O deslocamento da Bildung¹

A valorização da literatura e da crítica literária deve levar em conta um novo processo de formação cultural
Ilustração: Robson Vilalba
01/04/2012

Em artigo recente, publicado no suplemento Prosa & Verso[2], procurei questionar os comentários insistentes sobre uma crise “definitiva” tanto da literatura quanto da crítica literária. Naturalmente, não repetirei o raciocínio, mas peço ao leitor que associe os dois textos, pois fazem parte do mesmo esforço de revalorização da crítica literária hoje em dia.

Desta vez, pretendo discutir o deslocamento contemporâneo da Bildung, a fim de compreender a circunstância contemporânea com olhos renovados. Para tanto, recupero a crise de outra forma de crítica; afinal, é sempre reconfortante saber que não se está sozinho em meio ao vendaval…

Problema similar afeta os críticos de cinema em todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos. Ou seja, o universo digital começa a devorar a crítica de cinema publicada em jornais impressos. No instigante documentário de Gerald Peary, For the love of movies[3], a maior parte dos críticos entrevistados é apresentada como “ex-crítico”. Com a proliferação de resenhas e artigos postados na internet, quase todos os jornais norte-americanos começaram a dispensar seus críticos de cinema. Simplesmente eles foram substituídos por breves comentários acerca da estréia de filmes, uma vez que análises mais longas são publicadas em sítios na internet[4].

O diretor do filme, Gerald Peary, desde 1996 é crítico de cinema do Boston Phoenix, ou seja, ainda não se tornou um “ex-crítico”. De qualquer modo, não resistiu à tendência e possui um excelente sítio na internet, no qual, além de grande variedade de informação, disponibiliza suas críticas semanais. E talvez não pudesse ser diferente, já que um dos melhores momentos do documentário é a entrevista com Harry Knowles. Nascido em 1971, ele conseguiu a proeza de ser incluído na lista Forbes das personalidades mais poderosas do ano de 2000. Atualmente, Knowles é um dos mais lidos críticos de cinema de todo o mundo — pelo menos para as audiências mais jovens —, publicando suas resenhas exclusivamente na internet[5]. A estrutura de suas críticas é a mesma de qualquer blog, incluindo os comentários dos leitores, além do estilo coloquial da escrita e do caráter idiossincrático de suas escolhas e avaliações.

Knowles, que já foi parodiado em programas de televisão e virou personagem em filmes recentes, tem gerado muitas controvérsias, que naturalmente escapam ao interesse deste artigo. Mais importante é ressaltar que um círculo se fecha e, por isso mesmo, uma nova modalidade de interação se abre. Como compreendê-la? Ou, nos termos da minha reflexão, como situar a crítica literária nesse contexto?

Sem crise
O ensaio autobiográfico do escritor David Gilmour, The film club, talvez forneça uma pista relevante. A história é banal, embora não seu desfecho. O que fazer quando um filho adolescente odeia a escola, obtém as piores notas possíveis, demonstrando total indiferença em relação ao futuro? Isto é, um futuro que dispensa a “garantia” de um diploma universitário. Gilmour tomou uma decisão improvável, permitindo que seu filho, Jesse, de 15 anos, deixasse a escola, porém sob a condição de assistir, na companhia do pai, a três filmes por semana: “É a única educação que você vai receber”[6]. O que segue é um autêntico e, em alguma medida, anacrônico Bildungsroman, com a diferença decisiva de que o meio da formação não é a literatura, porém o cinema. Assim, acompanhar o relato dos filmes vistos e, sobretudo, as discussões por eles estimuladas, conduz o leitor a um universo que, no passado, estaria reservado à assim chamada alta cultura e, em sentido mais estrito, à literatura, concebida como autêntico arquivo do propriamente humano. Contudo, o livro de Gilmour exige um novo olhar. Até mesmo porque, como todo leitor dos clássicos romances de formação já antecipa desde o princípio da narrativa, o resultado da educação sentimental e cinematográfica de Jesse é o retorno voluntário do jovem rebelde aos estudos.

Ora, um ano antes da publicação de The film club, a poeta e romancista Lavinia Greenlaw publicou um livro de memórias, The importance of music to girls. A estrutura dos dois livros é similar, embora Greenlaw escreva sobre a importância da música em sua formação cultural: dos clássicos às bandas populares contemporâneas. Aos 14 anos, a autora recorda: “Eu já levava música a sério. Em outras palavras, não precisava pensar sobre se ouviria ou não música: já fazia parte da engrenagem cotidiana”[7]. O que não quer dizer que a leitura fosse um hábito alheio ou mesmo raro; afinal, Greenlaw e Gilmour tornaram-se escritores! Por isso, outra vez, o leitor dos clássicos do gênero Bildungsroman antecipa o desfecho das memórias: uma semana após o nascimento de sua filha, o final do livro sugere a transmissão de valores característica dos romances de formação: “Cantaríamos para fazê-la dormir”.

Como se percebe facilmente, não se trata apenas de “crise” da literatura ou da crítica; afinal, refiro-me a dois livros, de dois escritores e poetas, que recorrem ao modelo consagrado da Bildung para dar conta criticamente de suas respectivas experiências. A questão, portanto, é outra; ou no mínimo é mais complexa. Ela foi discutida por Néstor García Canclini em seu livro Lectores, espectadores e internautas, cujo título resume com agudeza o principal argumento: “También se aprende a leer y a ser espectador siendo televidente e internauta”[8]. Isto é, hoje em dia, somos todos (ou quase todos), desejemos ou não, leitores, espectadores e internautas. E tudo isso, assim, ao mesmo tempo; logo, qualquer “defesa” contemporânea da literatura, ou da crítica literária, deve considerar esse fator, sem julgá-lo a priori como negativo. Caso contrário, condenamos à reflexão a dois pólos incomunicáveis. De um lado, o lamento conservador, que apenas reitera nostalgias e alimenta ressentimentos. De outro, o desejo deslumbrado dos funcionários do contemporâneo, sempre ávidos por parecer antenados e sempre dispostos a escrever apressados obituários. E aqui, ao contrário do romance de Manuel Antônio de Almeida, os extremos nunca se tocam…

Duplo deslocamento
Retorno, pois, à questão da Bildung. Naturalmente, não discutirei em detalhes o conceito, mas preciso esclarecê-lo, ainda que brevemente, para que o leitor acompanhe meu raciocínio.

Em sentido amplo, porém estático, Bildung pode ser sinônimo de cultura, ou seja, cultura adquirida. Em sentido dinâmico, implica um processo de formação cultural, cujo resultado mais importante é o aprender a formar-se: em alemão, “sich bilden”, literalmente, “construir-se”. A formação cultural é um processo simbólico que se impôs especialmente a partir da segunda metade do século 18, constituindo a imagem ideal do homem cultivado.

A palavra Bildung e seus cognatos apresentam um campo semântico muito rico, com matizes reveladores: bilden, acumular, compor, construir, formar; Bild, imagem; Ausbildung, desenvolvimento, educação, aprendizado; Einbildungskraft, imaginação; Bildsamkeit, flexibilidade, plasticidade; Vorbild, modelo; Nachbild, cópia; Urbild, modelo originário. À pluralidade dos sentidos, corresponde a complexidade do conceito. Portanto, Bildung não implica a busca de um resultado final, porque nunca se esgota o caminho a ser percorrido. Trata-se de projeto, não de meta determinada. Em teoria, a Bildung nunca se completa: é uma opção existencial e não um “diploma” que se obtém no término de um curso.

Ora, provavelmente o leitor já sabe aonde quero chegar. Os livros de David Gilmour e Lavinia Greenlaw sugerem um duplo deslocamento, definidor da cultura contemporânea, ou seja, a cultura definida pela onipresença dos meios de comunicação audiovisuais e digitais. Identificar o sentido desse duplo deslocamento é fundamental para valorizar a literatura hoje e, ao mesmo tempo, reinventar a crítica literária. Reconheço que a hipótese parece pouco razoável, mas desejo propô-la assim mesmo.

Avanço, pois, passo a passo.

Leitura renovada
De um lado, e sem dúvida, o texto impresso e a concepção moderna de literatura foram deslocados do centro da vida cultural. Na imprensa, o fenômeno da desliteraturização (estudado por Silviano Santiago) agravou-se a partir de 1945, e, na ordem do cotidiano, atingiu seu ponto culminante com a onipresença da internet e o caráter panóptico das redes sociais.

De outro lado, a residência da Bildung também se deslocou. Esse ponto é de grande importância e precisa ser bem compreendido. Em outras palavras, nos séculos 18 e 19 o processo de formação cultural necessariamente passava pelo texto impresso; hoje em dia, o veículo da Bildung encontra-se disperso em meios os mais variados: literatura, música, cinema, dança, fotografia, televisão, vídeo, internet. Já não é mais possível identificar a formação cultural com um repertório exclusivo (e excludente) ou com um horizonte de expectativas que nunca se altera. Tal traço desautoriza posições normativas e exige a formulação de novos pressupostos para uma crítica literária capaz de lidar com as circunstâncias contemporâneas, o que implica um diálogo indispensável com novos meios, mas sempre a partir da especificidade da literatura; especificidade essa de inspiração antropológica.

Portanto, para que não se pense que advogo o eterno retorno da literariedade — razão principal do impasse da disciplina Teoria da Literatura —, apresento a hipótese com a qual concluo este artigo. Posso formulá-la economicamente mediante uma analogia com célebre afirmação de Saussure: se a Lingüística, objeto inicial de suas preocupações, constituía parte de uma ciência mais abrangente, a Semiologia, talvez se possa propor que a Literatura, objeto inicial dos estudos literários, constitua parte de um fenômeno mais abrangente, no caso, a Narrativa. De imediato, esclareço que essa possibilidade nada tem a ver com um inesperado resgate dos estudos narratológicos em chave estruturalista; afinal, como Drummond já nos advertiu em “Exorcismo”, sátira impiedosa de certa concepção autocentrada de teoria: “Das relações entre topos e macrotopos/ Do elemento suprassegmental/ Libera nos, Domine”. Como sempre, vale a pena escutar os poetas.

Refiro-me, isso sim, a uma concepção antropológica do ato de narrar. Creio que aí se encontra um possível futuro dos estudos literários, em sentido amplo, e da crítica literária, em sentido restrito.

Num de seus contos, La busca de Averroes, Jorge Luis Borges já havia imaginado tal perspectiva. O escritor argentino imagina a faina assumida por Averróis em sua tarefa de traduzir os vestígios da filosofia grega. Como era “ignorante del siríaco y del griego, trabajaba sobre la traducción de una traducción”[9], e, mesmo assim, como se sabe, seus comentários sobre as obras de Aristóteles foram fundamentais para os escolásticos. Entretanto, o Averróis borgiano enfrentou um impasse em aparência definitivo: como traduzir para o árabe as palavras tragédia e comédia? Ao fim e ao cabo, “nadie, en el ámbito del Islam, barruntaba lo que querían decir”. Compreenda-se a dificuldade: dado o interdito à representação da figura humana, o teatro, tal como desenvolvido na experiência da Grécia clássica, não se encontrava enraizado nas tradições muçulmanas. Por isso, os conceitos que designavam gêneros específicos naturalmente escapavam ao tradutor. Era como se fossem palavras ocas, sombras de coisa alguma. Entretanto, a possível solução do enigma chegou aos ouvidos do sábio:

[…] De esa estudiosa distracción lo distrajo una suerte de melodía. Miró por el balcón enrejado; abajo, en el estrecho patio de tierra, jugaban unos chicos semidesnudos. Uno, de pie en los hombros de otro, hacía de almuédano; bien cerrado los ojos, salmodiaba No hay otro dios que el Dios. El que lo sostenía, inmóvil, hacía de alminar; otro abyecto en el polvo y arrodillado, de congregación de los fieles. El juego duró poco: todos querían ser el almuédano, nadie la congregación o la torre.

Será preciso acrescentar que os meninos com pouca roupa estavam literalmente mais próximos da verdade do que o erudito Averróis? Nessa passagem notável, Borges parece diferenciar teatro de teatralidade, por assim dizer. A atividade institucionalizada, que supõe o espaço rigidamente demarcado entre atores e espectadores, torna-se secundária em relação à encenação constante de códigos sociais, reproduzidos automaticamente no interior das breves narrativas diárias que constituem o cotidiano. Na compreensão borgiana, portanto, o ato de encenar narrativas surge como o gesto definidor do propriamente humano. Tal concepção antropológica do ato de narrar contribui para uma leitura renovada das possibilidades atuais da crítica literária.

Investir na diferença
É verdade, porém, que efetivamente uma concepção específica de literatura está em crise — e talvez num beco sem saída. Para dizê-lo sem diplomacia: trata-se de concepção acadêmica, demasiadamente acadêmica, que terminou por produzir uma noção hipertrofiada de teoria, na qual o texto sempre importou muito menos do que o emaranhado conceitual de formulações abstratas e dogmáticas.

Por isso, a compreensão antropológica do ato de narrar ajuda a esclarecer que meios de comunicação diversos não são excludentes, pois todos eles tendem a lidar com a mesma necessidade humana de tornar os eventos significativos através de sua organização numa moldura narrativa. Além disso, meios diversos lidam com essa necessidade de formas igualmente diversas, uma vez que a densidade na transmissão de afetos, dados e conceitos nunca se repete. E nem mesmo se pensarmos em um único meio, pois a densidade da mensagem também depende da forma da recepção. Daí, a idéia de que a introdução de um novo meio conduz ao desaparecimento inexorável de outros mais antigos é tanto falsa quanto ingênua.

Falsa: historicamente se verifica, muito pelo contrário, a superposição, geralmente criativa, de meios de comunicação diferentes. Por muitos séculos, o corpo foi o meio principal de comunicação; a cultura do manuscrito manteve o corpo presente no hábito de vocalizar toda forma de escrita; a tecnologia dos tipos móveis conviveu por um tempo considerável com a cultura do manuscrito e o sistema de pontuação, autêntico simulacro de uma respiração silenciosa, introduziu a imagem possível do corpo no impresso; o livro convive há dois séculos com tecnologias distintas e inclusive adversárias; o audiovisual interage com o universo digital, que, por sua vez, reúne elementos de todos os meios de comunicação anteriores.

Ingênua: parte-se do princípio, equivocado, de que todos os meios transmitem mensagens com a mesma densidade, produzindo efeitos idênticos. Somente se fosse assim, a novidade de determinado meio condenaria os demais à obsolescência. No entanto, precisamente porque a densidade muda segundo o meio empregado e mesmo de acordo com o repertório do receptor, não se pode afirmar, do ponto de vista teórico e empírico, que a literatura e a crítica literária vivem uma crise “definitiva” devido à hegemonia atual dos meios audiovisuais e digitais. Ora, a diferença de densidade da experiência literária torna-se mais clara precisamente pelo contraste fornecido com os meios audiovisuais e digitais. Eis o sentido de minha hipótese pouco “razoável”: na circunstância atual, a literatura pode conhecer uma relevância inédita, exatamente porque deixou de ocupar o centro da transmissão dos valores culturais.

Além disso, nada impede que efeitos inesperados ocorram num futuro muito próximo. Por exemplo, por que não imaginar que determinados setores da imprensa escrita podem ser levados a valorizar textos analíticos aprofundados, a fim de diferenciar-se dos meios audiovisuais e digitais? Como competir com as “notícias do último minuto” a não ser oferecendo um conteúdo que demande uma fatia maior de tempo para sua assimilação? Radicalizo a possibilidade: não é verdade que inúmeros sítios da internet já tornaram essa hipótese uma realidade?

Em outras palavras, a compreensão antropológica da literatura estimula uma forma nova de entender sua especificidade, precisamente em virtude (e não apesar) do atual domínio dos meios audiovisuais e digitais. É hora de investir na densidade potencial do ato de leitura de textos literários como exercício de uma diferença, em lugar de insistir numa oposição simples, binária, em relação a outros meios. A diferença que a literatura propicia: deslocamento antropológico radical. E, sem que o leitor necessariamente se dê conta, aprende a ser outros que não ele mesmo.

Pelo avesso, portanto, a propalada crise abre novas perspectivas para todo crítico que tenha aprendido os ossos do ofício: o que de fato conta é o corpo a corpo com o texto. Salvo engano, portanto, vivemos uma época potencialmente privilegiada para um entendimento renovado da força do texto literário.

E basta de preliminares.

Nos próximos artigos sobre literatura brasileira contemporânea, tratarei da obra concreta dos autores das gerações mais jovens.

Afinal, todo crítico deve submeter-se à prova dos nove de sua atividade: o corpo a corpo com o texto.

NOTAS
1. Neste artigo, aproveito formulações de meu último livro, Crítica literária: em busca do tempo perdido?. Chapecó: Argos, 2011.
2. “Desdramatizando a crise da crítica”. Prosa & Verso, 11 de fevereiro de 2012, p. 4.
3. Gerald Peary, For the love of movies, the story of American film criticism(2009).
4. Ver: http://geraldpeary.com/index.html.
5. Ver seu sítio: http://www.aintitcool.com/.
6. David Gilmour. The Film Club. New York & Boston: Twelve, 2009, p. 9. A primeira edição é de 2008.
7. Lavinia Greenlaw. The Importance of Music to Girls. New York: Picador, 2009, p. 111. A primeira edição é de 2007.
8. Néstor García Canclini. Lectores, espectadores e internautas. Barcelona: Editorial Gedisa, 2007, p. 35.
9. Jorge Luis Borges. Obras completas. Vol. I. Buenos Aires: Emecé, 1989, p. 582-83.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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