O criador de mundos

Obra de Fernando Monteiro é um complexo e criativo universo literário
Fernando Monteiro, autor de “O grau Graumann”
01/08/2002

Qual a diferença entre a linguagem informal — usada por crianças, papos descontraídos, conversas de bares, bilhetes, ou seja, em situações da banalidade cotidiana — e a linguagem formal — dos tribunais, ritos religiosos, documentos, da literatura? Certamente há mais de uma resposta, mas, para avançarmos o texto esperançando chegar a uma conclusão antes dos cinco mil toques, mais espaços, respondo que é a estética.

Em se tratando de textos em linguagem formal, a preocupação estética, mais que o conteúdo, revela a função e a origem do trabalho. Sob esse ponto de vista, a literatura é contar uma história de modo estetizado (ficarei apenas nos romances e novelas, que é o que interessa neste momento).

Pois bem, aqui estou abrindo uma entrevista de Fernando Monteiro e falando em linguagem formal e informal. Antes que perguntem o motivo, eu começo a resposta dizendo que Fernando escreve seus romances, mais do que contando histórias, para revelar o que é o personagem. Para tanto, sua narrativa toma emprestado diversas formas da linguagem formal: ensaio, entrevista, reportagem, documentos de época, poemas épicos etc., por vezes em separado, por vezes costurados dentro de um único título, sendo que, neste último caso, também são utilizadas elipses que permitem a discussão dos conteúdos e formas apresentadas, tornando, desse modo, cada capítulo e subcapítulo textos independentes e, ao mesmo tempo, partes fundamentais da constituição lógica da obra.

É claro, muitos escritores utilizam as mesmas ferramentas de construção literária, mas Fernando Monteiro tem algo que fortalece, em muito, seu estilo. Para quem não sabe, Fernando foi um competente cineasta documentarista. Tal experiência explica muitas de suas escolhas no momento de conceber suas obras. Cada livro seu, mais que uma história bem contada, é um interessante trabalho de comprovação dos acontecimentos descritos. Fernando não apenas conta a história, mas também “prova” que tudo o que é revelado é fruto de pesquisa, e não invenção, obrigando, desse modo, cada um de seus romances a serem lidos como documentários reais baseados em provas ficcionais. Tal processo, em vários níveis de aprofundamento, repete-se em seus quatro romances: A cabeça no fundo do entulho, Aspades, Ets etc., A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro, O grau Graumann.

Cachorros comunicam-se, assim como tantos outros animais, incluindo aí o animal homem. No entanto, apenas este último tem a capacidade de nomear. Em uma divisão retirada de Eugen Rosenstock-Huessy, os cachorros, macacos etc. comunicam-se em um nível prenominal pois, apesar de se fazerem entender, não alcançaram a capacidade de nomear; diferentemente dos homens que nomeiam, sendo assim nominais. Uma terceira categoria seriam as crianças que, capazes de nomear, mas sem permissão/condição para fazê-lo livremente, utilizam pronomes — isto, aquilo, isso etc. –, por isso chamadas de pronominais.

Escritores, ao fazerem literatura, devem utilizar a linguagem formal de modo criativo para forjar enredos consistentes dentro do melhor resultado estético. Como artistas e profissionais, romancistas vivem a loucura de traçar com palavras, cortes consistentes da realidade, o que dá a eles mesmos, e a seus leitores, um parâmetro para a compreensão e, quiçá, avaliação e enriquecimento de suas existências. Porém, para que tal objetivo seja alcançado, o livro precisa corretamente nomear, conseguindo assim que a comunicação seja verdadeiramente rica dentro de sua correção. Seja a partir de um amplo vocabulário, seja pela nobre arte de criar imagens e conceitos e nomes, o escritor é juiz e júri de cada palavra usada na construção do romance.

Fernando Monteiro redige a primeira versão de seus livros de forma acelerada, sem correções ou censuras, trazendo para o texto a fluidez de seu raciocínio. Ao lê-lo, percebemos claramente tal recurso, e mais, somos tomados imediatamente pela riqueza de seu vocabulário. Feito um criativo poeta da língua solta, ou seja, um romancista esteta que trabalha a linguagem formal com gosto, além de ser um nomeador de amplos recursos, Fernando diferencia-se dos escritores da praça principalmente por ultrapassar a ordem do dia: “não importa a história, mas a maneira como é contada”, pois dá a seus enredos a veracidade da prova falsa, o luxo de uma estética da dúvida, no qual a simples existência do personagem já é todo o romance.

Acompanhe agora a conversa entre Fernando Monteiro, José Castello e a platéia do projeto Inventário das Sombras, promovido pelo Sesc de Curitiba.

LEIA ENTREVISTA COM FERNANDO MONTEIRO

O grau Graumann
Fernando Monteiro
Globo
222 págs.
Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho