O demônio em Curitiba

Em diálogo com "Grande sertão: veredas," livro de estreia de Diogo Rosas G. é um interessante passeio pela vida cultural dos anos 1990
Digo Rosas G. autor de “Até você saber quem é”
31/12/2016

O romance de Diogo Rosas G. começa com um interessante artifício narrativo. Numa nota ao leitor, o narrador, citando Thomas Hobbes sobre a motivação dos crimes, apresenta-nos o livro que vem a seguir, A vida do escritor brasileiro Daniel Hauptmann, narrada por um amigo, e anuncia que o personagem retratado na narrativa foi, “aos olhos do mundo”, o protagonista de um conto de horror. Este, que conta a história, desperta a curiosidade dos leitores ao se autonomear coadjuvante do escritor, acrescenta que misturou os pontos de vista e deu voz a outros atores, “alguns morreram; todos se feriram”. Por sua vez Daniel, o personagem principal, é apresentado como autor do livro que lhe deixará muito famoso, Os diálogos do castelo.

Assim, o romance Até você saber quem é, na verdade, contém dois outros livros e, pouco a pouco, vai transformando-se em A vida do escritor brasileiro Daniel Hauptmann, referindo-se não apenas à vida do autor, mas ao seu famoso livro, no âmbito da narrativa uma obra fictícia. No meio disso tudo, temos Curitiba, sobretudo a mítica cidade dos anos 1990. Há referências a personagens reais como o poeta Leminski, ao ambiente acadêmico da Universidade Federal do Paraná, às avenidas da cidade, suas ruas, becos, bares, restaurantes e livrarias.

O romance é dividido em doze capítulos e um epílogo, não se apresentando, na maioria das vezes, em ordem cronológica, o que não prejudica o entendimento do texto. Entremeada à história principal, há o surgimento do doutor Molinari, famoso psiquiatra, que tem papel importante como personagem secundário.

O primeiro capítulo inicia-se com Daniel “em uma tarde de setembro de 1992, enquanto o Congresso Nacional votava, em sessão extraordinária, o impeachment de Fernando Collor, percorrendo as três quadras que separavam seu apartamento da Livraria do Chain”, carregando nos braços a caixa de papelão contendo seus livros, recém-chegados da gráfica.

A partir daqui, temos a história de Daniel Hauptmann e de seu amigo Roberto, o narrador, desde o começo da amizade entre os dois, o trabalho de tradução num sujo escritório do edifício Asa, na mesma Curitiba, até a publicação do livro que, aos 27anos, tornará Daniel mundialmente famoso.

Ao lado da história do jovem escritor, temos também a de André Weiss e de sua editora Praça do Mercado, uma das maiores do Brasil dentro do contexto ficcional que o romance nos apresenta. Esta editora, ainda em início de existência, faz lembrar histórias de muitas editoras reais. Seu fundador quer lançar duas coleções paralelas, protagonizadas por autores brasileiros, uma dedicada à ficção e outra à não ficção. O primeiro volume prometia ser “um dos achados editoriais da década”, as memórias de Otto Lara Resende, mas André, verdadeiro visionário, deseja começar por um livro de ficção, e de um autor estreante. Tratava-se de loucura, mas sabemos que o universo dos livros não vive sempre da razão. Pode ser que nos dias atuais, sim, mas lá pelos idos de 1980 ainda existia uma boa dose de sonho. O editor nos maravilha ao descrever uma Paris quase mítica, onde morou antes de voltar ao Brasil para fundar sua editora com o dinheiro herdado dos pais, que sempre foram muito ricos. Num determinado trecho, diz que a melhor maneira de se ter consciência do mundo é habitar Paris durante uma parte da vida.

O que há de mais interessante no livro, no entanto, é o paralelismo com a obra maior de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, desafio difícil que Diogo Rosas enfrenta com bons resultados. Num diálogo com o jornalista Paulo Belloti, que está em Curitiba para entrevistar Daniel sobre Os diálogos do castelo, o crítico e repórter ouve o que motivou o aparecimento da enigmática obra: “A história nasceu de uma implicância com Guimarães Rosa. Na verdade, quando comecei a escrever Os diálogos do castelo, eu tinha dois objetivos com o livro, ir embora daqui (Curitiba) e melhorar o Grande sertão: veredas.” A seguir, afirmando sua segunda intenção, ele reitera: “— O Diabo, a questão é o Diabo — explicou Daniel”.

Ele investigará o pacto feito com o Demônio por Riobaldo. Lê a obra diversas vezes e chega à conclusão de que o tal pacto aconteceu mesmo, apesar de o narrador criado por Guimarães Rosa quase sempre disfarçar e fugir do assunto. A história não teria como avançar sem o pacto. Só que Daniel quer escrever uma história que aprofunde ainda mais o tema. Ele acha que, apesar da genialidade do autor mineiro, o assunto não foi suficientemente explorado. Então, também parte para o seu pacto com o mesmo Diabo.

Durante boa parte da narrativa tal obsessão vai permear as conversas com seu amigo Roberto e com a namorada Juliana, tanto no escritório onde passa a escrever o romance (como é muito alto, escreve o manuscrito com letras miúdas, apoiando as folhas brancas em cima de uma velha geladeira do anos 70), como nos bares onde os três se reúnem após o expediente.

Mas há outros ingredientes que tornam o livro verdadeiramente saboroso. Um deles é a já mencionada obsessão de Daniel em deixar Curitiba. Ele acha que a cidade tem uma maldição. Poucos de seus filhos conseguem abandoná-la, segundo ele trata-se de uma cidade sem expressão, provinciana, com poucas pessoas interessadas a ir além do próprio umbigo. A escritura de Os diálogos do castelo torna-se um meio de permitir que ele abandone a cidade com a intenção de jamais retornar. Os diálogos nos bares, pelas ruas da cidade, no próprio escritório são reveladores e interessantes, mostrando que o principal do livro está em seus detalhes, nas circunstâncias, nas pequenas frases que soam reveladoras. Junto à reconstituição da cidade, há um passeio pela literatura brasileira do final do século 20, com a citação de alguns autores e algumas referências sobre o que se escreveu no período. Mesmo Leminski não sai ganhando, poeta de que Daniel não gosta. “O Leminski se debateu até o fim, tentou ir embora várias vezes, primeiro para um mosteiro, depois para o Rio e, por último, para São Paulo. Mas sempre voltava. Voltou para morrer: bêbado, fodido, e triste.” Outra passagem sobre o poeta curitibano ocorre quando Roberto pergunta ao editor por que primeiro recusou o manuscrito para um mês depois aceitá-lo. Ele diz que um velho amigo contou-lhe num bar sobre um jovem tradutor de Curitiba, “amigo do Leminski”. Ele estava tentando publicar seu primeiro romance.

O que mais me chamou a atenção ao ouvir essa história foi que eu sabia que meu amigo não apreciava o Paulo Leminski e havia se encontrado com ele uma única vez, durante a faculdade. Quando lhe perguntei como fora a conversa, Daniel me disse apenas que eles falaram de Büchner e que Leminski estava bêbado.

O romance de Rosas G. como abarca um período longo de tempo, do início dos anos 80 até quase os dias de hoje, tem passagens reveladoras. Uma delas é sobre um professor da faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Ele conta sobre o período em que esteve no exílio, na época da ditadura militar do Brasil, e foi ajudado pelos Tupamaros. Outro trecho é sobre as mudanças ocorridas em Curitiba dos anos noventa para cá. Roberto, vinte anos depois, marca um encontro com Juliana, a namorada de Daniel à época da escrita e do lançamento de Os diálogos do castelo. Eles estão num bar, no Alto da XV. Em meio à conversa sobre a biografia que ele está escrevendo sobre Daniel, há uma revisitação à cidade dos anos 1990. “Mudou muito por aqui. Os sebos, na cidade toda nossos sebos preferidos fecharam.”

Até você saber quem é, portanto, torna-se um livro que abarca grande parte da vida intelectual brasileira (e fora do eixo Rio-São Paulo), mostrando, junto com uma história que toca em temas como demônio e literatura, que a cultura de um povo está na tentativa constante de recuperar sua memória.

Até você saber quem é
Diogo Rosas G.
Record
222 págs.
Diogo Rosas G.
Nasceu em 1976, em Curitiba e morou em seis cidades de cinco países. No caminho, estudou direito, tradução e filosofia. É diplomata e atualmente vive no Porto com a mulher e os dois filhos.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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