O coração é um músculo muito resiliente

Um passeio por obras de Woody Allen, Tolstói e Tchekhov para investigar a falta de sentido da vida e o sentido que a arte pode oferecer
Ilustração: Oliver Quinto
01/12/2025

“Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, diz a célebre abertura de Anna Kariênina. Teria sido depois de reler o romance de Tolstói que Woody Allen decidiu reescrever Hannah e suas irmãs, de 1986, seu roteiro mais literário. Na época, houve um movimento para que fosse o primeiro roteiro de cinema indicado ao Prêmio Pulitzer.

Outra referência russa importante para o filme é a peça As três irmãs, de Tchekhov, que retrata as angústias das irmãs Olga, Macha e Irina. Como o título sugere, Hannah (interpretada por Mia Farrow, num de seus melhores papéis) é a protagonista da família: ela é o ponto sólido em volta do qual as irmãs Holly (Dianne Wiest) e Lee (Barbara Hershey) orbitam. Holly tem um histórico de fracassos como atriz e agora pensa em abrir um serviço de buffet. Lee vive de seguro-desemprego e agora pensa em fazer aulas em Columbia, embora não saiba bem sobre o quê. Na peça de Tchekhov, a personagem Olga tem momentos tão generosos quanto os de Hannah. Já Macha é casada com um professor e se apaixona por outro homem, tal como ocorre com Lee, enquanto Irina passa por várias ocupações, infeliz em todas elas, um pouco como Holly.

Mas logo na primeira cena do filme de Allen descobrimos que a vida de Hannah está longe de ser perfeita. Em uma comemoração familiar do Dia de Ação de Graças, um homem observa uma mulher entre os demais convidados, enquanto faz um monólogo — um pensamento que podemos ouvir — declarando o seu amor. A confissão é de Elliot (Michael Caine), marido de Hannah, que está apaixonado por Lee, uma das cunhadas. A confusão está anunciada de saída.

O pai de Hannah toca piano, a mãe o acompanha cantando e crianças correm pela casa, enquanto uma enorme mesa é posta para o jantar. No meio da cena que poderia parecer harmoniosa, somos levados à cozinha e vemos Holly pedindo dinheiro emprestado à irmã, ao que Hannah responde: “Nós estamos falando de cocaína de novo?”. Com a habilidade de um maestro, Allen consegue costurar diálogos desconcertantes a cenas familiares. “Nós brindamos a ela e comemoramos com ela o seu sucesso”, diz o pai à mesa, referindo-se ao retorno de Hannah ao teatro, do qual ela havia se afastado para cuidar dos filhos pequenos. Os parentes também a colocam em um palco: Hannah, a mãe, filha, irmã, esposa e ex-esposa exemplar.

O filme termina na mesma época, retornando ao mesmo cenário, com dois anos de intervalo. São três jantares de Ação de Graças, três cenas-chave para o enredo. Entre eles, o filme é dividido em capítulos e acontece um pouco de tudo que é familiar ao universo de Allen: Elliot tem um caso com a cunhada, que vive com Frederick (Max von Sydow), seu ex-professor, responsável por algumas das falas mais memoráveis do filme — quando comenta a respeito de um programa na TV sobre Auschwitz.

Ele argumenta que a razão pela qual nunca conseguimos responder à questão “Como algo tão terrível pode ter acontecido?”, referindo-se ao Holocausto, seria porque estamos nos fazendo a pergunta errada. Sendo a humanidade como é, a pergunta correta, segundo ele, deveria ser: por que não aconteceu com mais frequência? Faz pensar também nos nossos dias.

Enquanto Frederick se posiciona num pedestal, de quem Lee seria devota, Elliot a presenteia com um livro de e. e. cummings, dizendo que um dos poemas o faz se lembrar dela (“nobody, not even the rain, has such small hands”). Em ambos os casos, Lee permanece como alvo perfeito para homens mais velhos e algo professorais. Frederick chega a dizer isso com todas as letras: quando Lee anuncia que vai deixá-lo, contra-argumenta que ela não pode fazer isso porque ele ainda não lhe ensinou tudo o que precisa aprender: “Quando você sair do ninho, quero que esteja pronta para enfrentar o mundo real”. Mas quando ela demonstra estar convicta de sua decisão e tenta confrontá-lo, é Frederick quem reage aos seus cuidados: “Não me paternalize!”. Woody Allen no seu melhor.

De maneira quase paralela, somos apresentados a Mickey, personagem de Allen, ex-marido de Hannah, com quem teve dois filhos através de inseminação artificial, pois seria praticamente estéril. Mickey é um produtor de TV hipocondríaco que suspeita ter um tumor no cérebro porque sofreu uma perda de audição no ouvido direito. Ou seria no esquerdo? Em determinada cena, nem ele parece saber. Enquanto aguarda os resultados, é confrontado pela ideia da morte de maneira imediata — “não depois, agora” — e passa por uma crise existencial profunda, que tenta preencher com a religião.

Tolstói
É aí que Tolstói volta a atravessar a história. Num trecho citado de Confissão, o escritor russo escreve:

Eu procurei em todas as áreas do conhecimento e não apenas falhei em encontrar qualquer resposta, mas também fui convencido de que todos que buscaram o conhecimento como eu também saíram sem resposta.

De modo semelhante, o personagem de Allen conclui que “milhões de livros escritos sobre todos os assuntos possíveis por todas essas mentes grandiosas, mas nenhum deles sabe nada a mais sobre as grandes questões da vida do que eu”. A referência é quase direta.

Com Mickey se aproximando de Holly, temos mais um triângulo amoroso em que Hannah ocupa uma das pontas. Hannah é perfeita, mas seu marido está apaixonado por sua irmã imperfeita, e seu ex-marido, por sua outra irmã, talvez ainda mais imperfeita.

Elliot nos diz que sua existência era vazia antes de conhecer a esposa. Mas está encantado pelo fato de que Lee é frágil e precisa dele. Sentir-se necessário parece mais importante, para ele, como para tantos homens, do que se sentir amado. A força de Hannah é quase uma ameaça tanto para Elliot como também para as irmãs, especialmente para Holly. E quando Hannah confronta Elliot pelo seu distanciamento, ele a acusa de não ter necessidades, de ser autossuficiente demais. Já Holly lhe diz que todos são gratos por tudo que a irmã faz pela família, ao que Hannah responde: são gratos, mas se ressentem.

De outro lado, em mais de uma cena, Hannah demonstra vulnerabilidade, como quando percebe a mudança de comportamento do marido e se sente abalada por isso. Após uma discussão, quando os dois estão deitados na cama, Elliot apaga a luz, a tela fica escura e Hannah diz: “Eu me sinto perdida”. O marido acende o abajur, abraça e conforta a esposa, mas, como espectadores, sabemos que a sensação de Hannah é legítima: Elliot está distante porque tinha um caso com a cunhada, rompido naquela noite contra a vontade dele. Hannah continua no escuro.

Como Elliot não consegue resolver a equação, dividido entre a esposa e a cunhada, a equação acaba sendo resolvida para ele. Cansada de esperar por uma decisão e culpada por enganar a irmã, Lee se envolve com outro professor (claro) e rompe o caso. Se, de imediato, ele parece sofrer, depois aceita com resignação, constatando que aquela paixão fugaz não passou de um equívoco. É o que o escutamos pensar em uma das últimas cenas do filme, que remete à cena de abertura:

Tudo que aconteceu entre nós parece mais e mais vago agora. Eu agi como um tolo. Não sei o que deu em mim. Aquela convicção de que eu não poderia viver sem você. Tudo que eu fiz com que a gente passasse. E Hannah, como disse uma vez, eu a amo muito mais do que me dava conta.

Quando assisti ao filme pela primeira vez, talvez fosse mais ingênua: acreditei que a constatação de Elliot sobre o amor que sentia pela esposa pudesse ser uma epifania genuína. Já da última vez que o revi, Elliot soou apenas acomodado, como quem segue o balanço do vento e tenta construir uma narrativa que o convença.

Na última festa de Ação de Graças, Mickey conversa com Holly, com quem agora está casado.

Estava dizendo ao seu pai o quanto é irônico… Eu costumava passar o Dia de Ação de Graças com Hannah e nunca pensei que poderia amar mais ninguém além dela. Agora, anos depois, você e eu estamos casados e estou completamente apaixonado. O coração é um músculo muito, muito resiliente. (…) Isso daria uma ótima história: um cara casa com uma irmã. Não dá certo. Então, anos mais tarde, acaba se casando com a outra irmã. O que poderia superar isso?

Holly emenda, já superando: “Mickey, estou grávida”.

A gravidez de Holly, sendo Mickey quase infértil, seria uma provocação final do cineasta? Será que a harmonia do casal, refletida num espelho, também apontaria para uma inversão, sugerindo que existem mentiras e segredos por trás de todas as famílias felizes? Ou a improvável gravidez seria apenas parte do assombro da vida, desafiando estatísticas?

Não temos essa resposta no filme, mas, roubando no jogo, encontrei uma declaração em que Allen admitiu que não teve a intenção de construir essa ambiguidade na cena final:

Ao longo de todo o filme, ele era incapaz de ter um bebê, e parecia que não poderia, mas com a mulher certa, ele pode. E isso estava ok. Isso era algo que eu senti que poderia dizer.

Numa cena anterior na casa dos pais de Hannah, quando ela é chamada para apartar uma briga, eles trocam insultos e acusações enquanto percorremos, junto com a câmera, alguns porta-retratos em cima do piano que mostram fotos da história do casal — momentos felizes que vêm acompanhados da voz de Hannah:

Ela foi tão bonita um dia, e ele, tão estonteante. Ambos tão cheios de promessas e esperanças que nunca se concretizaram. E as brigas e as infidelidades para se colocarem à prova e culparem um ao outro. É tão triste. Eles amavam a ideia de nos ter [os filhos]. Já nos criar não os interessava tanto. Mas é impossível usar isso contra eles. Eles não sabiam como fazer de outra maneira.

Eles não sabiam. Nós não sabemos. Ninguém pode saber. Esta é uma das passagens que considero mais tristes e bonitas do filme. Numa outra entrevista, perguntaram a Allen o que ele teria aprendido sobre relacionamentos depois de tantos filmes sobre o tema. Ele respondeu que não aprendeu nada, e que nada pode ser aprendido sobre essas questões — exatamente como Elliot diz a seu terapeuta: nenhuma sabedoria pode ser verdadeiramente útil ao coração.

Na peça de Tchekhov, não há redenção: as irmãs permanecem insatisfeitas, os sonhos em suspenso, a felicidade tão distante quanto a idealizada Moscou: “Ah, meu Deus, o tempo passa. Tudo passa. Nós passamos. Estamos aqui por tão pouco. Pouquíssimo. Vamos ser esquecidas. Nossos rostos vão ser esquecidos. Se a gente soubesse o porquê de tudo isso…”, diz Olga encerrando a história.

Allen afirmou que o talento de Tchekhov permitia que seus finais fossem miseráveis e, mesmo assim, as pessoas pudessem sentir algo de bom. Disse que, se tivesse o mesmo dom, teria terminado Hannah e suas irmãs de forma mais dramática. Não o tendo, precisou dar o braço a torcer aos estúdios. Em outros filmes, como Vicky Cristina Barcelona, de 2008, o cineasta conseguiu: apesar do tom alegre e solar, o final é desolador — ainda assim, teve uma recepção calorosa do público e se transformou em sucesso de bilheteria. Talvez a atmosfera do filme, que seduziu os espectadores de diferentes maneiras, tenha conseguido embaralhar a percepção final.

De todo modo, vamos combinar que, apesar da autoimagem depreciativa e de todas as polêmicas que o envolvem, falta de talento definitivamente nunca será um problema para Woody Allen.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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