Em certa medida, é possível dizer que o escritor Josué Montello (1917-2006) e o diplomata norte-americano Henry Kissinger possuem semelhanças entre si. Talvez nem tanto pela veia da ideologia política, mas, sem dúvida, pelo fato de que Montello e Kissinger, cada qual em seu idioma, escrevem o fino no que se refere à narrativa memorialística. E é disso que se trata, aliás, a seleta Melhores crônicas, organizado por Flavia Amparo, lançada pela Global. A editora, vale a pena frisar, é responsável pela reedição de muitos autores brasileiros relevantes do século passado, mas que, por obra e graça dos novos antologistas e, muito especialmente, das novas gerações, são cuidadosamente esquecidos, como se não merecessem um lugar na memória dos leitores que ora se formam. Josué Montello, um dos principais prosadores da língua portuguesa escrita no Brasil, merece estar nesse panteão não apenas por seu Os tambores de São Luís, ou, ainda, pelo Diário da Manhã, mas por ter se dedicado de forma devota à causa da literatura, seja na Academia Brasileira de Letras, seja na imprensa nacional, para a qual colaborou durante décadas, como se lê nesta coletânea.
Nesse sentido, observa-se que, mesmo como cronista, Montello nivelava seus textos com base em parâmetros e perspectivas acima da média. De um lado, porque não fazia concessões a esse ou aquele grupo de leitores, que, segundo informam as pesquisas de opinião dos departamentos de marketing, poderiam não se interessar pela abordagem culta, educada e intelectualizada promovida pelo autor. De outra parte, pode-se afirmar ainda que o autor imaginava, a partir de seus textos, estabelecer certo diálogo junto aos leitores, como se estes o tivessem convidado para estar ali, ora na mesa do café, ora no bate-papo do café da tarde. Assim, mesmo sem ter participado das revoluções sociais provocadas pelas novas tecnologias (Twitter, Facebook, Wikipédia, Orkut e similares), o escritor maranhense conversava com seus leitores, de forma franca, sem temer não ser compreendido. Tanta segurança não se originava na eventual arrogância de Montello, que, para o bem e para o mal, era um conciliador. A natureza de sua influência, do ponto de vista literário, se baseava na clareza de suas idéias e na beleza de seus textos.
Formação sólida
Divididas em sete partes (“Memórias”, “Histórias da Academia”, “Óbices do ofício”, “Amigos de sempre”, “Homens e livros”, “Biblioteca íntima” e “Mestre Machado de Assis”), as Melhores crônicas, nesse aspecto, se revelam como parte integrante de um projeto memorial talvez imaginado pelo autor como seu verdadeiro leitmotiv literário. Quem lê Montello não tem dúvida de que o verdadeiro tema de seus textos é a sua observação diante do mundo que o cerca. Um universo, a um só tempo, particular e peculiar, repleto de amizades célebres, políticos ilustres e, obviamente, repertório literário. Ora de forma explícita, ora de forma implícita, Montello sempre dá um jeito, em seus textos, de imiscuir, aqui e acolá, uma referência aos mestres: a diligência de Euclides da Cunha; o talento de Eça de Queirós; o estilo de Machado de Assis. Para o escritor radicado no Rio de Janeiro, as ocasiões sempre podem ser analisadas tomando emprestado o edifício sólido da literatura, sobretudo no tocante aos clássicos. Nem sempre o efeito é o mesmo, pois, com o tempo, algumas ilações soam desnecessárias. Todavia, nota-se que a formação de Montello é sólida como a de poucos escritores, daquela geração ou mesmo da atual.
Exemplo disso se dá quando o autor comenta acerca de seus primeiros dias no Rio de Janeiro. Aqui, evidentemente, Montello se coloca como protagonista e observador do derredor, num esforço para resgatar sua trajetória e, de quebra, acertar alguns detalhes no tocante à narrativa de si mesmo, como é o caso da crônica Trinta anos depois. Do mesmo modo, em outro momento, o autor não deixa de render homenagem a Juscelino Kubitschek, quando o ex-presidente da República decidiu publicar suas memórias. Hoje em dia, trata-se, a autobiografia de JK, de um texto obscuro, deixado de lado até mesmo pelos especialistas em História da República, que, por sua vez, preferem bem mais a narrativa de Ronaldo Costa Couto (Brasília Kubistchek de Oliveira) e de Cláudio Bojunga (JK: o artista do impossível). Ainda assim, Montello arruma um jeito de elogiar a autobiografia, enaltecendo, em uma ginástica argumentativa, o seu autor, como que emprestando ao texto o brilhantismo e a imaginação do ex-presidente da República: “Esse homem de letras (Kubitschek) realizou-se agora, em plenitude, nos seus livros de Memórias”. Em outras palavras, tentou converter o amigo em bom escritor. A impressão que dá é a de que a crônica é melhor que o livro, novamente tentando estabelecer um sentido.
Ao lado dessa premissa, é perceptível, também, a preocupação com a sua origem. A menção a seu pai nas crônicas iniciais não é corriqueira, conforme se lê em O amigo que perdi. Ali, o escritor projeta em seu pai a razão de seus interesses intelectuais, bem como de suas afinidades eletivas: “Já confessei aqui que foi no exemplo de meu Pai, incansavelmente relendo a sua Bíblia de 1 de janeiro a 31 de dezembro, que recolhi o gosto da leitura”. Em uma sociedade claramente sectária e ciosa de seus membros da chamada classe intelectual, a gênese mundana de um nome como Montello precisava estar articulada com uma espécie de vaticínio, ou, melhor dizendo, de presságio. Assim, se em Drummond lemos “Vai, Carlos, ser gauche na vida”, em Montello tal aviso poderia ser emendado como “o estilo faz o homem”. Ou seja, seu temas, suas idéias e sua maneira de escrever estão associadas diretamente à sua origem e, de forma mais específica, à sua formação como intelectual no epicentro do poder político e nas entranhas do meio literário.
Por esse motivo, não é por acaso que Josué Montello se notabiliza por sua discrição ou, melhor dizendo, sua forma comedida no cenário das idéias do Brasil. Ainda que tenha sido um dos principais intérpretes da obra de Machado de Assis, como se lê em Uma trilogia da leviandade feminina e em Uma cena erótica em Machado de Assis, talvez sua mais perfeita definição seja aquela relacionada à figura do homem conciliador. Avesso às polêmicas, infenso ao confronto e, infelizmente, desprovido daquela verve que apenas faria crescer seu estilo. Em vez disso, Montello preferiu o consenso, embora não fosse um homem simplório que apenas regurgitasse o senso comum. Um defeito de caráter, dizem alguns, é a incapacidade de se posicionar. Essa postura, tão comum entre certa intelectualidade, em Montello talvez não fosse assim tão ingênua, mas premeditada. De qualquer maneira, ao contrário de Henry Kissinger, Montello não permaneceu no debate de idéias. Morto em 2006, a discussão sobre sua obra desapareceu bem antes. Com essas Melhores crônicas, espera-se que seu nome volte à arena da qual jamais deveria ter saído.