O desconforto da família

“Seu azul”, de Gustavo Piqueira, narra a história de um casal que não se sente mais confortável com a relação após dez anos
Gustavo Piqueira, autor de “Seu azul”
01/03/2014

A primeira visão de uma cópia física de Seu azul é algo um tanto curioso: com a capa coberta de areia e maior que o caderno do miolo, ele é provavelmente bem diferente de tudo que está na sua estante. A opção gráfica não é gratuita: de autoria de Gustavo Piqueira, a capa transmite uma sensação de desconforto para o leitor, sentimento partilhado com os personagens.

A obra narra a história da consultora de marketing infantil Giuliana e do engenheiro civil Luiz Fernando, casal que não se sente mais confortável com a relação após dez anos. Em busca de uma solução, buscam a orientação de um psicólogo. A sugestão do profissional é relativamente simples: eles precisam voltar a compartilhar uma intimidade mais romântica. Para isso, deveriam parar de apenas resolver problemas e questões práticas da vida juntos (“Os poucos momentos a dois eram integralmente dedicados à resolução de problemas”, nos conta o psicólogo narrador em primeira pessoa), mas desenvolver outros assuntos e voltar a partilhar sonhos.

De tão engessados que estão, não sabem nem por onde começar e têm dificuldades para imaginar como seriam essas interações. Ainda na seção de terapia, pedem ajuda do psicólogo para fazer isso e, num momento próximo ao constrangedor, chegam a um modelo — cada dia um deles deve escolher a manchete de uma notícia de um grande portal para os dois discutirem durante o jantar, momento do dia em que devem exclusivamente conversar sobre temas interessantes e que não sejam resoluções de problemas do dia-a-dia. Para não incomodar o tratamento dos pais, o filho de sete anos, Allyson, deve, durante a refeição, ficar desenhando (ainda uma sugestão do psicólogo).

Depois de uma primeira (e curta) parte do livro, em que o terapeuta conta a consulta do casal em primeira pessoa, a obra se desenvolve sempre com a mesma seqüência: uma manchete de notícia, o diálogo do casal sobre aquele tema e um desenho do filho.

As manchetes
Algo bastante surpreendente do livro é que todas as manchetes usadas pelos personagens para criar assunto foram de fato retiradas de grandes portais de notícias do Brasil. São temas como “Gata do papa está entre bichos da semana” ou “Noiva escolhe Fusca azul com teto solar para chegada a casamento na praia”.

As escolhas dos títulos ajudam a obra a ter um tom cômico — e levemente absurdo, que de certa forma permanece nos diálogos. No caso da manchete sobre a gata do papa: “Mas, por ser a gata do papa, é provável que ela possua algum dom especial” ou “Talvez um comitê de especialistas em bichos se reúna, toda semana, para eleger os bichos de maior destaque pelo mundo”.

Os diálogos
Os diálogos constituem a maior parte do livro, e a mais relevante para a narrativa principal da obra. Muitas vezes, as reações dos personagens beiram o cômico — tanto pelos assuntos das manchetes como pela maneira com que conduzem a conversa sobre esses temas.

A diferenciação gráfica está também presente nessa parte: para deixar o texto fluído e sem outros textos que não o diálogo, as falas de Luiz Fernando estão em negrito enquanto as de Giuliana, normais. Outas saídas gráficas são usadas para representar características da fala: quando Luiz aparece bêbado, as letras parecem meio empilhadas, como se pronunciadas sem clareza. Quando os dois brigam e conversam ao mesmo tempo, as falas estão sobrepostas.

O livro é basicamente composto de diálogos e é por meio deles que se constroem os personagens, o contexto em que estão e de suas histórias. O leitor não dispõe de um narrador para contar parte da história, e deve se ater e confiar no que os personagens dizem. Nesse sentido, por vezes os diálogos parecem superficiais, como se faltasse algum tempo de amadurecimento do texto do autor — algumas falas parecem forçadas, não verossímeis ou simples demais na boca de determinado personagem.

Na maior parte, o livro puxa para um lado mais cômico, de situações absurdas que acontecem e, principalmente, a proporção das reações que causam — em poucas linhas, o balbuciar de um bêbado se torna uma suspeita de traição e o que era para ser um momento de conversa do casal se torna um escândalo no prédio.

Dentre os diálogos, percebe-se que o casal se afastou muito um do outro, tanto que não se sentem mais atraídos de nenhuma maneira. Parecem estar sempre desconfiados um do outro e fechados para ouvir o que têm a dizer. Criam imagens um do outro que são de certa forma acusativas. O tom das falas é em geral tenso, com muitas ofensas e palavrões e pouco afeto. Apesar de não ser dito explicitamente para o leitor, fica nas entrelinhas que não existem demonstrações físicas de afeto entre eles.

Os desenhos
Apesar de aparecer de maneira breve, a construção do personagem do filho é bastante interessante e bem-feita. A criança quase não fala no livro (com exceção de algumas partes finais). O que aparece de si são os desenhos que cria durante o jantar dos pais — representações gráficas dos diálogos que chegam a ser perturbadoras.

No começo do livro, quando questionado sobre o que deveriam fazer com o filho quando estivessem jantando, o terapeuta sugere que Allyson crie desenhos que representem o jantar, ao invés de jogar o jogo eletrônico Death Warriars, como era comum nesse horário.

O título do livro, Seu azul, vem justamente disso — com os pais preocupados com o filho dar sua real identidade em um jogo, pediram que ele criasse um pseudônimo. A criança na realidade queria escrever “céu azul”, mas um erro de grafia fez com que criasse outro nome.

A relação disso na história é que, em seus desenhos, acaba assumindo tanto o personagem “seu azul” — um quadrado dessa cor com características humanóides — recriando cenas de violência relacionadas com as conversas dos pais. E essas representações mostram que o filho na realidade está prestando atenção e absorvendo tudo aquilo que acontece entre os pais. Os desenhos trazem uma carga simbólica grande — de certa maneira, é como se ele tivesse digerido sua realidade e representado da sua própria maneira.

A proposta do livro é criar diferentes visões de realidades por meio de linguagens específicas — enquanto a linguagem do casal é o diálogo, a do filho é o desenho. De certa forma, o autor opta por usar aquilo que é mais característico e representativo de cada personagem. É interessante também como o autor consegue criar a história do final sem sair da estrutura base, conseguindo construir cenários diferentes sem mudar a estrutura narrativa proposta. Apesar de funcionarem soltas, juntas as partes são um retrato de uma família em tempos loucos e de como essa rotina pode afastar os integrantes de uma maneira quase brutal.

Seu azul
Gustavo Piqueira
Lote 42
208 págs.
Gustavo Piqueira
Formou-se na faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, mas atua como designer gráfico, ilustrador, criador de tipografias e escritor. Em 1997 fundou o estúdio Casa Rex, com sedes em São Paulo e Londres. O primeiro livro de Piqueira foi publicado em 2004. Hoje, soma 14 obras publicadas entre narrativas, livros infanto-juvenis, obras sobre design e releituras de clássicos.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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