O curioso caso de José Lins do Rego (final)

Obra do escritor paraibano caiu na armadilha de não atender aos pressupostos da crítica
Jose Lins do Rego e José Olympio. Foto: Divulgação
01/01/2013

A tendência de depreciação crítica da obra de José Lins do Rego vai deixando contradições pelo caminho, tópicos que serão caros aos pesquisadores de um cenário futuro, gente liberta das encardidas radicalidades ideológicas que atravessaram o umbral do século 21. Uma dessas incongruências surge quando do encontro de duas asserções muito visitadas pelos estudiosos: de que os romances do ciclo da cana-de-açúcar são destituídos de tensão narrativa e de que são textos empapados de nostalgia, melancólicos.

Seja nas transitórias malhas da nostalgia, ou nas variações do ininterrupto pathos melancólico, existe uma tensão fundamental, da relação com o vazio, com uma ausência que — mesmo quando não identificada — move buscas ou pesa sobre os ombros que se entregam. Nenhum escrito carregado desse tipo de sentimento pode também ser acusado de falta de conflito. No máximo, os enredos e o estilo de Zé Lins não exploraram os elementos tensivos como seus comentadores julgam que seria mais adequado.

Muitos desses exegetas chamam atenção para os parágrafos iniciais do Ciclo. “Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu”, lembra o narrador logo na abertura de Menino de engenho. E, pouco mais adiante, Carlos de Melo informa também o destino do seu pai homicida:

Vim a compreender, com o tempo, porque se deixara levar ao desespero. O amor que tinha pela esposa era o amor de um louco. O seu lugar não era no presídio para onde o levaram. O meu pobre pai, dez anos depois, morria na casa de saúde, liquidado por uma paralisia geral.

O livro começa pela revelação da natureza assinalada de seu protagonista, marcado desde sempre pela orfandade, pelo sentimento de perda. Diferentemente do que afirmou Wilson Martins, contudo, os dois temas centrais da literatura do paraibano não são a morte e a nostalgia do amor materno. As tragédias ancestrais do personagem Carlinhos, por exemplo, são incontornáveis, as lacunas que originam e orientam sua história são irremediáveis: o fim violento da mãe, a recordação de um pai também perdido (já antes da morte física, nos labirintos da insanidade). E são feridas constantes, que terminarão seladas em estação nenhuma.

Daí, mais acertado afirmar que são dois os lugares fundamentais: a morte e a melancolia — pois esta, diferente da nostalgia, não conhece fim, não tem esperanças de remediação, sequer conhece bem a origem do vazio ou nele se resume. O retorno do melancólico é mais aparentado com o luto do que com qualquer vã expectativa de resgate. Os muitos momentos de nostalgia em Menino de engenho são variações superficiais sobre um alicerce bem mais frágil e sombrio, onde nenhuma conciliação é possível, do qual não se pode colher harmonia restauradora.

Um ciclo multitensional
É bem conhecida a formulação de Todorov de que toda narrativa é constituída pela tensão de duas forças: a mudança e a repetição. Aquela é dinâmica, move o curso dos acontecimentos, a história, “onde cada instante se apresenta pela primeira e última vez. É o caos que a segunda força [a repetição, as semelhanças] tenta organizar; ela procura dar-lhe um sentido, introduzir uma ordem”. A busca de um ordenamento se dá através da recorrência de alusões, frases, ações, personagens, etc.

Em Menino de engenho, essa tensão primordial é facilmente identificada. Carlos de Melo relata sua infância corrida nas terras do avô materno, o Coronel José Paulino. É a história de suas descobertas diárias nas várzeas do Paraíba, sucessão de acontecimentos quase sempre banais. Entre os cuidados da tia Maria, a autoridade do patriarca, o convívio com as gentes e a natureza do lugar, o personagem-narrador articula as peças através da negatividade, das suas intermináveis perdas: a orfandade, a morte do primeiro amor, a partida da primeira namorada, o casamento da tia que lhe servia como segunda mãe, a saída forçada do engenho.

Uma segunda tensão, bem mais sutil, reside na distância entre Carlinhos e o Carlos de Melo já adulto. Apesar de investir fundamentalmente na impossível recuperação de um passado distante, alguns trechos do romance se voltam para o conflito entre as visões de mundo do menino de engenho e do seu narrador. Eis um desses raros momentos de diálogo explícito entre os diferentes planos temporais:

O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos.

Outra tensão é mais claramente observada se analisados os cinco livros do ciclo (Menino de engenho, Doidinho, Banguê, O moleque Ricardo e Usina). Apesar das diversas fases e realidades vividas pelas suas personagens, a reunião desses romances apresenta um longo painel de desintegração, de sumiço de uma civilização, do fim da chamada sociedade do açúcar. Tudo narrado numa linguagem simples e amena, de baixíssima fragmentação, de poucas elipses, sem aprofundamentos psicológicos, sem grandes artifícios de estilo. Para muitos críticos, essa opção formal é uma das razões que levam à falta de tensão. Mas esse nítido contraste entre forma e conteúdo não é em si um elemento tensivo?

Acontece que boa parte da fortuna crítica de José Lins do Rego foi construída a partir da rejeição à sua proposta estética e demandas autorais. Em vez de discutir se foi bem sucedido na lida com as ferramentas e colheitas que se propôs, a maioria dos exegetas partiu da tese de que aquelas eram escolhas despropositadas, vencidas, que não serviam mais como baliza de reflexão. O romancista paraibano foi julgado tendo como base a legislação literária da qual nunca foi signatário.

Jogo de lentes
No ensaio Fechado para balanço, Silviano Santiago alerta que “toda avaliação é feita em favor de alguma coisa”. Ele também defende que distinguir é a base da reflexão, que pesar elementos diferentes serve ao propósito do crítico de “separar o joio do trigo”. E — no que é mais importante para a discussão sobre Zé Lins — Silviano afirma que:

À medida que o modernismo foi encontrando os seus inventores e fabricantes, os seus intérpretes e os seus caminhos históricos, sucessivas distinções eram feitas, criando desastrosos equívocos e gerando satisfatórias certezas.

Muitos críticos e teóricos que empreenderam essas clivagens consideraram que entre as “satisfatórias certezas” estava a de que existiam maneiras certas de escrever ficção à época de Zé Lins, rumos formais apropriados para autores não passadistas, que desejassem criar em consonância com o tempo presente ou mesmo antecipando conquistas futuras. Para quase todos esses comentadores, o romancista paraibano não correspondia às novas expectativas.

Foi um julgamento crítico absolutamente natural, com base em um procedimento normal e corriqueiro, porque nenhuma postura crítica se ergue à margem das ideologias. Grave foi o radicalizado trajeto dessa tendência depreciativa, o cadinho de acusações obtusas que ela propiciou.

A análise de Luís Costa Lima é das mais interessantes, porque deixa bem evidentes suas convicções literárias, os horizontes aos quais José Lins do Rego não foi capaz de atender. Ao comentar sobre Doidinho, por exemplo, ele se detém na briga entre professor e aluno, entre Seu Maciel e o sertanejo Elias, que não se sujeitara à punição física. Costa Lima reproduz o trecho:

Elias era um bruto. A sua resistência ao castigo me parecia injustificável insubordinação. Ali todos se submetiam à palmatória. E aquela rebeldia violenta, em vez de me arrastar à admiração, me jogou aos pés do homem que nos tiranizava.

Para o crítico, é inaceitável que Zé Lins não tenha aprofundado aquela solidariedade de Carlinhos para com o tirano professor do colégio interno, é inconcebível que o autor não tenha desdobrado a cena, escrito sobre “a causa do comportamento do personagem, as marcas sobre ele do paternalismo autoritário do engenho, o amofinamento que provocou no menino, etc”. Como comparação, Costa Lima cita Graciliano Ramos, explana como o autor de Infância, ao narrar a injusta surra que o protagonista do romance recebeu do pai, distende o acidente com um “leque de ondas e reflexões que apontam para as conseqüências do fato sobre o comportamento posterior da criança”.

Para o estudioso, esse procedimento é marcante na obra de Zé Lins, e sempre que o romancista desvia o curso dramático, sem desenvolvê-lo, termina por retirar a tensão da narrativa. Sendo ainda mais claro, ele cita a referência Lukács, para quem “um conflito para ser dramático depende da conexão interna entre o personagem central e a colisão concreta das forças em luta”, o efeito tensivo está na dependência do engajamento total dos personagens no conflito.

Desnecessário provar que Costa Lima tem razão ao argumentar que o autor do ciclo da cana-de-açúcar poderia ter dado tratamento dramático diferenciado a vários personagens e momentos de seus romances. Também é indiscutível que isso poderia ter enriquecido sua obra. Mas é exagero espantoso cravar que as narrativas de Zé Lins não possuem tensão. Como especialista em Teoria da Recepção, impressiona que Costa Lima tenha ignorado os diversos outros caminhos pelos quais o leitor pode se envolver emocionalmente nos conflitos. Aliás, não impressiona, porque tal cuidado não fazia parte da agenda. Essencial naquele momento era discernir o escritor paraibano com as mesmas lentes que tão bem se harmonizaram à literatura de um Graciliano Ramos, por exemplo.

Autor de uma obra só
Rendidos pela força de Fogo morto, vários dos críticos mais severos ou dos simples reprodutores de preconceitos partiram para uma dupla operação de escamoteamento: 1) defender que aquela era a única obra de Zé Lins que merecia um lugar destacado na literatura nacional; 2) justificar a exceção principalmente através da via formal, que o romancista teria feito uso de recursos técnicos jamais empregados em seus demais livros.

Ora, qualquer trabalho lingüístico sério desmente a segunda proposição. O escritor utiliza alguns procedimentos realmente inéditos, como a tripartição da narrativa, com suas personagens principais: o mestre seleiro Zé Amaro, o Coronel Lula de Holanda e o inesquecível Vitorino “Papa-Rabo” Carneiro da Cunha. O grosso das características formais, no entanto, é o mesmo de que se valeu no Ciclo da cana-de-açúcar, com o natural aperfeiçoamento da execução e eventuais intensificações — caso do destaque dado às falas das personagens, que, afinal, são basilares na construção do romance.

Fogo morto não é obra síntese somente no que concerne aos temas e demandas autorais: o estilo que José Lins do Rego empregou ali não é uma guinada formal, mas uma depuração. O que foi acrescentado não destoa do que já fora empregado no ciclo, aprimora-o. Se algo existe de expressivamente díspar é a riqueza de visões de mundo, o extraordinário resultado dramático de seus três protagonistas — o que, porém, não deixa de ser desenvolvimento de um esforço demonstrado em títulos anteriores, de ampliar as vozes e legados de outras gentes daquela sociedade açucareira em ocaso. Como bem resumiu Massaud Moisés, com Fogo Morto

o autor alcançava a maturidade sem abjurar de suas mais fundas raízes, patentes no ciclo da cana-de-açúcar. Realizava, por conseguinte, o equilíbrio entre o amadurecimento como ficcionista e o respeito às matrizes de sua cosmovisão: regresso às origens em pleno apogeu existencial e artesanal, eis a razão dessa coerência íntima entre memória e invenção, uma e outra em grau superior, de acordo com as possibilidades do escritor.

É o mesmo Massaud, entretanto, que ratifica a idéia de “autor vocacionado para uma obra só, e que se dispersou por outras várias até produzi-la”. A elevação de Fogo Morto, portanto, dá-se no mesmo movimento de subestimação das demais obras de José Lins do Rego. Mesmo que deixada de lado a inconsistência da afirmação, qual o problema de um romancista lutar a vida inteira para atingir conteúdo e desenvoltura técnica que lhe garanta um único grande livro? Quantos dos autores brasileiros conseguiram criar pelo menos uma obra-prima? Ainda que todo restante da produção do paraibano fosse mesmo um fracasso, seria possível, como querem alguns, tirar-lhe até a condição de escritor?

Quando Zé Lins receber a necessária revisão — que, para além do julgamento de mérito, possa pelo menos medi-lo pelo que ele foi, e não pelo que seus depreciadores acharam que ele deveria ter sido —, será indício de que a própria crítica brasileira estará se libertando do ambiente de vale tudo, das descalibradas guilhotinas, das insuficientes dicotomias. Ele e a literatura sairão ganhando, mesmo que seja para recaírem em novas armadilhas.

Cristiano Ramos
Rascunho