O desamor incondicional

“Caim — sagrados laços frouxos”, de Márcia Denser, explora os subterrâneos das relações familiares
Márcia Denser, autora de “Toda prosa II”
01/10/2006

Muito se tem discutido sobre o realismo. O clássico realismo que sucede as escolas românticas, algo que se fez inicialmente lá pelos tempos de Balzac, Eça e Machado de Assis. As classificações em escolas não são muito precisas nem muito confiáveis. Flaubert, por exemplo, tem muitos dos elementos que viriam desaguar na prosa de Proust e, depois, no século 20, em Joyce e Woolf, Faulkner e Clarice Lispector.

O realismo, longe de ter acabado, continua vivíssimo. Um romance recente, Equador, do escritor português Miguel Souza Tavares, por exemplo, sucesso no Brasil e em Portugal (e nos países em que foi traduzido), tem uma estrutura de linearidade e temporalidade que remete aos clássicos novecentistas.

Após muitos experimentarem, quebrou-se a perspectiva, na pintura, no teatro, nas letras. Os estudiosos tentam olhar para o que se faz na prosa de hoje, ponderando a força da originalidade em subverter a linha do tempo, o encadeamento organizado de acontecimentos nos textos. Muitos desprezam o esquema realista, tecendo elogios rasgados aos engenhosos trabalhos que, mesmo driblando a forma convencional, conseguem prender a atenção do leitor e contar suas histórias.

Em seu romance mais recente, Caim — sagrados laços frouxos, Márcia Denser compõe um mosaico de falas e impressões, cujo resultado remonta à história de várias gerações de uma família em que os laços que os unem são sempre deficitários. As pessoas antes de receberem a carga genética de pais e avós sobrevivem a elas. Estão vivos apesar dos descuidos e ódios.

E, pelo choque dos embates, o que sobra são mesmo fragmentos. Não fica nada por inteiro, nem relatos, nem sentimentos. O livro todo pode ser entendido como um ensaio sobre a culpa, a culpa que se transmite, como um sinal, como na lenda mosaica dos filhos de Adão, em que o primogênito nasce com uma marca. E as marcas vão se perpetuando, até que não se saiba mais muito bem o que é estigma e o que é da própria personalidade perversa ou conformada de cada um.

O livro fala dos humores enegrecidos nas famílias de pessoas comuns. Não há nobreza na dor, ela se espraia por todo lado. Num determinado momento, surge o seguinte trecho: “No prefácio de O Idiota, Dostoievski pergunta o que faz um autor com as pessoas vulgares, absolutamente vulgares? Como colocá-las perante seus leitores e como torná-las interessantes? Diz Júlia observando a irmã: é impossível deixá-las fora da ficção, pois as pessoas vulgares são a chave e o ponto essencial na corrente dos assuntos humanos; se as suprimimos, perdemos toda probabilidade de verossimilhança!”

Do avesso, as tramas se alinhavam na ausência de sentimento. Às vezes, o que é pior, num sentimento que dinamita o convívio, numa somatória de desgostos e inconformidade, numa série de dilemas que se resolvem muitas vezes da maneira mais canhestra. Em outro instante da narrativa, nota-se mais um deste não-instante afetivo: “Assim, uma aliança mais poderosa os unia: a cada um competia resguardar não a honra ou o amor ou a respeitabilidade, que isto lhes importava um corno, mas a individualidade do outro. Embora se comportassem como inimigos declarados, no fundo amavam-se incondicionalmente e sem ilusões, como se o amor tivesse um nome secreto, conhecido unicamente por quem permanece fiel a si próprio”.

Mantendo a fidelidade a um fluxo narrativo vertiginoso, Márcia Denser apresenta, em certa medida, um trabalho vigoroso e ousado, considerando que descreve tudo que uma família não deve ser, ou não deveria, pelo que se espera dos ninhos aconchegantes que deveriam ser os lares. Como nem tudo é o que parece, Denser nos traz um trabalho difícil, em alguns momentos, de ser lido, porém uma obra de grande força criadora e inventiva, explorando meandros do cotidiano que por vezes constam apenas das histórias mais secretas, ocultas na genealogia e no código hereditário das mais respeitáveis famílias.

Caim
Sagrados laços frouxos
Márcia Denser
Record
141 págs.
Moacyr Godoy Moreira

É escritor. Autor de Lâmina do tempo e República das bicicletas.

Rascunho