Há no livro de Rodrigo Garcia Lopes, Estúdio realidade, uma quarta e última seção de poemas, “Quarto fechado”, em que são recorrentes narrativas, situações ou imagens do submundo do crime e da investigação policial, proliferando-se quartos escuros, detetives e criminosos, corpos e testemunhas, thrillers, histórias de mistério e romance policial. Seção já destacada pelo poema que a integra e se reproduz na contracapa do livro, Quarto escuro, cujo primeiro verso lembra o título da obra: “O detetive avança pela desordem do estúdio”. A desordem do estúdio realidade vence, silenciosa, os esforços do detetive, e com ironia evoca, talvez, o repetido discurso crítico sobre os livros de Rodrigo, expresso pelo autor em depoimento no Memorial da América Latina, em 2002:
Sempre me incomodei com algumas críticas em relação ao meu trabalho, recriminando-me pela “falta de unidade” nos meus livros. Isso me irritou profundamente, porque não gosto de poetas que se aferram a um determinado “estilo” como um cão a seu osso. Há aí o risco da autoimitação: ficar refém de uma fórmula que deu certo, repetir um “estilo” que dá unidade e coesão aos poemas.
O campo semântico das narrativas policiais parece duplicar a relação entre o poema e o leitor, ainda mais que no texto que encerra o livro, 24 aforismos sobre poesia, o escritor se impõe como desafio “não cair numa metalinguagem barata”. Não se trata, portanto, de alegorias da leitura.
No caso de Quarto escuro, a desordem do espaço íntimo e pouco nítido compõe uma cena muda, em que, no entanto, a presença das coisas (mobília, folhas, telefone) angustia um detetive que pisa em falso: “A mobília está calada como testemunha./ Lá fora folhas se reviram, se estudam.// O telefone calado como um caramujo”. Mesmo assim o crime está prestes a se desvendar: sabemos que o criminoso está por perto, e a composição das estrofes em tercetos e períodos longos, em tom elevado, encaminha a narrativa para uma suposta revelação, uma viagem ou visão que extrapola a realidade. O detetive toma uma decisão surpreendente, parece que repete o gesto das coisas de se virarem sobre si próprias, como a espiral do caramujo: “O detetive deita e cai num sono profundo./ E a carta o tempo todo sobre o criado-mudo”.
O cenário aparentemente de crime vira de imediato o espaço íntimo do detetive, que investiga o próprio quarto, no qual, mesmo depois de um ano de trabalho, “todas as pistas/ Deram em becos sem saída e luto”. A carta roubada segue sobre o móvel que a emudece, o criado-mudo, ainda que esteja à vista o tempo todo. E o quarto é ele próprio uma biblioteca, “pequena floresta” cujo “verde é um código secreto”. As evidências do crime não se ocultam, mas, por algum motivo, talvez pelo sono ou pela exaustão do detetive, não se deixam ler. O crime não se soluciona. Possivelmente porque, como afirma o poema Quarto fechado (whodunit): “O criminoso era o poeta”.
Reconfiguração do mundo
Há uma poética formulada neste poema de Estúdio realidade que elabora à sua maneira a obra de Rodrigo Garcia Lopes. O corpo ainda pulsante, delirante do poema ganha sobrevida com o olhar do autor, a quem procura, e do leitor, testemunha do crime. O texto poético, em estado crítico, sob risco de morte, respira com a ajuda de aparelhos de leitura, dos quais depende sua sobrevivência. Ler é respirar, ou, conforme a gaga ou sufocada formulação de Adília Lopes: Aspirar ar. E os aparelhos de leitura, enquanto aparelhos respiradores, conectam-nos ao texto, injetam-lhe oxigênio; em troca, recebemos um gás poluente, expirado, substância escura que constitui a “matéria mental, entre palavra e mundo”, que define o espaço habitado pela poesia segundo Rodrigo.
Se o homem for um erro da natureza, a poesia será a sua errância. Seu espaço instável, “entre estar mudo e ser mundo”, é necessariamente espaço fundado pela violência, na medida em que, por um lado, arranca a mudez à fala, e por outro, arranca o mundo à linguagem. O mundo cortado em palavras que desafiam o silêncio trabalha, na poesia de Estúdio realidade, pela construção tanto de imagens cujo efeito é a desrealização do mundo (“Ninguém jamais descobriu/ Se o céu é um tipo de demência”) quanto daquelas cujo efeito é a proliferação do mundo (“Nesse exato momento nasce uma floresta em seus pés, Sibéria.// Meu nome é Multidão. Isso quer dizer que sou mais do que a soma das singularidades.// Exóticos esses óculos”).
O mesmo que vale para a referência ao mundo vale para a referência ao texto. Os poemas desenham um vasto campo de referências mais ou menos explícitas e surpreendentes, que volta e meia atuam em prol da reflexão do leitor sobre a leitura do poema, como na suposta alusão ao linguista Ferdinand de Saussure e sua concepção da palavra: “Um relâmpago é flagrado por seus ecos. Santo súbito.// Signo, sussure”. Assim é que a matéria mental inscreve o poema — e com ele o poeta e o leitor — numa aventura cognitiva que consiste na reconfiguração do mundo tensionado pelos limites dos sentidos da palavra.
Como tal aventura é, por definição, uma viagem ao desconhecido (conforme o poeta Maiakóvski afirmou diante do fiscal de rendas), de nada servem as fórmulas estilísticas ou os métodos de leitura. Ao incorporar sistematicamente à obra o mecanismo interno do dissenso, como o fizera Drummond na abertura contraditória de A rosa do povo, ao instituir esse mecanismo como procedimento de composição, de leitura, e como posicionamento no campo da poesia, Rodrigo Garcia Lopes atua por ampliar o desenho da poesia brasileira, cuja narrativa cisma em se polarizar historicamente contra a suposta “geleia geral” que configura essa cultura.
A força deste posicionamento se encontra, por um lado, numa maior abertura às tradições poéticas do mundo, ao desassociar poesia e literatura à construção da identidade nacional, e assim revalorizar os cânones nacionais constantemente e os poetas com obras de diversa orientação estética, independentemente de suas vinculações a vertentes ou tradições específicas da poesia. Por outro, no abarcamento das formas de poesia compreendidas negativamente, ou melhor, incompreendidas, já que se definem como enigma. O aforismo 16 do texto de Garcia Lopes que encerra Estúdio realidade é contundente e esclarecedor nesse ponto:
Como numa história de detetive, o poema, hoje, é um enigma. Seu crime começa já nas primeiras palavras. O poema nada mais é que uma seção de correlatos do sentido suspensos entre pistas falsas, frustrações de expectativas, que apontam inequivocamente para sua própria aparição & desaparição. O nome dessa luta invisível é o sentido.
Whodunit?
O poema em “situação de sítio”, para lembrar aqui a expressão da professora Iumna Maria Simon ao ler a poesia de Claudia Roquette-Pinto, refere-se, no caso de Garcia Lopes, a outra instância que não a referência. O sentido de que ele é capaz ao operar a composição de imagens, música e pensamento na sua feitura, é a marca de estranhamento (“whodunit?”) por meio do qual, enquanto matéria mental, o realismo literário pergunta: de onde vem, no Brasil ou em qualquer outra palavra que nomeie um lugar habitável, de onde vem essa linguagem não mais muda, ainda não mundo? Contra o tédio dos que procuram o Brasil ou a si próprio nos livros de poemas, o poeta convida: “Antes de ler meus poemas, gostaria de dizer que a poesia é uma espécie de vício irrecusável”.