O desafio da transparência

Entre muitos acertos e alguns deslizes na tradução, "Campos de Castela" é livro indispensável de Antonio Machado
Antonio Machado, autor de “Campos de Castela”
27/01/2018

Em seu primeiro livro, Soledades, o espanhol Antonio Machado prima por afastar-se de qualquer referência local; quando publica Campos de Castela, obra que já o situa na chamada Geração de 1898, dá-se o encontro do poeta com os signos de sua juventude, em especial a região de Sória, onde lecionou, conheceu a esposa Leonor e dela enviuvou. Esse é o livro que agora temos em português, na tradução de Sérgio Marinho: obra de 1912, Machado tinha diante de si uma Espanha abalada com a perda de suas últimas possessões coloniais (o nome da Geração se refere à perda de Cuba). O Modernismo espanhol, de que vinha o poeta, fora na verdade o Simbolismo de invenção que o Brasil mal conheceu e, duas décadas antes de nossa Semana de 1922, Machado já fazia a curva da redescoberta nacional: “nesses campos da terra que é minha/ e estranho aos campos de minha terra”.

Só a peculiaridade desse olhar já faz de Campos de Castela um livro indispensável. Mesmo um Manuel Bandeira, de quem poderíamos aproximar o espanhol — pela circunstância de ter sido o mais velho entre jovens e pela formação parnaso-simbolista —, pois mesmo Bandeira não escapa à nossa tradição nostálgica, que muitas vezes soa como uma má consciência do imigrante na grande cidade. Sua bela Evocação do Recife, em verso livre, justapõe o culto do popular e do regional (“o vendedor de roletes de cana”, “o de amendoim”) à divisa da “língua brasileira” modernista (“ao passo que nós/ o que fazemos/ é macaquear/ a sintaxe lusíada”). Tudo bem diferente de Antonio Machado, quando se apropria da forma cigana da Saeta: “Oh, cantar da terra minha,/ que lança flores/ a Jesus nas agonias,/ e é a fé dos meus maiores!/ Só não és o meu cantar!/ Não posso cantar, nem quero,/ a esse Jesus do madeiro,/ mas ao que andou sobre o mar”.

Outro ponto ainda o afastaria de Bandeira, agora formal: foi esquivo ao verso livre. Já não era uma novidade na Europa, e os espanhóis de 1898, Antonio Machado entre eles, estavam mais interessados em retomar suas formas tradicionais metrificadas, como na Saeta, ou outras que vinham da oralidade medieval, a exemplo dos romanceiros, escritos em redondilhas:

Caminhante, são teus passos
o caminho, e nada mais;
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se caminho,
e ao virar-se para trás
vê-se a estrada que nunca
se há de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente esteiras no mar.

O tamanho do problema
Esse famoso poema é um dos exemplos com que José Paulo Paes defende a tradução literária da língua espanhola para o português, “a despeito das afinidades linguísticas” entre os dois idiomas. No clássico Tradução: a ponte necessária, Paes cita a versão de Wilton J. Marques, que teria tornado versos de oito sílabas o original de sete, a fim de não perder material semântico: “uma pequena ‘traição’ ao significante foi compensada”, diz Paes, “com maior fidelidade ao significado”. O poeta Marco Catalão discorda: em dissertação de 2002 sobre Antonio Machado (até bem pouco, o único trabalho de fôlego sobre o espanhol), fala em “ritmo frouxo, em que se alternam indiscriminadamente versos de sete e oito sílabas”. E apresenta sua tradução com ritmos e rimas paralelos ao original. Já por esse breve histórico de um só poema de nove versos podemos ver o tamanho do problema que o novo tradutor, Sérgio Marinho, tomou para si.

Sem comparar traduções, a escolha de Marinho ao traduzir por “esteiras” as estelas do original parece particularmente apropriada — assim fala do rastro de espuma que se abre logo em seguida a uma quilha, por exemplo. Soa consentâneo com a poética do autor, para quem a imagem do Cristo sobre as águas era fundamental, como vimos na Saeta. Porque Dom Machado, como é referido mesmo em crítica literária, foi esse ateu que, falando sozinho, esperava falar a Deus um dia (versos do poema Retrato, primeiro do livro). Sua poesia tem aquilo a que o filósofo Vilém Flusser chama de religiosidade: a capacidade de captar a dimensão sacra do mundo.

O tradutor também toma o melhor partido quando não procura “aclimatar” elementos regionais, esse mundo “sacro” de Machado. Por exemplo, ao manter como “ginja” certa cereja típica em A terra de Alvargonzales, poema no qual se conta a história de dois irmãos que matam o pai por cobiça, trazendo para os campos de Sória a praga que os arrasta à pobreza. Pelo motivo da inveja, aproxima-se da história de Caim; pela volta do terceiro filho inocente, da parábola do filho pródigo. Mas as “ginjas” e outras referências exóticas têm seu lugar em meio ao substrato bíblico, porque Machado está compondo ao mesmo tempo uma ponte espiritual entre aquela paisagem e o drama humano espanhol. Em texto fundador da teoria da tradução, Victor Hugo já defendia essa postura da “invasão” de uma língua por outra: “As locuções insólitas, as maneiras inesperadas, a irrupção selvagem de figuras desconhecidas”, tudo isso causa repugna à língua de destino, mas, diz Hugo, por ser “poesia em excesso”, e assim alargar os horizontes da poesia nacional.

De qualquer modo, a diretriz de Marinho é corajosa, se tivermos em conta ser muito festejada entre nós a tradução de Onestado de Pennafort para a Canção de outono, de Verlaine, quando substitui os “violinos” do original francês por brasileiríssimos “violões”. Pennafort foi um dos maiores tradutores de poesia francesa e o maior verlainista que tivemos; contudo, os silvos do outono europeu parecem mais amigos de violinos do que de violões. Já dizia Drummond: “no Brasil não há outono/ mas as folhas caem”.

Vem a propósito insistir em Verlaine. Antonio Machado é quem diz em outra peça de Campos de Castela: “Já fui aprendiz de rouxinol um dia” — e nisso podemos ler a escola verlainiana da juventude que fez de seu irmão, Manuel Machado, o primeiro tradutor espanhol do autor de Festas galantes — muito embora Antonio viesse a repudiar Verlaine em seu discurso de posse na Real Academia Espanhola. Mas a crítica já esquadrinhou o peso que o francês teve sobre o espanhol: basta ler Verlaine y los modernistas españoles, de Rafael Ferres, para saber que Machado lhe deve recursos métricos, poentes, jardins e até a admiração por Juan de la Cruz. Por isso, não se podem relevar alguns choques de consoantes da tradução, como “poeta tal”, se o ouvido de Antonio Machado, pacientemente treinado pela musicalidade simbolista, não tolerava ruídos. Apesar disso, a elegia em que aparece, escrita e traduzia no alexandrino espanhol, é um dos pontos altos do livro.

O conjunto de poemas conhecido como Ciclo de Leonor, em que o poeta reflete sobre a perda da companheira com imagens ternas, mas despojadas de lamentação — inserindo-se na tradição estoica espanhola, como sustenta Carpeaux no estudo em boa hora incorporado à tradução — é outra façanha do trabalho de Sérgio Marinho. Destaque para as soluções do poema heterométrico A um olmo seco; no belo Uma noite de verão, o português brasileiro dá as cartas, quando o tradutor diz que “a morte foi se chegando”.

Tais acertos convivem com espanholismos ou, no mínimo, arcaísmos do português aqui e ali, muitas vezes sem razão aparente. Há o exemplo de “deforme”, quando se poderia ler “disforme”, mas o caso mais teimoso será talvez “amorios”, com pelos menos três aparições, quando seria tão simples trocá-lo por “amoricos”. Nesse ponto, o tradutor parece ter sido avarento com a rima perfeita, dita consoante, quando sabe bem — e tantas vezes dá prova disso! — do belo efeito das assonâncias em Antonio Machado.

Campos de Castela
Antonio Machado
Trad.: Sérgio Marinho
Caminhos
250 págs.
Antonio Machado
Nasceu em Sevilha, em 1875. Autor de Soledades, Campos de Castilla e Nuevas canciones, entre outros, reuniu pela primeira vez sua obra em Poesías completas, de 1928. É considerado um dos maiores poetas da Espanha. Morreu em 1939, fugindo da Guerra Cilvil, na cidade francesa de Collioure.
Wladimir Saldanha

Nasceu em Salvador (BA) em 1977. Publicou, em poesia, Culpe o vento (2014), Lume cardume chama (2014), Cacau inventado (2015), Natal de Herodes (2017) e Arte nova (2021). Organizou e traduziu para o francês a antologia Poesia brasileira em contracorrente (2018), bem como a primeira antologia de poesia belga publicada no Brasil, A tentação das nuvens (2021). Os poemas aqui publicados são do livro inédito Aos que se perdem com as chaves.

Rascunho