Em seu primeiro livro, Soledades, o espanhol Antonio Machado prima por afastar-se de qualquer referência local; quando publica Campos de Castela, obra que já o situa na chamada Geração de 1898, dá-se o encontro do poeta com os signos de sua juventude, em especial a região de Sória, onde lecionou, conheceu a esposa Leonor e dela enviuvou. Esse é o livro que agora temos em português, na tradução de Sérgio Marinho: obra de 1912, Machado tinha diante de si uma Espanha abalada com a perda de suas últimas possessões coloniais (o nome da Geração se refere à perda de Cuba). O Modernismo espanhol, de que vinha o poeta, fora na verdade o Simbolismo de invenção que o Brasil mal conheceu e, duas décadas antes de nossa Semana de 1922, Machado já fazia a curva da redescoberta nacional: “nesses campos da terra que é minha/ e estranho aos campos de minha terra”.
Só a peculiaridade desse olhar já faz de Campos de Castela um livro indispensável. Mesmo um Manuel Bandeira, de quem poderíamos aproximar o espanhol — pela circunstância de ter sido o mais velho entre jovens e pela formação parnaso-simbolista —, pois mesmo Bandeira não escapa à nossa tradição nostálgica, que muitas vezes soa como uma má consciência do imigrante na grande cidade. Sua bela Evocação do Recife, em verso livre, justapõe o culto do popular e do regional (“o vendedor de roletes de cana”, “o de amendoim”) à divisa da “língua brasileira” modernista (“ao passo que nós/ o que fazemos/ é macaquear/ a sintaxe lusíada”). Tudo bem diferente de Antonio Machado, quando se apropria da forma cigana da Saeta: “Oh, cantar da terra minha,/ que lança flores/ a Jesus nas agonias,/ e é a fé dos meus maiores!/ Só não és o meu cantar!/ Não posso cantar, nem quero,/ a esse Jesus do madeiro,/ mas ao que andou sobre o mar”.
Outro ponto ainda o afastaria de Bandeira, agora formal: foi esquivo ao verso livre. Já não era uma novidade na Europa, e os espanhóis de 1898, Antonio Machado entre eles, estavam mais interessados em retomar suas formas tradicionais metrificadas, como na Saeta, ou outras que vinham da oralidade medieval, a exemplo dos romanceiros, escritos em redondilhas:
Caminhante, são teus passos
o caminho, e nada mais;
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se caminho,
e ao virar-se para trás
vê-se a estrada que nunca
se há de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente esteiras no mar.
O tamanho do problema
Esse famoso poema é um dos exemplos com que José Paulo Paes defende a tradução literária da língua espanhola para o português, “a despeito das afinidades linguísticas” entre os dois idiomas. No clássico Tradução: a ponte necessária, Paes cita a versão de Wilton J. Marques, que teria tornado versos de oito sílabas o original de sete, a fim de não perder material semântico: “uma pequena ‘traição’ ao significante foi compensada”, diz Paes, “com maior fidelidade ao significado”. O poeta Marco Catalão discorda: em dissertação de 2002 sobre Antonio Machado (até bem pouco, o único trabalho de fôlego sobre o espanhol), fala em “ritmo frouxo, em que se alternam indiscriminadamente versos de sete e oito sílabas”. E apresenta sua tradução com ritmos e rimas paralelos ao original. Já por esse breve histórico de um só poema de nove versos podemos ver o tamanho do problema que o novo tradutor, Sérgio Marinho, tomou para si.
Sem comparar traduções, a escolha de Marinho ao traduzir por “esteiras” as estelas do original parece particularmente apropriada — assim fala do rastro de espuma que se abre logo em seguida a uma quilha, por exemplo. Soa consentâneo com a poética do autor, para quem a imagem do Cristo sobre as águas era fundamental, como vimos na Saeta. Porque Dom Machado, como é referido mesmo em crítica literária, foi esse ateu que, falando sozinho, esperava falar a Deus um dia (versos do poema Retrato, primeiro do livro). Sua poesia tem aquilo a que o filósofo Vilém Flusser chama de religiosidade: a capacidade de captar a dimensão sacra do mundo.
O tradutor também toma o melhor partido quando não procura “aclimatar” elementos regionais, esse mundo “sacro” de Machado. Por exemplo, ao manter como “ginja” certa cereja típica em A terra de Alvargonzales, poema no qual se conta a história de dois irmãos que matam o pai por cobiça, trazendo para os campos de Sória a praga que os arrasta à pobreza. Pelo motivo da inveja, aproxima-se da história de Caim; pela volta do terceiro filho inocente, da parábola do filho pródigo. Mas as “ginjas” e outras referências exóticas têm seu lugar em meio ao substrato bíblico, porque Machado está compondo ao mesmo tempo uma ponte espiritual entre aquela paisagem e o drama humano espanhol. Em texto fundador da teoria da tradução, Victor Hugo já defendia essa postura da “invasão” de uma língua por outra: “As locuções insólitas, as maneiras inesperadas, a irrupção selvagem de figuras desconhecidas”, tudo isso causa repugna à língua de destino, mas, diz Hugo, por ser “poesia em excesso”, e assim alargar os horizontes da poesia nacional.
De qualquer modo, a diretriz de Marinho é corajosa, se tivermos em conta ser muito festejada entre nós a tradução de Onestado de Pennafort para a Canção de outono, de Verlaine, quando substitui os “violinos” do original francês por brasileiríssimos “violões”. Pennafort foi um dos maiores tradutores de poesia francesa e o maior verlainista que tivemos; contudo, os silvos do outono europeu parecem mais amigos de violinos do que de violões. Já dizia Drummond: “no Brasil não há outono/ mas as folhas caem”.
Vem a propósito insistir em Verlaine. Antonio Machado é quem diz em outra peça de Campos de Castela: “Já fui aprendiz de rouxinol um dia” — e nisso podemos ler a escola verlainiana da juventude que fez de seu irmão, Manuel Machado, o primeiro tradutor espanhol do autor de Festas galantes — muito embora Antonio viesse a repudiar Verlaine em seu discurso de posse na Real Academia Espanhola. Mas a crítica já esquadrinhou o peso que o francês teve sobre o espanhol: basta ler Verlaine y los modernistas españoles, de Rafael Ferres, para saber que Machado lhe deve recursos métricos, poentes, jardins e até a admiração por Juan de la Cruz. Por isso, não se podem relevar alguns choques de consoantes da tradução, como “poeta tal”, se o ouvido de Antonio Machado, pacientemente treinado pela musicalidade simbolista, não tolerava ruídos. Apesar disso, a elegia em que aparece, escrita e traduzia no alexandrino espanhol, é um dos pontos altos do livro.
O conjunto de poemas conhecido como Ciclo de Leonor, em que o poeta reflete sobre a perda da companheira com imagens ternas, mas despojadas de lamentação — inserindo-se na tradição estoica espanhola, como sustenta Carpeaux no estudo em boa hora incorporado à tradução — é outra façanha do trabalho de Sérgio Marinho. Destaque para as soluções do poema heterométrico A um olmo seco; no belo Uma noite de verão, o português brasileiro dá as cartas, quando o tradutor diz que “a morte foi se chegando”.
Tais acertos convivem com espanholismos ou, no mínimo, arcaísmos do português aqui e ali, muitas vezes sem razão aparente. Há o exemplo de “deforme”, quando se poderia ler “disforme”, mas o caso mais teimoso será talvez “amorios”, com pelos menos três aparições, quando seria tão simples trocá-lo por “amoricos”. Nesse ponto, o tradutor parece ter sido avarento com a rima perfeita, dita consoante, quando sabe bem — e tantas vezes dá prova disso! — do belo efeito das assonâncias em Antonio Machado.