O curioso caso de Fitzgerald

F. Scott Fitzgerald foi a voz da geração que nascia das ruínas de uma guerra sangrenta
F. Scott Fitzgerald por José Luiz Tahan
07/07/2015

Para nós, herdeiros de Gandhi e contemporâneos de John Lennon, é difícil entender, hoje, o que aconteceu com a geração nascida no final do século 19, que iria chegar a 1915 (ano da guerra) com 18, 20 ou vinte e poucos anos. De um lado, tornavam-se jovens em um ambiente alimentado pelo otimismo dos anos mais prósperos da história europeia; de outro, eram nutridos pelos ímpetos ainda fortes do romantismo, cujas variantes, na música, na literatura, pintura ou escultura, faziam a ideia do heroísmo chegar ao seu ápice. Não por outro motivo, ao ficar clara a eminência de um confronto continental — e mundial —, hordas de jovens correram a alistar-se, sequiosos de lutar gloriosamente pela pátria e ir para os fronts, arriscando-se ao improvável e ao imprevisto.

De certa forma, o mesmo havia acontecido com os jovens europeus de um tempo anterior, o século 16: atraídos pelo desejo de aventurar-se em direção a um mito chamado América (Cortez começaria sua trajetória na América aos 17 anos; Estácio de Sá desembarcaria no Rio de Janeiro com a mesma idade), o que os movia era muito mais uma construção mental do que real. Se havia uma diferença, era esta: no princípio de século 20, não se pretendia a riqueza nem se buscava nenhum Eldorado: o que definia aquela geração era um modo diferente de aventurar-se, uma aventura movida por uma náusea diante do que se consideravam as maiores conquistas da civilização.

Vagando pelas cidades ricas e miseráveis ao mesmo tempo, que eram as capitais europeias do século 19, ou sendo influenciados pela cultura do velho continente, na América, jovens de todas as camadas, instigados por artistas, poetas, escritores, contrapunham, ao progresso, a desesperança. Para eles, a guerra surgia como um momento de ruptura em um período em que tantos ansiavam por isso — o rompimento com a ordem constituída, cada vez mais republicana e positivista. Bastou que os primeiros se aventurassem, porém, para que a realidade dos fronts revelasse a fragilidade dos sonhos. Não foram só anônimos — muitos — que morreram: Apollinaire, por exemplo, o mais respeitado e admirado poeta modernista de seu tempo, terminaria sua vida no front, por decisão pessoal e intransferível.

Para os que não foram, por sua vez, o destino não seria mais tranquilo: em um mundo convulsionado, tiveram de enfrentar a vida nas cidades e nos países submetidos à economia de guerra, enfrentando a falta de oportunidade, de alimentos — o caos. Enfim, na frente de batalha — que eram os fronts — ou na frente de resistência — que eram os países submetidos à guerra — as lições eram duríssimas.

Sensibilidade hipertrofiada
Frances Scott Fitzgerald era daqueles para quem o desafio da glória não poderia ser ignorado. Graduado em Princeton e tendo vivido sua juventude em um ambiente de grandes e graves discussões intelectuais, o jovem Scott era, basicamente, um sujeito com sensibilidade hipertrofiada: para ele, pequenas derrotas tornavam-se motivo de grandes frustrações. Ao perder a presidência de um dos clubs (grêmios) da instituição, sofreria um baque; ao ser excluído do time de football, mais uma pancada; finalmente, ao passar pela primeira decepção amorosa (a garota pretendida o abandonaria por um money-pocket, como ele chama, alguém com dinheiro capaz de satisfazer seus justificáveis desejos de segurança), Frances perderia o rumo.

Com a guerra e a possibilidade de aventurar-se na luta heroica, seus sonhos de glória se reacenderiam. Mas ao ser impedido de combater no front e designado para tenente-de-campo, a resistência do jovem Scott mais uma vez seria duramente testada. Afinal, resignar-se a uma posição destas — em um tempo como este — equivalia, para um jovem educado em torno da idolatria a Tennyson e aos ícones da cultura americana e europeia, a uma injúria.

Determinado por essas circunstâncias, o jovem desiludido se decidiria por uma mudança radical: tomaria uma balsa que o levaria de Nova Jersey, onde morava, para Nova York, onde passaria a viver como mais um jovem sem nem um sapato de sola de borracha, no frio e na indiferença da grande cidade. Lá, voltaria a escrever. Mas a necessidade de sustentar-se o faria aceitar um emprego que iria abominar, na Railway Advertising Company. De lá só sairia depois de um novo e ainda mais forte rompimento amoroso, que o faria abandonar a propaganda e ir para casa com um único objetivo: escrever. Não seriam mais poemas e contos, como fazia desde a precoce juventude, que moveriam Scott; ele, agora, buscava algo maior, mais ambicioso: uma novela. Sem salário, com contas e dívidas para pagar, movido apenas por um whirlwind (desejo sem direção, movimento de alma), e sobrevivendo de bicos — como o conserto de tetos de automóveis — mergulharia de cabeça em seu projeto.

Em uma tarde de 1918, ao receber uma carta inesperada, Frances sairia aos saltos pelos trilhos da Railway Company, em Nova York, balançando o pedaço de papel na mão. O que ele esperava havia tanto tempo se concretizava: uma importante editora havia aceitado o seu romance, This side of paradise. Ao reunir-se pela primeira vez com seu editor, Scott não conteria seu entusiasmo: uma edição de vinte mil exemplares, ele sugeriu, seria ideal. Depois da sonora gargalhada com que a proposta foi recebida pelo editor, ficou determinado que cinco mil seria um número mais do que suficiente para uma primeira edição. Duas semanas mais tarde, quando o romance alcançou e ultrapassou rapidamente a marca dos vinte mil volumes, era evidente que se estava diante de um fenômeno.

Da noite para o dia, aos 22 anos de idade, Frances Scott Fitzgerald se transformaria de amador em profissional. Sua melancolia áspera, linguagem precisa, sentimentalismo afiado, fariam de Frances, em pouco tempo, a voz da geração que nascia das ruínas de uma guerra sangrenta, desiludida dos ideais heroicos e embalada pelo jazz, suingue, futurismo, moda, Freud e outros. Para esta geração, o que importaria seria a celebração da vida e do corpo, das emoções e dos sentimentos. Iniciavam-se os alegres, frenéticos, estonteantes — e quantos mais adjetivos se possa encontrar — efervescentes twenties. Abandonando fronts conceituais e metafísicos, os jovens virariam as costas para a tradição e se voltariam para o presente, a liberdade e o risco. Vida nova, comportamento novo, ousadia nova era a aspiração — e, para buscá-los, tudo era justificável, da arte à cocaína, do sexo às festas mais extravagantes, do romance à blasfêmia.

Romance perfeito
This side of paradise tornou-se o primeiro romance desse tempo e dessa geração. Fitzgerald, seu profeta. A publicação de O grande Gatsby, três anos depois, em 1925, só viria confirmar a estatura e a importância que o novo escritor passava a assumir para a geração que se afirmava. Gatsby é o romance perfeito. Tudo nele é música e desilusão. Com seus contos, sempre desconcertantes, e com o livro Suave é a noite, Scott, em pouco tempo, desenvolveria ainda mais o seu mito. Champanhes, hotéis, viagens, encontros, festas, uísque, cocaína, hotéis, festas, encontros: a vida se transformaria nisso. Parecia não haver limites, tanto para as conquistas dos twenties quanto para a ascensão de Scott.

Mas tudo na vida, como sabemos, se transforma. Mesmo o que parecia eterno — os anos 20 com suas loucuras e a juventude de Scott — um dia terminariam. Fitzgerald chegaria aos 30, 31, 32, 33, 34 anos, diante de um dilema: continuar escrevendo romances que lhe garantiriam uma vida confortável, ou arriscar-se a um salto maior, com montanhas de ouro acenando-lhe ao longe, sob um néon onde se lia: Hollywood. A chegada do cinema falado e a necessidade de elevar o negócio a um outro patamar de qualidade tornavam os grandes escritores objetos de desejo da indústria.

Nem todos, claro, aceitariam a chamada da medusa. Scott fez sua opção. Não demoraria muito tempo para que ficasse claro para todos: havia uma diferença entre escritores de verdade e roteiristas. A relação conturbada com diretores, atores, roteiristas e com os tyccons do cinema — somada à vertigem em que sua vida havia se transformado — levaria Scott ao esgotamento. O artista ansiava não só por solidão, mas — se é possível falar disso em um século semiótico — por recuperar sua alma perdida.

Afastou-se de tudo e de todos. Por um bom tempo, não se ouviria mais falar do homem que havia traduzido um tempo. Scott não publicaria mais livros, não escreveria mais roteiros, não apareceria, não falaria, limitando-se a publicar artigos em revistas.

Em 1936, um texto, dividido em três fragmentos, surgiria em três números sucessivos da revista Esquire, assinado por Frances Scott Fitzgerald. No nome já era possível prenunciar o conteúdo: Crack-up. Scott, nesse ano, atingia a idade — sempre crítica para um homem — de quarenta anos (viveria mais cinco). Com elegância, humor e uma absoluta falta de complacência consigo mesmo e com a humanidade, Frances Scott Fitzgerald anunciaria, em Crack-up, sua rendição.

Desistia da espécie humana. Confessava seu mais completo fracasso. Dizia ter se identificado com os objetos de seu horror e de sua compaixão. Acreditava ter desenvolvido uma atitude triste para a tristeza e uma atitude melancólica para a melancolia. Segundo escreve, isso era um acontecimento raro: Lênin nunca teria sentido, verdadeiramente, as dores do seu proletariado, assim como Washington as de suas tropas, ou Dickens de sua Londres pobre. Tolstoi (continua a dizer) ao tentar a proeza, havia fracassado rotundamente.

Em Crack-up, Frances fala que sua autoimolação era sombria, não tinha nada de moderna. Tentando reagir a ela, passaria a fazer listas intermináveis sobre os mais diferentes assuntos: de líderes da cavalaria a jogadores de futebol, de cidades a músicas populares, de tempos felizes a hobbies, de casas onde tinha vivido a número de sapatos e ternos que havia tido, as quais, depois de concluídas, eram rasgadas sem piedade. Descreveria sua crença de que a novela, o mais completo meio para troca de pensamento e emoções entre seres humanos, estaria se subordinando a uma arte comunitária e mecânica, isto é, o cinema. E completaria dizendo que, nas mãos dos mercadores de Hollywood ou dos idealistas russos, a novela era capaz de refletir apenas pensamentos deprimentes e emoções baratas.

Mas antes que sejamos induzidos ao desejo de classificar o caso de Scott como resultado de uma depressão grave, como é próprio do nosso tempo, é preciso assinalar: não se trata, aqui, de um depressivo qualquer. A mediação entre Frances Scott Fitzgerald e o mundo se dava através da linguagem. E ninguém, nem mesmo Hemingway, por quem tinha adoração, escrevia sentenças como Scott. O escritor era, antes de tudo, um artista, um grande artista, talvez um dos maiores do século, e a pessoas assim conceitos metafísicos não se aplicam. Elas estão sempre aquém ou além da psicologia.

Apogeu da arte
Em outras palavras, Francis Scott Fitzgerald, em Crack-up, atingiria o apogeu da sua arte, anunciando um gênero, se não novo, pelo menos revitalizado como nunca: a literatura em primeira pessoa. Ao retornar do seu autoexílio, instaurava na literatura uma voltagem única. Mas revista é revista, um objeto a ser manuseado em barbearias, salas de espera, sofás, e no qual se espera encontrar tudo, menos uma reflexão grave e profunda sobre a existência e o fracasso. O resultado é que Crack-up passou batido. Os poucos que o leram, assustaram-se; os que não leram, não tinham como encontrá-lo em livros.

Só em 1945, graças ao esforço de um amigo dedicado — Edmund Wilson — o texto seria publicado, junto com outros textos, cartas, um pequeno livro chamado Notebook, além de ensaios de outros escritores. Em 2009 o livro seria reeditado, e em 2014, o crítico David Deny escreveria um texto memorável na New Yorker, através do qual muitas pessoas — como eu — vieram a conhecer a peça literária. Nela, a uma certa altura do texto, Scott descreve o encontro com uma certa senhora, a qual, com o ar de alguém capaz de confortar Jó, lhe diz que, como recurso para enfrentar sua crise, ele deveria pensar que o crack não era nele, mas, sim, no Grand Canyon.

“Mas o crack acontece comigo”, responderia, heroicamente. Ao que a senhora devolveria: “Escute. O mundo só existe porque você o apreende de um certo modo, e seria muito melhor dizer que não é você que está destruído — é o Grand Canyon!”. Scott tentaria revidar mas ela retrucaria com histórias da própria vida que, ao serem contadas, pareceriam mais dolorosas que a dele, e falaria de como as teria enfrentado e superado. Enfim, nada a faria descer da plataforma metafísica em que havia se instalado.

A partir disso, Scott tiraria a conclusão, no magistral final da primeira parte, de que vitalidade é como saúde, olhos castanhos, honra, voz de barítono: ou se tem, ou não. Terminaria citando Mateus: Nós somos o sal da terra. Mas se o sal perde o seu sabor, como e onde salgar? E na terceira parte — não menos magistral —, ele terminaria dizendo que não suportava mais: 1) o homem do correio; 2) o vendedor do armazém; 3) o editor; 4) o marido da prima; enfim, boa parte da humanidade, descontados médicos, garotas de treze anos e garotos de oito. A humanidade, em contrapartida, certamente não iria suportá-lo mais. Resumindo, a vida nunca mais seria agradável novamente. Na porta da sua casa, Scott escreve que colocaria o signo Cave Canem, e tentaria ser um animal correto. Se alguém, contudo, o tentasse com um osso coberto de carne, que tomasse cuidado: ele não vacilaria em tirar um pedaço da mão do visitante.

Quatro anos depois da publicação de Crack-up, 1940, exatamente no ano em que se deflagrava o início de mais um conflito mundial, o bravo, heroico e destemido coração de Frances Scott Fitzgerald desistiria do front em que havia transformado a sua vida. Ele morreria aos 44 anos, deixando um romance — O último magnata — inconcluso, fragmentos em que John Dos Passos veria a gênese do grande romance americano capaz de se igualar aos grandes romances europeus.

Scott, porém, não estava mais lá para escrevê-lo.

Antonio Cescatto

Nasceu em Curitiba (PR), em 1957. É escritor e publicitário. Autor de O mundo não é redondo (Travessa dos Editores)

Rascunho