O moçambicano Mia Couto parece mais um personagem de si mesmo. Ex-integrante do partido da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), atualmente professor e biólogo em uma reserva natural de uma ilha africana, dedica-se também a construir uma literatura se não inovadora, pelo menos intrigante, em que extrapola o realismo mágico e delicia-se em desarrumar a linguagem.
Mas engana-se quem pensa que Mia, que se chama António e desde criança mudou o nome porque dizia ser um gato, abandonou a militância política em favor das letras. Por trás do fantástico, existe uma mão segura a nos conduzir de encontro a pessoas.
A literatura de Mia Couto é uma literatura de pessoas, e aí é que reside a sua magia. O ex-militante, que já escreveu carta aberta a George Bush criticando seu belicismo (http://brasil.indymedia.org/pt/blue/2003/03/251129.shtml), amadureceu intelectualmente e trocou a discussão de partidos e poderes pela de vidas. Por meio das vidas de seus personagens é que Mia nos guia pelos descaminhos do pós-guerra, em um lugar que tenta a reconstrução em meio à ocupação das tropas de “paz”, como o vilarejo de O último voo do flamingo, publicado no Brasil em português de Moçambique e por isso a falta de acento em vôo.
Para se compreender melhor a obra e o pensamento de Mia Couto é preciso situar cronologicamente seus trabalhos em relação à publicação original em seu país. Lançado somente agora no Brasil, O último voo… foi escrito em 2000. Ou seja, é anterior a Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de 2002, publicado aqui também pela Companhia em 2003.
Mais significativa ainda é a precocidade de O último voo… em relação a fatos como o 11 de Setembro e a Guerra do Iraque, já que a obra fala da reconstrução de um país após o conflito e a inexplicável explosão de soldados das forças da ONU. Explosão de soldados, como podemos acompanhar diariamente nos noticiários, já deixou de ser literatura fantástica.
Mesmo após as atrocidades do Iraque este romance de Mia é cheio de surpresas. Primeiro porque o cenário do pós-guerra é apenas o teatro de operações. A explosão dos capacetes azuis serve de pretexto para se aprofundar na relação entre o povo local e a força forasteira, já que as Nações Unidas enviam um investigador italiano para descobrir o motivo das mortes dos soldados, de quem sobram apenas os órgãos genitais.
A guerrilha assume cunho cultural quando o italiano passa a conviver com uma África bela e intrigante, guiado por um jovem tradutor negro. (“Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é este mundo daqui.”)
O romance ganha em humor e em humanidade, com personagens como o feiticeiro, a prostituta e a primeira-dama de Tizangara que, claro, é algum lugar perdido no mapa de Moçambique, mas um mapa redesenhado por Mia Couto.
Habilmente, o autor congela a trama em vários momentos e dá liberdade aos personagens, muitas vezes sugerindo uma técnica não tanto premeditada, em que a certo ponto os personagens vão crescendo, parece, à revelia dos desejos do escritor. O resultado até fica confuso enquanto o leitor se atém muito preso ao desfecho da trama, ou à expectativa de tal desfecho, mas torna-se suave quando se compreende que a intenção talvez fosse mesmo essa, libertar-se da trama e entender que os personagens, as pessoas, estão acima de qualquer trama, política ou belicosa. (“Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.”)
A inversão na ordem de publicação no Brasil destes dois romances não chega a atrapalhar suas leituras, pois não são obras panfletárias nem datadas. Mas uma reflexão sobre o conjunto dos dois trabalhos denota que há uma clara conexão entre as idéias.
Em Um rio chamado…, Mia aprofunda a relação das pessoas com sua terra, a começar pelo protagonista Mariano, que retorna à sua ilha para o enterro do avô. Lá chegando, encontra a fantástica situação do avô que teria morrido, mas que ainda emite sinais de vida, atrasando o sepultamento e causando um caos na família.
Aí Mia novamente desfila seus personagens, dando-lhes a liberdade total de conduzir o romance no seio da família. Até mesmo quando decidem enterrar o morto a trama mantém a discussão sobre a vida, pois a terra se fecha e impede o recebimento do corpo.
Em meio a toda essa confusão, Mia Couto fala por meio do personagem Juca Sabão uma de suas frases mais políticas, ainda que perfeitamente inserida no contexto do romance: “Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos”.
E se compararmos O último voo… e Um rio… ao primeiro romance de Mia Couto, Terra sonâmbula (Nova Fronteira,1995), percebemos que ele sempre foi um escritor à frente do tempo da guerra, ainda que viva num país que em julho comemora apenas o trigésimo ano de sua independência, e que no ano de publicação de Terra… (1993) era castigado por uma truculenta guerra civil.
Terra sonâmbula, como o título informa, busca o despertar para a reconstrução, para a esperança de um novo país. Por meio do personagem Muidinga, que encontra o diário de Kindzu e lê para seu tio, o autor incentiva a paixão pelo recomeço, pela aventura de uma vida nova. São pequenas histórias que, muito mais do que crítica social à inércia da revolução pela revolução, trazem a necessidade do sonho. E isso é arte literária.
Também é arte literária o que Mia faz com o texto e com a linguagem. O autor tem um trato especial com os dialetos regionais, incorporando-os ao texto e usando-os para criar palavras, daí as comparações exageradas a Guimarães Rosa, de quem Mia é admirador confesso.
Longe de ser um novo Guimarães, até porque suas criações de linguagem têm uma forte influência africana, Mia apresenta idéias interessantes e modernas. O “verbo” sozinhar-se, por exemplo, é maravilhoso. Simplifica de maneira bela uma formação como “ficar sozinho”. É uma facilitação da linguagem quando muitos tendem a complicá-la, principalmente na tentativa de falar bonito. No Brasil, por exemplo, a moda é a pompa, mas que vem se tornando ridícula pela falta de conhecimento da língua. Enquanto Mia nos apresenta ao sozinhar-se, aquele operador de telemarketing que nos liga sábado à tarde falaria “você vai ‘tar’ ficando sozinho”.
O mérito das criações de Mia também está na oralidade e na prosa poética sutilmente encaixada no texto e na linguagem, sem contar seus momentos de fábula. A própria história que dá título a O último voo… já vale a leitura:
Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. Minha mãe ficava calada, contemplando o voo. Enquanto não se extinguissem os longos pássaros ela não pronunciava palavra. Nem eu me podia mexer. Tudo, nesse momento, era sagrado. Já no desfalecer da luz minha mãe entoava, quase em surdina, uma canção que ela tirara de seu invento. Para ela, os flamingos eram eles que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado do mundo.
Também se percebe uma agradável poesia em pequenos trechos que fazem as aberturas de capítulos, poemas bem definidos, como se ali estivesse o poeta à espreita, exercitando um desejo contido de sempre fazer poesia, mas sem interferir muito na prosa:
Do que me lembro jamais eu falo.
Só me dá saudade o que nunca recordo.
Do que vale ter memória
se o que mais vivi
é o que nunca se passou?
Deixando as comparações com outros autores de lado, Mia Couto é uma grata surpresa pela poesia, pelas histórias e, principalmente, por conduzir-nos a outras possibilidades da língua portuguesa. O modo como trabalha com a linguagem é criativo e especial porque demonstra respeito pelos dialetos e pelas características da forma de comunicação de seus personagens, inspirados claramente em pessoas de verdade, apesar das histórias fantásticas.
Se a relação de Mia Couto com a linguagem é carinhosa, sua relação com o tempo parece ter um significado ainda mais especial. A certa altura de O último voo do flamingo, o narrador afirma que o corpo é feito de tempo (“Acabado o tempo que nos é devido, termina também o corpo”). É uma mensagem clara de que não há mais tempo a se perder. De que o corpo humano não é feito de osso, sangue, petróleo, ouro, camada de ozônio, fumaça que anuncia papa, cadeira no conselho de segurança da ONU, protocolo de Kyoto, ou mico-leão-da-cara-preta, mas apenas de tempo. E de que o sofrimento humano é o maior desperdício.