Sob o título geral de O corvo, Paulo Henriques Brito reuniu em um volume duas traduções do poema (a de Machado de Assis e a de Fernando Pessoa), três ensaios de Edgar Allan Poe sobre poesia e verso (A filosofia da composição, A razão do verso e O princípio poético) e dois textos de sua autoria. No primeiro, intitulado Um raven e dois corvos, discute brevemente os méritos e deméritos das traduções do poema, analisando as primeiras estrofes de cada uma. No segundo, apresenta os três ensaios do poeta americano.
No comentário às traduções, conclui que a tradução de Pessoa é, de fato, como reivindicava o poeta português, “ritmicamente conforme o original”; já a de Machado deixaria escapar o principal, do ponto de vista da construção textual, pois o esquema métrico e estrófico adotado pelo tradutor não tem sobre o leitor o mesmo efeito hipnótico que o ritmo e as rimas do original.
A novidade do volume é trazer, junto com as traduções, além do bem conhecido texto sobre a composição do poema O corvo, dois outros sobre verso. Não que esses ensaios estivessem inéditos em português. Já tinham sido traduzidos por Oscar Mendes, nas Obras completas publicadas há muitos anos pela Editora Globo. Mas pôr esses textos de novo ao alcance do público, em renovada tradução, é algo a ser celebrado.
No entanto, o comentário sobre os ensaios de Poe traz um dado que precisa ser retificado, para ser justo com o poeta americano.
O problema é que esse dado responde pelo encaminhamento final do texto de Britto: aquele no qual, após vincular diretamente Poe a uma posição escravagista, segue por uma consideração sobre o contexto em que surgiu o New Criticism americano para daí sugerir que a defesa da autonomia estética tanto no autor de O corvo quanto nos new critics na verdade possa servir a uma causa escusa: “O esteticismo antiabolicionista de Poe e as origens segregacionistas do new criticism devem nos deixar atentos para a possibilidade de que a defesa de uma arte livre de imposições ideológicas esteja sendo utilizada para defender uma postura que nada tem de isenta”. E termina com um toque de atualidade não isento de algum senso de oportunidade: “Qualquer semelhança com alguns movimentos políticos do nosso tempo, que afirmam ser contra posturas ‘ideológicas’ em geral mas têm o claro objetivo de promover uma delas, não é mera coincidência”.
Descontada a brutalidade da insinuação de semelhança entre o refinamento crítico dos new critics e — o que parece ser o foco — a barbárie da “escola sem partido” ou do fascismo mal disfarçado instalado no poder no Brasil, há um erro histórico que precisa ser esclarecido.
É que a única razão dada no texto para rotular o pensamento de Poe como esteticismo antiabolicionista é a consideração de uma resenha de 1836, na qual Poe alegaria que “a vontade de Deus” era que “os negros deviam servir aos brancos” — frases transcritas no texto de Britto.
Ora, a questão aqui é simples: Poe nunca escreveu esse artigo. O autor é um conhecido antiabolicionista, um juiz chamado Beverley Tucker — a quem Poe inclusive, no seu papel de editor da revista, escreveu uma carta, desculpando-se por ter cortado um trecho do texto.
Britto foi levado ao erro provavelmente por confiar na atribuição — já contraditada e não mais aceita — feita por Harrison. Mas bastaria ter seguido o link no final da página da internet que refere para encontrar o desmentido da atribuição e o estado da arte hoje, no artigo de Joseph V. Ridgely, The authorship of the ‘Paulding-Drayton Review’.
Como diz Ridgely em determinado ponto do seu artigo, o caso não é saber se Poe teria afinidades ou mesmo se poderia ter escrito aquela resenha naqueles termos. A questão é que ele não a escreveu. Assim, qualquer ilação que se apoie apenas nela não faz sentido. Ainda mais uma como a que faz Britto, questionando tão radicalmente a defesa da autonomia da arte em Poe com base num texto apócrifo.
Outros aspectos
Haveria outros aspectos a considerar, como, por exemplo, a passagem em que comenta esta frase de Poe (na sua tradução): “O ritmo deve concordar ponto a ponto com o fluxo da leitura [o metro]. Essa perfeição nunca foi atingida, mas é sem dúvida atingível”. Britto comenta ironicamente: Poe afirmaria que nem Shakespeare nem Milton teriam atingido a perfeição. Ora, na tradução de Oscar Mendes e Milton Amado, essa mesma passagem diz: “Mas a perfeição do verso, no que concerne à melodia, consiste em nunca exigir um tal sacrifício, como aqui é exigido. A cadência deve concordar por inteiro com a leitura fluente. Esta perfeição não foi atingida no caso, mas é inquestionavelmente atingível”. E lendo-a nesse contexto, sobra pouca margem para extrapolações.
Da mesma forma, embora a apresentação que faz dos argumentos de Poe no texto A razão do verso destaque convincentemente vários pontos controversos da nova forma de abordagem, é sensível uma tendência a enfatizar passagens que permitam tratamento caricato. Uma dessas passagens é aquela na qual diz que Poe propôs, como “exemplo de perfeição métrica”, versos compostos por ele mesmo, “nos quais a regularidade métrica e a rigidez rímica ultrapassam os limites do ridículo”. Que são ridículos não resta dúvida, mas na sequência do ensaio de Poe fica claro seu valor meramente ilustrativo — são antes exemplo de relações matemáticas do que modelo de perfeição poética: “A estreiteza dos limites dentro dos quais o verso composto apenas de pés naturais teria sido confinado deve ter levado, depois de um intervalo muito breve, à tentativa, imediatamente aprovada, de empregar pés artificiais, ou seja, pés constituídos não por uma única palavra, e sim por duas, ou até mesmo três palavras, ou partes de palavras”.
Um dos mais estimulantes e inovadores estudos sobre esse texto foi escrito por Christopher Aruffo: Reconsidering Poe’s Rationale of Verse (Poe studies, vol. 44, 2011). E mesmo esse autor, que faz a leitura mais convincente e favorável do ensaio, registra que ele “é uma tirada viciosa, petulante e egoísta. Sua tese é ofuscada por uma arenga implacável contra a ignorância da autoridade escolástica. […] Com sua tese sufocada pela linguagem ácida e bombástica, ‘The Rationale of Verse’ apresenta-se como um método mal concebido e incorreto de escansão”. No entanto, por baixo dos defeitos e dos insultos de Poe, Aruffo descobre um tesouro, uma fonte de inspiração para os que pensam o verso moderno em inglês, e não só. Creio que foi esse movimento compreensivo, capaz de suplantar a antipatia gerada pelas incorreções e, principalmente, pelo estilo assertivo e algo brutal de Poe, que faltou a Paulo Henriques Britto na apresentação desse conjunto de ensaios ao público brasileiro.