A idéia de estudar o conto popular da minha região de origem, o Cariri cearense, remonta a 1979, quando desenvolvi um projeto de pesquisa para Mestrado na área de Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. O projeto teve como título “O conto popular no Cariri cearense: memória, valores, visão de mundo”.
Bem antes, entre 1970 e 1974, do Recife revisitei um Cariri por assim dizer “mítico”, realizando viagens das quais resultaram uma aproximação mais estreita com as manifestações populares regionais. Convivi mais de perto com o Reisado, a Lapinha, as incelenças, os benditos de romeiros e de penitentes, as cantigas de roda e as brincadeiras infantis, as adivinhações, os ternos de pífanos, os violeiros repentistas, os dançadores de coco, as cerâmicas e os versos de feira, lidos ou cantados, os dramas, as feiras, o mundo das botijas enterradas e das assombrações em noites de lua no cotidiano das pequenas cidades, vilas, sítios e pés-de-serra, onde o contador de histórias também se fazia presente. Não arranquei nenhuma botija, nem ressuscitei as mil e uma noites, mas um interesse assistemático pelo folclore exercitou-se aí.
Nos idos de 1980 a 1983 empreendi cinco viagens de coleta ao Cariri, quando fiz um levantamento de contadores, do seu repertório, depoimentos e histórias de vida, abrangendo um contato com 37 informantes e totalizando um corpus de 182 histórias. A pesquisa se concentrou no município de Crato, com incursões em Barbalha e Juazeiro do Norte. Farei um breve apanhado do meu trabalho, publicado em 1975 sob o título Conto popular e comunidade narrativa.
União de rios
Quando menino, no sítio Pai-Mané, onde nasci, e no sítio Altos, onde também morei, convivi com um célebre contador de histórias, originário de Ponta da Serra, daqueles que talvez só existiram antigamente, quando o mundo era redondo mas não globalizado nem virtualizado, e de quem, já em São Paulo, em 1975, colhi um primeiro depoimento. Seu nome de batismo era José Taveira Chato, mas, como de “chato” ele só tinha a cabeça, todos o conheciam por Cazuza. Era uma espécie de “cavaleiro andante” das histórias de Trancoso. Percorria os sítios e cidades como Nova Olinda, Santana do Cariri, Campos Sales, Cedro, Acopiara, Afonso Pena e mesmo fora do Ceará chegou a ser convidado por conhecidos e parentes para contar histórias à moda antiga, nos serões.
Pude depreender, pelo seu depoimento, que
na prática de contar histórias é fundamental para o contador o amor ao ofício, marca de sua verdade; que este ofício melhor pode exercer-se num ambiente próprio, minimamente receptivo; que uma noção de valor é incorporada pelo contador, enquanto portador e intérprete de um dado saber; que a fidelidade de uma memória só se sustenta na medida do seu exercício prático; e sobretudo que esta prática se vitaliza na relação imediata e direta com um público real.
Um segundo informante, José Herculano da Rocha, também já falecido, testemunhou para mim o costume de contar histórias como algo ligado a uma faixa maior de entretenimento, e o exemplo dado foi o da dança do coco, que ele também praticava. Da mesma maneira como a contação de histórias servia às debulhas, o coco, cantado e dançado, poderia servir para socar o piso de barro das casas de taipa recém construídas, na continuidade festiva de algum mutirão. Evidentemente, contar histórias e dançar coco são práticas que transcendem (ou transcendiam) debulhas e mutirões, conforme registrei:
O contador acontece espontaneamente na oportunidade hospitaleira dos arranchos e pernoites. É pretexto nas reuniões familiares, ponto e contraponto nas conversas em noites, com cadeiras nas calçadas. Pode ir à roça, animar o trabalho nas leiras e nos eitos. Acompanha o viajante nos caminhos e travessias. Insinua-se nos lugares do acalanto, e é palavra tecida e rendada no colo de avós, rendidas ao pedido, ao convite e à cumplicidade dos netos.
Um trabalho de reflexão conjunta, a partir de 1979, com Ruth Terra, conduziu-me à idéia de estudar o conto a partir de sua inserção numa comunidade narrativa, ou seja, dentro da relação que se estabelece entre o contador e o público enquanto unidade interdependente e dinâmica. Noutras palavras, procurando abarcar um processo de transmissão em que contador e público são objeto e sujeito mutuamente ativos e necessários. Segundo a especialista francesa Marie-Louise Tenèze, a raridade das obras enfocando a comunidade narrativa liga-se ao fato de que cada vez mais o conto perde o seu papel vivo nas reuniões coletivas de divertimento e de trabalho.
Pude observar a maneira como o conto é reelaborado por cada contador em sua circunstância e no seu contexto — o que denominei de adaptação exemplar —, e neste processo, verifica-se a reciprocidade entre os planos do real e do imaginário popular.
Neste sentido foi importante considerar, por exemplo, toda uma representação popular envolvendo a figura do Padre Cícero e sua presença no mundo do contador, como exemplo vivo de transfiguração imaginária ou de atualização da figura do herói. Ou seja, a idealização empreendida pelo povo sobre a figura do Padre Cícero o elevou à categoria de personagem, e mais do que um mero personagem, uma espécie de herói, processo de transfiguração e atualização que constitui tendência universal, de interesse no âmbito psicológico e mítico.
Por outro lado, a figura do Padre Cícero em muito contribuiu para o intenso fluxo migratório do Nordeste à região do Cariri cearense, o que, dentre outros aspectos, a torna por assim dizer área-síntese do Nordeste. No dizer de Antonio Candido, “no Cariri vieram desaguar muitos rios da criação popular”, o que condiz com a afirmação da “vocação do povo nordestino para a oralidade”, que também constatei. Se a palavra cariri significa calado, o caririense com o qual me deparei com certeza já havia soltado a língua.
Impressões obtidas a partir do contato com os primeiros informantes me levaram a um critério relativo de mapeamento, com a escolha de contadores considerando o reconhecimento dos mesmos dentro da própria comunidade.
Nos limites em que a pesquisa se deu, foi possível verificar que o sentido maior do conto se dá na instância viva do seu requisito cotidiano: em seu fluir no momento presente, na sua atualidade.
Articulação sócio-cultural
Segundo o autor russo Vladimir Propp, a ampla liberdade é inerente ao conto maravilhoso. Este autor estabeleceu a lei de permutabilidade de motivos e tipos, verificando que as partes constitutivas de um conto podem ser transpostas a outro sem mudança alguma, ao contrário de se considerar cada tema como independente em si mesmo. Esta compreensão está implícita no seguinte depoimento de Cirilo Pedro da Costa, nosso mestre de Maneiro-pau:
História de Trancoso não tem fim, não, é assim como uma rima de violeiro que vai longe. Se a gente quiser modifica ela pra frente, outra hora faz terminação. Se pode findar uma e emendar outra no meio. A história de Trancoso é uma só, mas naquela a gente bota toda a quadra que quer e vai longe.
Para Tenèze, o núcleo básico do conto orienta-se pela relação entre o herói e a situação difícil com a qual se confronta ao longo da ação. Para ela, seria este o critério constitutivo do gênero. Segundo Ruth Terra é no âmbito do conto maravilhoso que melhor se pode reconhecer a presença de uma estrutura lógica, inerente à narrativa popular como um todo. Nesta, as possibilidades de criação para o contador tradicional ou para o poeta popular se dão dentro da rotina cultural da sociedade na qual está inserido, não se podendo falar em arbitrariedade nesse domínio.
No livro A psicanálise dos contos de fadas, Bruno Bettelheim credita aos contos de fadas um interesse psicopedagógico, na medida em que auxiliaria a criança a lidar com a problemática psicológica do crescimento e da integração da sua personalidade. O conto de fadas, graças à ação de heróis (prototípicos), permitiria a explicitação de dificuldades inerentes à condição humana. Este autor chama a atenção para o fato de que nestes contos o mal é tão onipresente quanto a virtude, dualidade que coloca a questão moral e a luta para resolvê-la. A promoção da moralidade residiria não tanto no fato de a virtude prevalecer, mas no dado de ser o herói mais atraente para a criança, que se identificaria com ele em todas as suas lutas. Assim, o conteúdo inconsciente da criança se adequaria às fantasias conscientes, capacitando-a a lidar com este conteúdo, orientando-a para o futuro e para uma existência “mais satisfatoriamente independente”.
Numa outra linha de interpretação, Marie-Louise Von Franz parte do princípio de que os contos de fadas são a expressão mais pura e simples do inconsciente coletivo, representando de forma concisa e plena a própria realidade arquetípica e o processo de individuação. Como figura típica e arcaica, o herói representaria um modelo de ego funcionando de acordo com o Self ao resgatar, através das peripécias desenroladas em cada conto, um dano primordial cuja resolução, sempre feliz, viria satisfazer as exigências subjetivas daquela instância integradora da personalidade. Noutras palavras, o herói popular é o porta-voz e agente de uma sempre almejada vitória.
Para Walter Benjamin,
narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal maneira que o dom de narrá-las lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está constituída a rede em que se assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades, depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal.
O trabalho desenvolvido por Oswaldo Elias Xidieh em Narrativas pias populares é um exemplo importante, entre nós, de um estudo sistematizado de textos orais em articulação com o universo sócio-cultural nos quais se integram e são produzidos. Centrando-se basicamente num corpo de narrativas de cunho religioso secularizado, o trabalho de Xidieh tem o mérito de refletir sobre o “momento social em que elas se justificam e funcionam”. Não restringindo sua visão a um grupo estrito de narrativas pias, o autor destaca a organicidade presente no conjunto da produção popular oral, caracterizando-o como uma unidade. Estabelece a filiação dos textos às fontes religiosas e eruditas, registrando os valores sociais que neles se expressam e o modo como se acomodam “às vicissitudes da vida sócio-cultural que transcende o âmbito estritamente rural, caboclo e rústico”.
Para Xidieh, “o folclore não é um conjunto disparatado e descontínuo de valores e elementos de todos os tipos e nem separados cada um deles em compartimentos estanques”. Neste sentido, sua obra aponta caminhos novos para o estudo do conto popular em nosso meio, numa perspectiva fértil porque pautada na função que a literatura oral, como um todo, desempenha enquanto representação popular no seu exercício cotidiano.
Um ofício artesanal
Alguns informantes evocam antigos contadores de história na região, mas predomina a sua localização no ambiente doméstico e simples da comunidade. Isto não descaracterizaria uma “figura antropológica” do contador de histórias, mas permite enquadrá-la num âmbito onde todos compartilham, na medida das possibilidades, do interesse e do talento de cada um, de uma reserva de saber onde narrar é marca reconhecida.
O contador de histórias não representa uma categoria profissional à parte, embora seu ofício comporte exigências de um fazer artesanal: empenho, técnica, estilo, singularidade e talento na repetição. Mas o contador não lança o chapéu às moedas, como o faz o embolador, o tirador de versos de feira, o cantador de viola e outros brincantes nordestinos. A “história de Trancoso” é lazer e é arte, mas antes de tudo é um fazer dentro da própria vida. Dá-se e circula como um objeto sem preço, valor de estimação. Circulante como o anel que passa de mão em mão, o conto possui portadores. Não há quem o administre, senão o próprio público que o tenha cultivado. É matéria de tempo livre, e é cadência no espaço lúdico da ocupação. Próximo do sonho, é sentinela da vigília. Fantasia e imagem, é também veículo do real.
A personalidade do narrador se afirma e se expande na hora de contar. Mas não se pode separar o conto do narrador, do seu universo e do seu público. Mesmo a eleição do repertório e o jeito como é transmitido se define junto ao público. Os recursos mímicos, as inflexões, o traço de humor, a ênfase normativa, as sugestões de mistério ou a suspensão narrativa são efeitos da técnica e da versatilidade do contador. No entanto, sua oportunidade, pontuação e eficácia orientam-se através e em função de uma escuta participante.
Para Walter Benjamin, “adere à narrativa a marca de quem a narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro. No ato de narrar intervém a atividade da mão que, com os gestos aprendidos no trabalho, apóia de cem maneiras diferentes aquilo que se pronuncia”.
O processo narrativo não dilui a importância individual do contador. Relativiza-o, na medida em que este se torna capaz de organizar um saber, transformá-lo até, mas nunca transtorná-lo. Mais do que por mera vigilância, o público assiste o narrador e o respeita pela sua qualidade de doador e agente de uma transmissão. É aqui que se opera uma relação de vigilância coletiva.
O mundo do conto não poderia ser outro, senão o mundo mesmo do popular. Mundo sem pátria, ou além de qualquer pátria, porque fundado sobre a linguagem coletiva. Mundo diversificado, aparentemente fragmentário, mas fecundo em sua heterogeneidade de formas. Resistente em suas normas e valores, intercomunicante em seu imaginário, e versátil. O mundo do contador é sua história, riscada também nas histórias que aí se contam.
Achados e perdidos
A noção de uma quebra de continuidade na transmissão do conto popular é reconhecida por todos os informantes. Algo desta prática permanece viva, ainda, graças principalmente à memória dos velhos. Velhos que, muito em breve, não serão os de antigamente.
De um modo geral, constatei no campo pesquisado a quebra gradativa de um interesse maior pelo conto, o que se relaciona à emergência de novas linguagens bem como a mudanças sócio-econômicas que alteraram as condições propiciatórias da cultura de base oral. Novos recursos, como a TV e o rádio, são acolhidos com entusiasmo e há quem os incorpore positivamente.
À época da pesquisa, a TV estava presente em todas as cidades do Cariri e em alguns setores rurais beneficiados pela eletrificação, enquanto o rádio já havia sido incorporado, a partir de 1937, no formato de Serviço de Alto-Falantes, tendo sido inaugurada em 1951 a primeira rádio da região.
Cabe lembrar o desaparecimento de reuniões de trabalho propiciatórias à veiculação do conto, como as debulhas, hoje obsoletas, em virtude de mudanças nas técnicas agrícolas. Portanto, modificações culturais específicas, decorrentes da introdução de novas linguagens, respondem por mudanças no perfil regional que acarretam a defasagem na prática do contar. Verifiquei que as novas gerações estavam voltadas para outras formas de atração cultural, mas, apesar da perda de um lugar polarizador diante de um público outrora fiel, permanece viva a força narrativa do homem caririense.
Embora depoimentos venham registrar a carência de herdeiros da memória do conto e de sua prática, o contato com a população regional tornou patente que, extrapolando esta arte para além do âmbito estrito do conto, no seio de nossa gente se preza a narrativa, fato observável na forma discursiva, fluente e movimentada com que os informantes em geral ritmam os seus relatos.
Ficou explicitada, principalmente a partir da vertente exemplar, toda uma ordem de valores baseada na tradição, e apontada uma visão de mundo onde o plano da necessidade de sobrevivência — afinado ao senso de justiça — atua fortemente.
No seio da comunidade narrativa, ou melhor, no contexto onde o conto possa encontrar alguma forma de circulação, sua presença é formadora e universalizante, uma vez que incide sobre valores angulares retransportados ao cotidiano local em sintonia com o legado da tradição. O conto se transforma em cada cultura ou em cada contexto específico, mas dentro de uma determinada linha, preservando-se em seus valores básicos. Para que a transmissão se sustente, é necessário que garantias mínimas de sociabilidade se verifiquem. Mas se o contexto ideal para sua circulação já não existe, novas formas de expressão tendem a ser geradas. Quem não tem cachorro caça com gato e quem não tem gato entra sozinho no mato — ou seja, as narrativas se reinventam e se recontextualizam.