infelizmente. Mas as lides jurídicas são muito absorventes: não tenho mais tempo para a poesia.

O poeta conclui:

— É o contrário: a poesia é que não tem mais tempo para você.

Alguns poetas e críticos (e mesmo alguns professores) rejeitam a hierarquização, mas a utilizam com muita freqüência: toda vez que confrontam um poeta com outro, ou na simples predileção por um em lugar de outro — seja numa resenha, num ensaio, numa aula, numa conferência, numa tese de doutorado… Numa mesa de bar, então, quando falam de poetas, não fazem outra coisa: este é um monstro — e o projetam lá para o nível primeiro; aquele é um babaca — e o arremessam lá para o quinto nível. Fenômeno universal, ela se instala entre todos os seres — tanto os da natureza quanto os da cultura, e de modo inevitável, pois que não há dois iguais: ainda que situados num mesmo nível, com obras equivalentes (um Dante e um Milton, para tomar modelos dos mais elevados), sob algum aspecto, atualizando a oscilação horizontal no interior das respectivas faixas hierárquicas, um é superior a outro (Dante é mais “artista”… Milton é mais “crítico”…). E é bem provável que, entre os leitores, algum aí tenha pensado que Milton não está no nível de Dante… Pois (re)leiam suas obras-primas.

Outra prova definitiva dessa hierarquização, às vezes instintiva: praticamente todo poeta — embora jamais o assuma ou proclame, e finja o contrário — tende a se julgar superior pelo menos aos do seu relacionamento, sua geração ou sua época. Pessoa e Maiakovski o demonstraram de forma absoluta — e com plena razão. Mas ninguém precisa ser o melhor, que é sempre relativo: só precisa ser bom, que não é tão relativo assim. Em lugar de comparar-se, basta avaliar-se. Se tiver de comparar-se, que se compare consigo mesmo em épocas passadas.

Sempre que abordo esse tema, evoco um poeta da minha predileção, para mim a quintessência da nossa poesia: Raul de Leoni. É tão bom que nem precisa ser o melhor: será lido sempre, com prazer e proveito, que é o suficiente.[5] Mas quero demonstrar a tese com um fato concreto — outra historinha, que me foi narrada pelo poeta Marcus Accioly. Numa dessas conversas de roda de chope, alguém reduzia um poeta a zero: medíocre, narcisista, carreirista, interesseiro, exibicionista, invejoso, etc. Um outro replica:

Vou discordar num ponto, e com toda franqueza e autenticidade, pois também não gosto dele: ele pode ser tudo isso, mas invejoso não, pois se considera melhor que todos nós.

A hierarquização dos poetas se manifesta e se consolida de modo pleno no conceito de literatura universal: se as histórias nacionais abrigam até o quarto nível, a universal só acolhe os nomes do primeiro e do segundo. Quando se refere a um de terceiro nível, é quase sempre por um fator extra-estético.

3) O FUNDAMENTO DA HIERARQUIZAÇÃO
Essa criteriologia — essa taxonomia — pressupõe que se seja capaz de identificar um poeta genial e um medíocre, o que todo bom leitor é. O fundamento da identificação consiste na dialética quantidade-qualidade e radica no aspecto transitivo da grandeza: muitos textos superiores; ou um monumental. Sua imponência se manifesta através da exploração eficaz dos três atributos intrínsecos da grandeza de qualquer objeto/situação, que lhes definem a magnitude: abrangência (seu raio de alcance e envolvimento), intensidade (sua medida de voltagem e duração), profundidade (seu grau de penetração na essência do ser).

Soares de Passos escreveu um poema de gênio — só um, e curtinho (O firmamento, apenas umas cinco páginas); Júlio Salusse, também (Os cisnes, um soneto); Felix d’Arvers, idem. Pessoa escreveu vários (Ode triunfal, Tabacaria, as Odes de Reis, etc.); Maiakovski, também (Lênin, 150.000.000, A guerra e o mundo, etc.). Homero, só dois, mas são Ilíada e Odisséia: se fossem duas odes ou dois protótipos do soneto… Dante e Milton, quase que só um, mas Divina comédia e Paraíso perdido.[6] Quando lamentamos a morte precoce de um poeta promissor, o motivo mais fundo se reporta justamente à quantidade: pressuposta a qualidade superior, lamenta-se o conjunto de poemas que deixaram de ser criados. Eu penso imediatamente naqueles seis ante-modernos citados no item anterior.

O que constitui a superioridade ou a monumentalidade desses poemas é exatamente o conjunto e a interação de abrangência (o universo tematizado), de intensidade (o nível da emoção com que cativa o leitor) e de profundidade (a visão radical de um drama ou da condição humana) — expressas numa forma poética eficaz, esculpida na linguagem.

Ao falar em forma, penetramos no reduto da qualidade. Se a quantidade é auto-evidente, a qualidade é bem sutil. Apenas vagamente desfrutável numa recepção sensorialista, ela é, no entanto, nitidamente identificável a um olhar crítico. Sua matéria é o conjunto e a interação dos atributos estéticos do texto — essencialmente, a grandeza (sobretudo de substância: idéias, emoções, atitudes); a beleza (sobretudo de expressão: construções, figuras, ritmos); e a novidade (de ambas). Os poetas do primeiro nível são exatamente os que conseguiram conferir forma estética à fusão de beleza, grandeza e novidade. Assim como vida plena é aquela que decorre em constantes novidade (no dia-a-dia), beleza (nas circunstâncias envoltas) e grandeza (de situação), assim também o poema superior é aquele que apresenta esses três preciosos atributos. Dos três, a beleza é o mais sedutor, mas também o mais cambiante; a novidade, o mais universal, mas também o mais efêmero; já a grandeza, além de ser o mais imponente, é o mais constante — e por esta razão é que é por ela que se define a obra-prima do modo mais explícito: uma grande obra. É que o grande se afirma por si mesmo, em seu simples despontar e, com esse trunfo, supera todos os obstáculos ou todos os concorrentes.

É só com esses poetas do primeiro nível que a crítica realmente se empolga: qualquer história da literatura inglesa abre capítulo para falar de Shakespeare; da portuguesa, de Camões e Pessoa; da alemã, de Goethe; da italiana, de Dante; algumas da francesa, de Hugo; da russa, de Maiakovski, etc.; trata bem os do segundo — um Drummond ou um Antero, entre nós; tem um misto de carinho e impaciência com os do terceiro — um Bandeira ou um Vinicius. E uma ostensiva má-vontade com os do quarto: tão vasta quantidade e tão escassa qualidade. Mil longas páginas de umas solenes Poesias completas, das quais se salva uma centena. Pode bastar.

Considerando-se que o segundo nível é altamente honroso e quase que plenamente satisfatório e realizante,[7] o situar-se no terceiro não constitui demérito para nenhum poeta: significa que ele é bom, numa escala que se eleva ao ótimo e ao excelente. A hierarquização é feita pela média do conjunto da produção, o que admite a pulsação de uma ou outra obra-prima. Este fato apenas remete ao pólo da quantidade, por insuficiente, ou seja: a escassez de qualidade. Não é muito curta a lista dos “companheiros” de Félix d’Arvers. Entre nós: Tenreiro Aranha (À mameluca Bárbara), Maciel Monteiro (Formosa), Guimarães Júnior (Visita à casa paterna), Alceu Wamosy (Duas almas), Carlos Pena Filho (Soneto do desmantelo azul), Padre Antônio Tomás (Contrastes)…

A exigência de qualidade-em-quantidade (numa palavra: de grandeza) se manifesta universalmente na sempre sofrida e nem sempre conscientizada necessidade de crescer. Tendência natural dos seres orgânicos, é um desejo também natural dos seres conscientes: cresce ou fracassa — sejam as pessoas, em seu íntimo ou em suas atividades; sejam as empresas, em suas negociações ou em seu capital. As economias nacionais, então… Padecem anualmente no cálculo dos seus PIBs e se apavoram com o montante de suas dívidas. Incrementar suas dimensões para um estágio superior, como um adolescente querendo tornar-se adulto ou um país querendo elevar sua importância. Tudo isso, para subir na escala hierárquica, sonhando secretamente em ascender ao topo das pirâmides. Para o artista, é uma necessidade visceral. Tomemos o modelo da empresa: seu proprietário pode muito bem se conformar e mesmo sentir-se realizado, como um pequeno empresário. Se fatura o suficiente para uma vida sem privações, ao lado de pessoas queridas, poderá sentir-se feliz. Mas, um artista? Como poderá um poeta sentir-se realizado, se é pela crítica e pela história, ou pelos leitores, considerado um poeta pequeno? Ele precisa ver crescer, não sua obra em quantidade de títulos ou em volume, mas sua recepção, sua projeção no cenário nacional e, mais ainda, no internacional — a sua aceitação. Cada degrau ultrapassado repercute exatamente como um crescimento de sua importância. E estamos sempre lamentando: ainda é pouco! E querendo mais. Eterna insatisfação humana — uma das pulsões que nos mantêm, não apenas vivos, mas em ação.

Há espaços onde a quantidade se impõe de modo soberano, com pleno abandono da qualidade. Desgraçadamente, em dois dos mais decisivos do destino dos povos — a economia e a política: num, só conta o montante dos valores; noutro, a maioria de votos. Certas fortunas não podem se orgulhar de sua origem, mas seus donos continuam soltos; em qualquer colegiado de 11 membros, 6 vendidos vencem 5 honrados ou 6 brutamontes vencem 5 sumidades. O fundamento é correto: a equivalência universal dos indivíduos, do voto; mas torna-se um sofisma, pois ignora as diferenças de caráter ou de competência, sobre a ilusão da meritocracia. E vamos votar logo! Isto é: evitar a discussão. A relação se inverte no campo militar: ganha a guerra não quem tem mais, porém “melhores” armas. Na Segunda, bastou uma para silenciar todas as outras. E assim, em todas as relações selvagens, seja um gato perseguindo um rato, seja um “segurança” aproximando-se de alguém: ambos têm mais força.

Essa indissolúvel relação quantidade/qualidade é um dos pilares da Dialética, que encara a qualidade como uma função da quantidade, tanto em relação ao ser humano quanto aos objetos: o melhor é o que apresenta mais e/ou maiores atributos positivos. Foi deturpada pela ideologia burguesa, que só as admite em separado, para preservação de privilégios de classe, na privatização do prazer. Dois casos típicos: a casa, essa tem que ser boa — mas não para todos;[8] o serviço público, esse tem que ser para todos — mas não pode ser bom.[9]

Heptacampeão mundial de futebol! Qual é mesmo o fundamento do conceito do nosso maior orgulho nacional?

As olimpíadas são a mais universal, a copa do mundo é a mais apaixonante, mas o nosso carnaval é a mais bela, a mais grandiosa e a mais “gostosa” festa do mundo!

Notas

[1] Décimo-quarto capítulo do livro Poema e Letra-de-música, a sair em breve pela Editora Topbooks.

[2] Tese exposta no livro A tevê e o fim da era do amor, a sair.

[3] “Política literária”, de Alguma poesia. In: Poesia. Rio, Agir, 1992, p.42. Coleção “Nossos Clássicos”, v.118. Org. do autor, com Fernando Py.

[4] A propósito de idéia de “gênio”, a Revista d’O Globo de 25.6.2006 publicou um interessante levantamento dos “100 brasileiros geniais” vivos, mediante votação de seus profissionais de diversas áreas, e não apenas as especificamente culturais. A editora, Marilia Martins, expõe alguns critérios, mas omite um dado fundamental: o conceito de gênio. Pelos nomes eleitos, da ciência à moda, da arte ao esporte, fica claro que nem sequer se aproxima do que aqui se propõe — aquele que, pela imponência de sua obra, “transcende a História”. Admitindo previamente que a lista “certamente será parcial”, ela como que previne o leitor para presenças como a de uma mulher que se tornou “símbolo na favela” onde vive e o de uma mãe de uma “vítima recente da violência carioca”. São pessoas que, por suas experiências de vida, despertam sentimentos de admiração, solidariedade, reconhecimento — mas gênio é outra coisa.

Ela explicita que a diretriz foi a admiração pelos que “nos deram um sentimento de orgulho por seu engenho e arte” — e, com ironia ou não, informa que “foram excluídos todos os votos a políticos”. No campo da poesia, figuram apenas os nomes de Ferreira Gullar e Augusto de Campos; no da música popular, Roberto Carlos, Paulinho da Viola, DJ Marlboro e outros.

Dos 100 eleitos, o autor só votaria em 4: Oscar Niemayer, Ivo Pitanguy, Chico Buarque e Pelé. A lista reforça a tese que vivemos uma época em que o medíocre adquiriu o direito e as condições de triunfar.

[5] Cf. as edições que preparei para as editoras Topbooks (Luz mediterrânea e outros poemas. Rio, 2000) e Global (Os melhores poemas de Raul de Leoni. São Paulo, 2002).

[6] O mesmo fenômeno, na música popular. Geraldo Vandré compôs uma canção soberba: “Caminhando” – só uma, que pena (ok, tem “Disparada”); Alberto Landi, também (“Helena, Helena, Helena”). Chico compôs muitas, algumas já mencionadas. E que fez Carlos Gomes, além d’O Guarany? Tivesse umas 20 desse nível…

[7] Drummond costumava autografar qualquer exemplar de sua obra completa com uma quadrinha de Viola de bolso. Transcrevo-a do meu:

Minha Obra completa? Falta

uma palavra, nascida

do puro silêncio, alta

expressão de toda a vida.

[8] Como demonstração e sem querer comparar com aquelas “casas populares”: com intenção de protesto e denúncia, circula pela Net um álbum com fotos (que podiam ser de uma mansão de Brasília, mas são) da casa de um sheik árabe. O PPS previne que não se trata de um hotel de 5 estrelas.

[9] Idem: todo ano, com a intenção de mostrar eficiência, o INSS se orgulha de informar que atendeu a milhões de “segurados”. Não informa quantos madrugaram com dor às suas portas para receber uma senha a serem atendidos um mês depois, se não morrerem à espera; nem quantos nonagenários morrem nas filas de recadastramento de aposentados, sob um sol de 40 graus, para mostrar que, contrariando o desejo dos governos, ainda estão vivos.

Pedro Lyra

É poeta.

Rascunho