Thomas Mann vislumbrou a aristocracia européia oriunda do século XIX no seu mais triste ocaso. Era a época do ideário positivista, galgado na revolução tecnológica que prometia acabar com os problemas da humanidade (esta abstração mal definida!). Paralelos históricos são perigosos. Vem a calhar, contudo, o relançamento, pela Nova Fronteira, das obras completas do escritor alemão, porque é pela engenhosa banalidade do cotidiano que a história se repete — ainda que o autor alemão esteja um tanto esquecido, empoeirado num canto da biblioteca como se suas reflexões sobre seu tempo tivessem morrido com ele, em 1955, e como se fizessem parte de uma literatura necessariamente oitocentista, relegada a uma importância passada e, portanto, póstuma. Uma leitura acurada, entretanto, de duas de suas obras-primas, Morte em Veneza e A Montanha Mágica, promete um autor atualíssimo no ano em que se comemora os 125 anos de nascimento.
Com visual atraente e prefácio didático de Luciano Trigo, Morte em Veneza é o primeiro volume a ser reeditado. Como se trata de uma novela curta, a editora achou por bem incluir também a novela Tonio Kröger. Melhor para o leitor.
Para quem achar ainda que Thomas Mann é um daqueles clássicos que muito pouco dizem ao nosso tempo, vale lembrar que muito antes de se falar abertamente em homossexualidade, Thomas Mann o fazia. Antes mesmo do mundo conhecer as atrocidades do regime nazista, Thomas Mann o denunciava. Antes que a sociedade européia, com toda a opulência do século XIX, caísse nas trincheiras enlameadas da Primeira Guerra Mundial, e se horrorizasse com a rudeza da guerra, Thomas Mann já a descrevia.
Aliás, houve um tempo em que a juventude impunha Morte em Veneza como hoje os adolescentes ávidos por qualquer norte impunham Paulo Coelho (doce decadência…). Conquistavam os leitores apontamentos certeiros sobre a arte, que envolviam os jovens numa aura ambígua, de certo glamour e também compaixão:
“Para que qualquer produto intelectual de peso possa surtir de imediato um efeito amplo e profundo, é preciso que haja uma afinidade secreta, uma coincidência entre o destino pessoal de seu autor e o destino anônimo de sua geração.”
A história do escritor Gustav von Aschenbach que, durante férias em Veneza se encanta pela beleza do jovem Tadzio é mais do que um retrato bruto e bastante moderno sobre a sexualidade. É, antes, um retrato profundo sobre a natureza do ser artista (antes dessa palavra ser extremamente vulgarizada, claro) e sobre a paixão como doença. Aschenbach é mais do que um homem que anda pelo caminho de Santiago, à procura de mais um lugar-comum para encher páginas e páginas de vento; sentando, contemplativo às margens dos canais da cidade italiana ou na varanda do hotel ou ainda na praia, ele vislumbra todo um passado dedicado à arte (antes de também esta palavra ser vulgarizada…) e suas implicações neste momento de velhice, enquanto sente-se cansado e tem de viver o duelo entre a paixão desesperadora, inexplicável, doentia, e do racionalismo — fruto da sociedade tecnocrata da qual é oriundo.
Imortalizada no cinema pelo diretor italiano Luchino Visconti, Morte em Veneza é uma das mais caras obras de Mann. Seu cunho autobiográfico é evidente, até mesmo por passagens que se assemelham a Os Buddenbrooks, de 1901, livro que rendeu a Thomas Mann o Nobel de Literatura em 1929. A história do escritor Aschenbach e sua estada na cidade dos canais encanta pelo humor ácido, pontuado pela mais fina das ironias.
Se Morte em Veneza é presumidamente autobiográfica, Tonio Kröger o é de forma explícita. Obra pela qual o autor tinha predileção, Tonio Kröger expõe preferências estéticas de Mann, assim como a banalidade do cotidiano aristocrático alemão, seus maneirismos culturais e suas futilidades.
A outra obra de Thomas Mann reeditada pela Nova Fronteira é Confissões do Impostor Felix Krull. Neste livro, idealizado durante a juventude de Mann e retomado na sua maturidade, não tendo sido terminado devido à morte do autor, Thomas Mann destila toda a acidez neste que, mais uma vez (e começo a preocupar-me por estar ficando redundante), retrato da decadência da aristocracia européia. Felix Krull é um homem que, à beira da morte, decide expor sua existência de alguns trambiques, algumas trapaças e muito prestígio social para galgar o poder na Alemanha. Qualquer semelhança com um jeitinho brasileiro de ser não é mera coincidência.
Mas para falar de Thomas Mann é preciso falar também de sua obra-prima: A Montanha Mágica, com reedição ainda sem data marcada. O livro narra a estada do jovem Hans Castorp num sanatório para tuberculosos. Os relacionamentos entre os “hóspedes” de diversas nacionalidades são suficientes para se tratar um perfil da saúde das sociedades de diversos países. Thomas Mann atinge, neste livro, o auge de seu pessimismo, ao diagnosticar um doença incurável no cerne da Europa, que acabaria por levá-la à morte quase que voluntária. Há nisso, claro, uma reflexão muito clara da Primeira Guerra Mundial e da promiscuidade das nações que antecederam o conflito. Como há, também, sinais claros de uma Europa que novamente caminhava para o sanatório, em busca não da cura, mas da morte. Este pessimismo, que pontua todas as obras de Mann, é influência dos filósofos Schopenhauer e Nietzsche. A obra de Mann, vale ressaltar, ainda sofreu influências da psicanálise, ciência que se consolidou no início do século, e de um profundo conhecimento sobre mitologia, cujas citações estão presentes tanto em Morte em Veneza quanto em Tonio Kröger.
Mas, afinal, quem foi Thomas Mann?, deve estar-se perguntando o leitor. Segue uma pequena biografia:
Thomas Mann nasceu em 6 de junho de 1875, em Lübeck, filho do comerciante e senador Johann Heirich Mann e de Julia da Silva Brhums. Isto mesmo: Julia da Silva. A mãe de Thomas Mann era brasileira, filha de um fazendeiro alemão, nascida em Parati, no Rio de Janeiro. (Aos interessados, devo sugerir o livro Ana em Veneza, do escritor João Silvério Trevisan). Filho dileto da aristocracia germânica, entretanto, Thomas Mann frisava que vinha de sua mãe a “alegria” que pontua alguns de seus livros. Ufanistas, regozijai-vos! São palavras de Thomas Mann: “Indagado sobre a origem das inclinações herdadas, devo constatar que tenho de meu pai a maneira séria de encarar a vida, mas de minha mãe a natureza alegre e no mais amplo conceito artístico-sensitivo, o prazer de fabular”.
Após a morte do pai, em 1890, sua família se muda para Munique, onde, com muito esforço, Mann acaba seus estudos. A partir de então, passa a se dedicar às letras, pretendendo ser jornalista. Foi durante uma viagem à Itália que a literatura despertou para ele. Em Roma, no final do século XIX, começava a escrever aquele que muitos consideram sua mais sólida obra: Os Buddenbrooks. Foi a partir da morte de seu pai e da liquidação da empresa da família que Mann vislumbrou aquilo que seria seu tema preferido: a decadência da sociedade européia. Não era para menos: três gerações de ricos comerciantes reduziram-se a nada nas mãos de Thomas Mann.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o escritor defendeu a guerra no ensaio sobre Frederico o Grande, no qual diagnosticou a eterna hostilidade entre a cultura ocidental e a cultura germânica. Por também ser defensor veemente da República de Weimar, Mann, apesar do discurso em favor do “natural destino de auto-sacrifício” do povo alemão, é rejeitado em seu país durante a década de 20, quando o nacionalismo que daria início ao regime nazista começava a dar as caras.
Apesar de ter defendido a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, Mann jamais foi um colaboracionista nazista. Pelo contrário: verbalizou sua adversidade contra a barbárie que se instaurava no país, sob as mãos pesadas de Hitler. Por isso, em 1936 foi oficialmente considerado persona non grata em território alemão, tendo sua cidadania cassada e seus livros queimados no macabro ritual das fogueiras públicas. Por ironia, neste mesmo ano, recebe o título de cidadão Honoris Causa na Universidade de Bonn, título que, mais tarde, Hitler tiraria de suas mãos. Devido a tantas e nada sutis demonstrações de hostilidade, Mann e sua família se mudam para a Suíça e, mais tarde, para os EUA, onde lecionou na Universidade de Princeton.
A epopéia pessoal de Mann contra o nazismo resultaria numa das obras mais significativas do século: Dr. Fausto, na qual a genial alma alemã, representada por vultos como Goethe e Schiller, encontra a loucura que se abate sobre a já implodida sociedade européia.
Thomas Mann morre em 1955, em Zurique, na Suíça.