O corpo em fragmentos

"Do tamanho de um grão", de N. Netta, explora a fragilidade e a busca pela autonomia feminina e pelo prazer em meio à dor
N. Netta, autora de “Do tamanho de um grão”
01/10/2025

O romance Do tamanho de um grão, de N. Netta, começa com a constatação do caráter feminino da narradora:

Nasci com dois pequenos órgãos amendoados, um em cada lado do ventre. Imagino-os saquinhos cobertos por uma pele muito fina. Antes dos 14 anos, meus ovários eram rosados e lisos.

Desde esse início, o leitor poderá observar que se trata de uma narrativa que privilegiará não a mulher como protagonista social, desejosa de igualdade, supremacia ou poder, mas como alguém possuidora de autoridade sobre seu corpo.

A natureza humana é a fragilidade, e dela não escapam mulher ou homem. Podemos dizer que a fragilidade a todos pertence. É certo que, no relacionamento sexual, muito discutido no livro, a mulher é quem corre o maior risco. Não digo apenas o risco de engravidar, mas, de todos os perigos a que estamos sujeitos, as mulheres os vivenciam em dobro.
Deixemos, entretanto, os riscos da espécie humana, cujas consequências pertencem a todos nós, e entremos no problema que a literatura nos apresenta, embora sempre o manifeste de modo disfarçado.

Sabemos que a linguagem não nos pode dizer tudo. Ao nos comunicarmos com uma ou mais pessoas, tanto na oralidade como na escrita, vários elementos estão acoplados ao que expressamos pelo idioma. Sem esses elementos, não seria possível o entendimento. Na obra literária, na medida em que esta não existe por si só, eles se potencializam. Vejamos: um texto joga com o novo, como a criação de novas possibilidades que muitas vezes julgamos impossível a língua nos oferecer.

Netta aposta nisso. Sua narrativa é fragmentada, talvez não por modismo ou herança de fórmulas eternamente vanguardistas, mas por ter certeza da insuficiência das palavras, estando elas soltas ou agrupadas em diversas sintaxes.

Ao iniciar o romance e descrever o aparelho reprodutor (digamos assim) feminino, não está em jogo apenas o aspecto físico da mulher, mas todo o conceito do feminino, levando-se em consideração não apenas o presente, mas o passado próximo ou distante. Embora quase não mencione as lutas feministas do século 20, ou fale apenas de uma de suas mentoras (Simone de Beauvoir), entende-se que não nos é possível qualquer tipo de inteireza: são as palavras e suas possibilidades as protagonistas de uma construção sempre por se fazer, tornando a metáfora como possibilidade de dizer o que todo idioma nos deixa em falta.

A narradora sofre o tempo todo: uma doença; uma gravidez na juventude; as dores da independência e do aborto; além de descrever de forma minuciosa o processo de interrupção da gravidez quando está prestes a ser submetida ao aborto; a fisionomia e os trejeitos do médico e das enfermeiras; os aparelhos a serem utilizados; os modos de dissimulação e fuga, caso essa seja necessária, pois a lei não permite tal prática.

A linguagem mostra-se bastante adequada ao assunto. A narradora, já de um ponto distante do acontecimento que deseja trazer a público (a narrativa não é apenas de uma fase da vida, mas do que tal fase provocou no restante dela), faz reflexões sobre o próprio passado e sobre um determinado fato que muito a marcou na juventude. Não é à toa, presente no início do romance, a dedicatória à Annie Ernaux e referências a O acontecimento.

Patamares poéticos
Poderíamos exemplificar, por meio de muitas passagens, a leveza na utilização da nossa língua portuguesa, que a autora sabe manejar e a faz atingir patamares poéticos, ainda que se expresse num registro que poderíamos chamar de informal culto:

Os ipês estavam floridos, disso não esqueci porque andei em calçadas cobertas de pétalas rosas derrubadas pelos ventos desencontrados do mês agourento; […] rodo minha mão na cara e ofereço-a a tapa; […] — O homi do saco vai te pegar, vai te pegar, vai te pegar.

Evocando o tema do romance, há várias questões sobre a relação da geração da autora – nascida nos anos 1960 – com a questão sexual. Onde uma adolescente podia encontrar referências ao sexo, ainda que cientificamente abordado, numa biblioteca pública no final dos anos 1970? O que havia disponível sobre o assunto para os jovens da época?
Outro ponto a se discutir é a questão ética sobre o relacionamento sexual, a gravidez e o aborto. Outra importante questão, quase sempre concernente à mulher, é a postura masculina diante da gravidez indesejada da companheira. Ela vai sozinha à clínica clandestina para abortar? Onde estará o namorado naquele crucial momento? Ao chegar à casa onde moram, ele ficará ao lado dela ou sairá para uma festa com os amigos? Então, a questão do livro não se resume à prática ou não do aborto envolvendo aspectos éticos ou religiosos, mas às relações no dia a dia e suas interferências nos relacionamentos.

Uma vez que vivemos num período de falso conservadorismo em vários países, a autora não faz o uso barato da questão. A prática ou não do aborto estaria acima das políticas populistas, tornando-se a opção de abortar uma questão de decisão pessoal por parte daquela a quem o corpo pertence.

Durante boa parte da narrativa, há idas e vindas no tempo, que, pouco a pouco, vão revelando a personalidade da narradora. Ela procura se relacionar com suas lembranças, suas perdas, com os modismos a que aderiu no começo da juventude e com as decisões que, no momento da enunciação, já se encontram analisadas pelo crivo da razão.

Netta não dá nome às pessoas, coloca-os com letras, como Dr. R, o namorado Y etc. Num romance, não importa se o narrado foi ou não vivido pela autora, o que vale é a capacidade de representação e de provocar o sentimento de cumplicidade do leitor. Além disso, o livro, ao trazer letras no lugar de nomes, revela não apenas o ocultamento das verdadeiras identidades, mas o caráter anônimo da vida nas grandes cidades. Ambientado em Belo Horizonte (MG), o romance, apesar da constante circulação dessas pessoas anônimas, apresenta o flanco lírico da cidade, descrevendo praças, construções, ruas, árvores e a solidão, cujo manto sempre envolve a narradora. A BH de N. Netta tem características provincianas e nos revela seu enamoramento pela cidade, ainda que não se saiba se narradora e autora são unas nesses amores.

Não sei se, no atual momento, encontramos outro livro capaz de dialogar com Do tamanho de um grão na forma e no conteúdo. A autora, a todo momento, sabe retratar, com sua prosa curta e simples, o sofrimento humano, sem renunciar ao prazer que a existência pode proporcionar à mulher, ainda que esta viva muitas vezes em situação desfavorável. O livro pode ser visto como uma ode do amor a si, como a tentativa de busca pelo prazer no ato de narrar e ainda como o relato da dificuldade do ser humano em superar a dor; acrescentando-se que descrever essa mesma dor não significa ser masoquista.

No final, a narradora descobre o grão e o que ele lhe significa. Mas, aqui, cabe ao leitor chegar até lá e refletir. Seria bom se fôssemos todos filósofos.

Do tamanho de um grão
N. Netta
Quixote
109 págs.
N. Netta
Vive e trabalha em Belo Horizonte (MG), onde nasceu. É mestra em Teoria da Literatura pela UFMG, especialista em Escrita Criativa e jornalista pela PUC Minas. Do tamanho de um grão é seu romance de estreia.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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