O desejo reacionário: algumas conseqüências

Ao injetar ironia e desmascaramento de uma realidade nociva, Carlos Trigueiro lança seu olhar meticuloso à nossa história recente
Carlos Trigueiro, autor de “Libido aos pedaços”
01/10/2004

O livro dos desmandamentos é um romance político, segundo advertência do autor. Se eu entendi bem, então para o romance ser político, é preciso que o autor lhe outorgue o rótulo e os que não trazem seus componentes descriminados podem ser tudo, menos políticos. Sei não. Mas também sei. Não gostei, gracinha desnecessária de autor e editora. Ainda no departamento dos equívocos, convém incluir a capa de péssimo gosto, confusa, beirando o amadorismo. Inadmissível numa editora de grande porte. As besteirinhas, no entanto, não conseguem empanar, sequer um pouquinho, o brilho e significado da obra. O livro dos desmandamentos é, na verdade, um oportuno e inteligente romance alegórico, tão político quanto inúmeros outros que o são sem o devido anúncio. Cabe enfatizar que bem mais importante que se intitular isso ou aquilo é ter qualidades que conduzam o leitor à observação de um novo aspecto sob a superfície do texto. E isso o autor consegue embora reste a suspeita de que devido à advertência na abertura do livro, Carlos Trigueiro tenha a intenção de direcionar o olhar do leitor. Não é nada cansativo voltar a Nietzsche: “a verdade não existe, também não há fatos, somente interpretações que virão a ser mais ou menos poderosas”. Então, é recomendável ao leitor esquecer a nefasta admoestação inaugural e extrair suas próprias conclusões de O livro dos desmandamentos. Do contrário, chegará ao ponto final exausto de tanto testemunhar metáfora empurrando metáfora.

Vivemos tempos dos mais óbvios e estarrecedores, um povo enganado que se permitiu ser enganado e atualmente presta tributo aos enganadores. As aberrações políticas são encaradas como excentricidades, a opressão é vista como cuidado com os cofres públicos e o descaso com o povo é só mais um sintoma a acusar que, para disfarçar, os males neoliberais embaçaram um país com placebo. Se no passado vestimos a dita esquerda com os trajes da esperança, hoje em dia só nos resta a notícia de que a verdadeira esquerda foi avistada em lugar distante daqui, solitária sob as vestes da simplicidade, triste, mas ainda disposta, rumo a outro hemisfério. Diante da falta de uma esquerda responsável, nos habituamos a entregar o país a canalhas, do mais tenebroso rincão ao Alvorada, campeia a corrupção e a vulgaridade. E se olharmos para trás, nossa história não permite imaginar um futuro muito diferente, nossa realidade patética não está tão distante da ficção.

Uma das personagens deste O livro dos desmandamentos é o diabólico Coronel Justo Sacrossanto, um representante das oligarquias nordestinas, proprietário de terras e influente na política local. Apresenta um defeito congênito, tem dois braços direito. É exatamente o coronel Justo que abrirá as portas da fantasia para a entrada da realidade sem que seja necessário desrespeitar a fronteira que a isola da ficção. Uma figura desse quilate e sem braço esquerdo, atento leitor, não permite uma relação óbvia? Alguém aí lembrou da súcia que nos desgoverna? Desculpe… foi sem querer. Ao combinar ironia com o desmascaramento de uma realidade nociva, Carlos Trigueiro lançou seu olhar meticuloso à nossa história recente, e os fatos podem ser conferidos sem a necessidade de uma viagem ao passado exclusivo dos livros e bancos escolares. Trata da história que sobrevive, da história sem ponto final. A trama de Desmandamentos está situada num esquecido arraial nordestino livre de autoridades, sem escolas, sem bancos, onde dinheiro vivo é coisa de ouvir falar e os serviços sexuais fazem as vezes de moeda corrente. O leitor, porém, poderá comprovar que canalhice que se preza não escolhe cenário e a semelhança de personagens com pessoas reais não é mera coincidência. Os momentos de insuspeito realismo mágico na narrativa de Carlos Trigueiro não são gratuitos, tampouco deslocados da realidade retratada e se em alguns momentos nem chamam a atenção, a culpa não é do autor, que foi preciso, mas de uma realidade onde a corrupção se perpetua.

Todos os Santos Silvério (assim foi batizado o 21º filho de José e Maria), olhos abertos, permitiu notar que um era verde e o outro azul. Não precisou muito para ser chamado de Santinho. A crendice local logo o colocou no panteão dos milagreiros e o milagre inaugural de Todos os Santos aconteceu quando desenhou sorrisos nos rostos paralisados dos habitantes de Quebra-Vento. Mas Santinho não era “só” milagreiro não, em 1964 do alto dos seus sete anos já havia decorado todos os versículos da Bíblia em inglês e português, previu a instalação da ditadura militar e o caos político/social que resultaria desse estado de coisas. E como tudo que é diferente logo desperta ciúme, e a fama de Santinho corria rápido, inevitavelmente os jornais o alcançaram e a seguir a notícia deu com os costados nos temíveis braços direitos de Justo Sacrossanto, que logo imaginou que as nada convencionais faculdades de Santinho poderiam lhe trazer problemas. Ordenou que o seu mais fiel capanga, justamente um dos irmãos gêmeos de Santinho, cortasse a língua do garoto milagreiro.

Língua cortada, Santinho permaneceu mudo durante 21 anos, mas avisou:

“Na virada do século XXI terminará o feitiço das 346 caveiras de burro enterradas pelos índios janduís em 1654, a mando dos invasores holandeses! Também vejo que nenhum presidente do período autoritário assistirá à virada do milênio. Ficarei mudo durante a ditadura militar, até 1985. Ao completar vinte e oito anos, voltarei a falar, e minha rabeca soará de novo, mesmo sem as cordas que a ditadura vai arrancar”.

Santinho foi ainda mais longe e , como de costume, acertou na mosca ao responder a um correspondente francês:

Correspondente francês: “Sendo vidente, o senhor não vê chance de as esquerdas chegarem ao Poder no século XXI?”.

Respondeu Santinho: “Pode parecer incrível, haverá chance sim, mas as esquerdas terão que se endireitar e, uma vez no Poder, vão tratar de se conservar: quem viver, verá”.

Diante de uma narrativa impregnada de grotesca melancolia (a culpa não é do autor e sim da realidade que invade a ficção), o leitor apressado pode correr o risco de acreditar estar lendo um jornal. A diferença é que as sensações permanecem além do tempo da leitura.

O livro dos desmandamentos tem no seu maior mérito também seu único e grande problema, a precisão com que descreve um país de cócoras, um povo anestesiado (a televisão determina a aparência, a indumentária, o cardápio, o vocabulário, o desejo…) e a aproximação da ficção com essa triste realidade me faz voltar a Nietszche que alertava para o perigo de não levar a sério as coisas reais e de como se formam as personalidades fracas.

O livro dos desmandamentos
Carlos Trigueiro
Bertrand Brasil
176 páginas
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho