O crítico

O trabalho de Wilson Martins buscava, acima de tudo, uma compreensão abrangente da cultura do Brasil
Wilson Martins. Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo
01/03/2010

Do ponto de vista técnico, Wilson Martins (1921-2010) faz parte da escola francesa de crítica, e teve em Albert Thibaudet (1874-1936) o seu mestre. Na esteira desta tradição, Wilson valorizava a historicidade do pensamento nacional, aí incluída a literatura. O espaço de tal prática era o jornal, onde Wilson Martins, à maneira de seus antecessores, como um Sérgio Milliet (1898-1966) ou um Álvaro Lins (1912-1970), exerceu uma forma de pensar intimamente relacionada com o movimento editorial do país. O crítico, neste formato, assumiu-se como um leitor seletivo da produção contemporânea, uma espécie de bibliotecário que arquivava nos anais da história um conjunto válido de títulos. E este é um outro aspecto que deve ser ressaltado na atuação deste paranaense: todos os livros lidos e comentados, mesmo quando sofriam as avaliações mais rigorosas, eram tidos pelo crítico como obras relevantes, que mereciam figurar entre as produções da inteligência nacional. Pois mais importante do que a sentença expedida pelo crítico era o seu papel de salvar da produção cada vez mais massificada um coletivo de obras que se destacaram.

O crítico assim visto dialogava com o passado, fazendo apostas em contemporâneos. Esta perspectiva histórica exigia dele uma disposição para ler o máximo da produção atual, sem deixar de considerar nosso patrimônio intelectual. Era em confronto com a tradição, que ele tão bem conhecia, e com os contemporâneos já na categoria de mestres, que Wilson Martins avaliava os lançamentos. Esta foi a regra da crítica literária nacional até meados do século 20, quando a Nova Crítica toma corpo entre nós, com o aumento da influência norte-americana. O pensamento nacional vai se deslocar de uma gramática de jornal para uma gramática universitária, e a análise de obras passa a se dar dentro de correntes de teorias (literárias, filosóficas, lingüísticas etc.), e não mais a partir da leitura extensiva das obras de criação.

Professor da Universidade Federal do Paraná (1952-1962), da Universidade de Kansas (1962), da Universidade de Wisconsin-Madison (1963-1965) e da Universidade de Nova York (1965-1991), Wilson Martins nunca se afastou da crítica de jornal nem de seu tema-maior, a inteligência brasileira. Seguiu sendo um crítico arquivista, interessado em acompanhar o fluxo das idéias no país.

Este modelo de crítico que nunca deixou a trincheira do jornal rendeu a Wilson Martins muita incompreensão. Foi acusado de conservador (e de fato o era, pois conservava a produção do país em suas coletâneas críticas), de ultrapassado (por dilatar uma influência francesa aposentada pelas escolas norte-americanas e por outras mais recentes da Europa), de pouco profundo (por não estender seus artigos breves e lapidares sobre os livros), de violento (por não medir palavras na hora de escancarar defeitos que ele julgava ver numa obra) e de obscurantista (por não reconhecer as sumidades construídas pelo marketing). Não obstante toda a fúria recair sobre ele, manteve-se inabalável em seu propósito inicial de ler toda a produção válida do país e tentar pensá-la como conjunto. Era isso a crítica semanal de Wilson Martins, uma ampliação de seu grande ensaio sobre o Brasil, a História da inteligência brasileira — onde ele acompanha a produção editorial do país ou sobre o país de 1500 a 1960. Seus volumes de crítica continuam este projeto até a sua morte. Por incrível que pareça, embora plagiados (principalmente em dissertações e teses), seus pontos de vista ainda não tiveram influência nos estudos universitários.

E isso é plenamente explicável. Nosso modelo de pensamento continua mantendo uma relação de dependência com os centros culturais, e boa parte da universidade brasileira paga royalties aos nomes estabilizados internacionalmente. O próprio método de estudo é contrário ao da crítica militante. O sentido de trânsito que prevalece na universidade é da teoria crítica para a produção criativa, enquanto Wilson Martins, fiel ao velho método francês, trabalhava numa perspectiva diametralmente inversa: partia da produção concreta do país para construir um painel, sem valorizar a idéia de progresso. Somos este país desde sempre. Mudaram-se os aspectos externos, mas nossa imagem de fundo continua paralisada. Sua crítica era focada na identidade nacional, uma identidade macunaímica, como Mário de Andrade tão bem representou — escancarar isso era algo muito incômodo.

Nesta dimensão exercida por Wilson Martins, prevaleciam alguns aspectos. Um deles é o deslocamento do crítico. Morando sempre fora dos centros nacionais do campo de poder (ou em Curitiba ou nos Estados Unidos), Wilson pôde manter uma independência bastante grande — claro que ela não era total. Como não precisava dos ganhos como crítico, pôde externar opiniões que eram altamente impopulares e perigosas, assumindo todos os riscos. Esta é outra imagem do crítico, a de alguém que está sempre na corda bamba, não apenas por não referendar as unanimidades da hora, mas principalmente por se expor em seus julgamentos, considerando obras e autores desconhecidos como valores literários e decretando como irrelevantes as vozes mais poderosas.

A sua coluna de crítica (iniciada em 1942) foi, portanto, um território independente da cultura brasileira, onde os autores se agigantavam ou se apequenavam. Muitos querem saber quais foram os grandes nomes descobertos pelo crítico, mas este método não estava voltado para a descoberta de talentos em botão. Buscava, isso sim, uma compreensão abrangente da cultura do país.

Assim, para o autor que ocupava a periferia do campo literário, Wilson Martins era uma oportunidade de atenção e de ter seu nome anexado à inteligência nacional. Sua coluna de crítica raramente refletia as posturas do jornal ou do editor, eram sempre intelectualmente assinadas por um crítico de vasta leitura e com idiossincrasias muito nítidas, como a valorização da legibilidade do texto. O fato é que a lógica da mídia não funcionava ali. Aquele era um espaço próprio, que ninguém conseguia pautar.

Toda a grandeza deste projeto vem de uma energia imensa, o que lhe permitiu ser o maior leitor da cultura nacional, e de uma adequação total ao ofício: ele era e queria ser unicamente crítico. Nunca se imaginou em outro papel, e mesmo o magistério foi para ele uma forma de independência financeira que patrocinou o seu projeto matinal: ler o maior número de obras de autores brasileiros. Não queria ser ficcionista ou poeta. Era crítico. Era o crítico.

A pergunta que se faz agora, quando ele infelizmente concluiu o seu trabalho, é: qual o nível de acerto de seus julgamentos? A resposta deverá ser dada pelas gerações de amanhã. A nós, resta apenas concluir que, com sua morte, aumentam os consensos sobre a produção contemporânea. Findou a voz que mais ousava discordar. E que mais discordou ao longo dos últimos 60 anos.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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