O conto brasileiro do século 21

As narrativas curtas da nova literatura nacional divididas em cinco grandes vertentes
Ilustração: Tereza Yamashita
01/05/2010

Nota introdutória
Para compor o presente ensaio me vali da minha experiência de crítico (em minha coluna no jornal Rascunho, de Curitiba, tenho sempre tratado de contos contemporâneos), de professor de Literatura Brasileira e, sobretudo, de antologista. Como alguns sabem, organizei, já nos anos 00, três antologias: Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea (São Paulo: Geração Editorial, 2006), Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Rio de Janeiro: Garamond, 2006) e Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (São Paulo: Geração Editorial, 2008). Constam dessas antologias 118 contos, que li atentamente. Convivi meses com eles, comentei-os com muitos dos seus autores. Um corpus tão amplo, envolvendo escritores dos mais expressivos de nossa literatura atual, alguns já consagrados (a exemplo de Luiz Vilela, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon), outros emergentes e ainda algumas promessas, não poderia, pelo menos em parte, ficar de fora de uma pesquisa séria sobre o conto brasileiro do século 21. Procuro, assim, não exclusivamente, já que utilizo várias outras referências, dialogar com esse corpus, atento em especial à força dos emergentes. No ensaio, comento 28 contos, distribuindo-os em cinco vertentes, que, penso, podem ser úteis como primeira tentativa de classificação do conto brasileiro do século 21. Se às vezes o ensaio beira o depoimento pessoal ou se o faz em tom de quase conversa, afastando-se da dicção acadêmica, isto não impede que, no corpo-a-corpo com os contos, o comentário crítico seja criterioso, objetivo, esforçando-se o máximo para interpretar uma primeira e indispensável camada da narrativa, o que poderá auxiliar o leitor comum ou o pesquisador. E ainda o professor — devidamente equipado com os contos aqui abordados — em sala de aula.

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No Brasil hoje há bons escritores, prosadores e poetas, sendo que, até onde tenho acompanhado, o conto tem sido o gênero de destaque. Não apareceu ainda o grande romancista ou o grande poeta, aquele autor que de alguma forma desestabiliza, que traz algo de impacto, com cara de novo. Parece-me que os dois últimos grandes romances brasileiros são Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e A festa, de Ivan Ângelo, ambos da década de 70. Não quero dizer com isso que não tenham surgido outras obras de qualidade. É no sentido mesmo dessa desestabilização formal de que falei. Mas cito aqui alguns bons romancistas mais recentes: Miguel Sanches Neto, André Sant’Anna, Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Paulo Lins, Patrícia Melo, Aleilton Fonseca, Ronaldo Correia de Brito, Chico Buarque, Maria Esther Maciel, Bernardo Carvalho, Altair Martins, Aldo Lopes de Araújo, Nelson de Oliveira, Ricardo Lísias e Beatriz Bracher (formalmente, Chico Buarque e Ruffato talvez sejam, do conjunto, os mais inquietos). Com a poesia acontece algo parecido. Os poetas mais velhos ainda dominam a cena. Caso especialmente de Ferreira Gullar e Manoel de Barros. Os contistas, por sua vez, estão num momento muito instigante. Nota-se uma variedade de formas no conto, que vai do minimalismo ao realismo brutal, passando pela vertente intimista (ainda nas pegadas de Clarice Lispector), pela narrativa fragmentária ou mesmo experimental. O conto tem narrado situações típicas do homem contemporâneo — como, por exemplo, a violência ou mesmo a penúria, a miséria brasileira — de forma aguda, veemente. Isto pode ser comprovado nas antologias ultimamente organizadas por mim, por Nelson de Oliveira e por Luiz Ruffato. Os contistas têm até mesmo se “aventurado”, e às vezes de forma bem original, a recriar autores consagrados de nossa literatura. É mesmo um desempenho formidável do gênero.

No que se refere aos escritores nordestinos: o Ciclo do Romance de 30 foi um acontecimento notável em nossa literatura, revelando autores como Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado. Eles renovaram o romance brasileiro, projetando o Modernismo para a problemática social. Creio que, atualmente, autores nordestinos como Antônio Torres, Francisco Dantas, Ronaldo Correia de Brito ou mesmo Aldo Lopes de Araújo conseguem manter um diálogo rico, não raro original, com essa tradição do nosso romance regionalista. Há autores com outros traços, a exemplo de José Nêumanne Pinto, com o romance O silêncio do delator, que retrata, de forma paródica, alguns ícones da cultura urbana e de massa da segunda metade do século 20. Outro exemplo, ainda inserido na tradição regionalista, mas com soluções diferentes, é a narrativa dialógica, intertextual, de Aleilton Fonseca, que resgata o universo e a oralidade de Guimarães Rosa (refiro-me ao romance Nhô-Guimarães) ou mesmo o imaginário e as teorias interpretativas de Canudos (no romance recente O pêndulo de Euclides). Cito ainda Homero Fonseca e seu romance Roliúde, que se relaciona com a tradição picaresca. Por outro lado, no Nordeste hoje há metrópoles, com os mesmos problemas de todas as metrópoles, e uma literatura nova, urbana, está surgindo forte ou mesmo, em certos casos, já se consolidou, tendo como bons exemplos as narrativas curtas de Ronaldo Correia de Brito, Antonio Carlos Viana, Tércia Montenegro, Marcelino Freire, Raimundo Carrero, Marilia Arnaud, Carlos Ribeiro, Nilto Maciel, Pedro Salgueiro, Luzilá Gonçalves, Suênio Campos de Lucena, Carlos Emílio Corrêa Lima, Jorge Pieiro, Carlos Gildemar Pontes, Ronaldo Monte, Wellington Pereira, Geraldo Maciel (falecido precocemente), Antonio Mariano, Arturo Gouveia, Lima Trindade, entre alguns outros. Ainda autores importantes, nessa direção, são W. J. Solha e Maria Valéria Rezende, que, sendo de outras regiões, há muito tempo vivem no Nordeste. Essa nova literatura urbana nordestina, por tratar de problemas parecidos com os dos grandes centros, não tem muita diferença da literatura produzida no Sudeste/Sul. Claro: há outros autores, aqui não citados, que estão fazendo literatura de qualidade em outros pontos do país. Como é o caso de Vera do Val, paulista radicada no Amazonas, ganhadora do Prêmio Jabuti de 2008 com o livro de contos Histórias do Rio Negro.

Disse, de início, que o conto tem sido o gênero de destaque em nossa literatura. Observo, nesse sentido, cinco vertentes principais do conto brasileiro do séc. 21: 1) a da violência ou brutalidade no espaço público e urbano; 2) a das relações privadas, na família ou no trabalho, em que aparecem indivíduos com valores degradados, com perversões e não raro em situações também de extrema violência, física ou psicológica; 3) a das narrativas fantásticas, na melhor tradição do realismo fantástico hispano-americano, às quais se podem juntar as de ficção científica e as de teor místico/macabro; 4) a dos relatos rurais, ainda em diálogo com a tradição regionalista; 5) a das obras metaficcionais ou de inspiração pós-moderna. O que une todas essas vertentes é o olhar cruel e irônico sobre as situações configuradas. O olhar cruel sobre a existência que os nossos melhores contistas herdaram de Machado de Assis.

É bom dizer, por outro lado, que às vezes num mesmo autor, numa mesma obra, coexistem duas ou mais dessas vertentes.

A seguir, tratarei mais detalhadamente das cinco vertentes, comentando contos e indicando autores que as representam.

1) a vertente da violência ou brutalidade no espaço público e urbano
Quando, no segundo semestre de 2002, ministrei para universitários (na UFPB) um curso sobre o conto brasileiro, percebi que os textos mais perversos, brutais, despertavam nos estudantes um enorme interesse. Talvez porque eu — que tenho admiração pelo elemento cruel do gênero — de algum modo influenciasse os alunos ao ler de forma mais enfática determinadas narrativas. Na ocasião, fizemos leituras comentadas de cerca de 30 contos de autores brasileiros da segunda metade do século 20 — Guimarães Rosa, Murilo Rubião, José J. Veiga, Moreira Campos, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, João Antônio, Lygia Fagundes Telles, Luiz Vilela e alguns autores da chamada Geração 90 (a que Nelson de Oliveira deu visibilidade, ao organizar — prestando um grande serviço ao conto recente — as antologias Geração 90: manuscritos de computador e Geração 90: os transgressores, que incluem nomes hoje já bem conhecidos, como Luiz Ruffato, Marcelo Mirisola, Marçal Aquino, Marcelino Freire — este já premiado com o Jabuti —, Cíntia Moscovich, Altair Martins — vencedor em 2009 do Prêmio São Paulo de Literatura/Autor Estreante/Romance —, André Sant’Anna e Ivana Arruda Leite, entre outros). O resultado daquele curso não poderia ser melhor — muitos dos estudantes disseram que passaram a gostar de contos depois de nossas leituras lentas, detidas, sempre em frescas manhãs de sábado. E foi a partir do curso que tive a idéia de organizar a coletânea Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea, lançada em 2006 e que se compõe, como o próprio título indica, de textos brutais, trazendo o choque do real.

Parece que a minha intuição (e também era algo não muito difícil de perceber àquela altura), ao ministrar um curso sobre contos violentos em 2002 e organizar a coletânea Contos cruéis em 2006, estava em boa medida correta, como diagnóstico não só da literatura, mas, de forma oblíqua, do cinema e mesmo de outras mídias contemporâneas. Na edição de O Estado de S. Paulo de 21 de outubro de 2007 — cinco anos, portanto, depois do curso que ministrei e um ano após o lançamento dos Contos cruéis — saiu uma entrevista de Luiz Zanin Oricchio com a professora Beatriz Jaguaribe, da UFRJ, que lançou pela Rocco O choque do real: estética, mídia e cultura. Neste livro, Beatriz Jaguaribe defende a tese de que ressurge com força um fenômeno: o cinema (sobretudo), a literatura e outras artes retomaram o realismo estético, ou o “choque do real”, como uma das manifestações mais importantes da cultura globalizada (a expressão “choque do real” é assim definida pela professora: “a utilização de estéticas realistas que visam a suscitar um efeito de espanto catártico no espectador ou leitor”). Seria esse o motivo de filmes como Cidade de Deus e especialmente Tropa de Elite fazerem tanto sucesso (Tropa de Elite, como todos sabem, gerou muita polêmica em torno da perspectiva narrativa adotada). Na entrevista são citados autores como Paulo Lins, Patrícia Melo e Marçal Aquino, além de Ferréz, como os principais representantes recentes da literatura brutal no Brasil. Concordo em parte.

Um conto como A cabeça, do mineiro Luiz Vilela, vale por toda uma série de textos de brutalidade, não só pela (mais que insólita) situação narrada, mas também por sua alta qualidade estética, notadamente a costura dos diálogos. A matriz narrativa dos (bons) autores citados são certamente os textos de Rubem Fonseca. Paulo Lins, Patrícia Melo, Marçal Aquino e Ferréz são — algo não muito difícil de perceber — epígonos do autor de A coleira do cão, Feliz Ano Novo, Passeio noturno e O cobrador, entre outras obras-primas da literatura brutal. Nos contos de Rubem Fonseca, que privilegia a primeira pessoa, vale especialmente a tessitura do narrador, o ponto de vista violento (e incrivelmente verossímil) adotado por ele. A cabeça, escrito em terceira pessoa, é um conto que, no que se refere à vertente violenta, ao que tudo indica, não tem matriz em nossa literatura. É original. E sua originalidade, ao invés do narrador, reside especialmente na profunda ironia dos diálogos. Isto é um achado de Vilela (e o diálogo é, certamente, um dos recursos mais notáveis desse autor — é só conferir, nesse sentido, a novela Bóris e Dóris, de 2006). Manhã quente de domingo. Uma rua de um bairro distante do centro. Aí é encontrada uma cabeça humana. Logo se juntam em torno dela alguns populares — “o homem de terno e gravata”, “o da bicicleta”, “o baixote”, “o gordo”, “o barbicha”, “a moça”, “a ruiva”, “dois meninos”… A cabeça do morto desconhecido é, de repente, identificada pela “moça” como sendo a de uma conhecida — “A Zuleide lá do salão”. Mas a sua amiga, a “ruiva”, rejeita a hipótese: “Que isso, menina? Você está é doida!”. O conto (exemplo primoroso, em certos passos, da chamada função fática), cujas falas vinham se tecendo em torno de questões como o odor dos defuntos, Deus, o homem, a vida (“Deus uma cagada, o homem uma cagada, a vida uma cagada”, resume em determinado momento um dos personagens), passa então a se desenvolver em torno da questão de gêneros, pois um dos curiosos ali presentes, “o gordo”, acredita que o crime envolveu adultério: “A mulher estava chifrando o cara, e aí ele — sssp!…” (“sssp!” é o gesto de cortar a cabeça, conforme indica o narrador). A reação da “ruiva”, preocupada com a reputação feminina, é intempestiva: “Como você pode falar uma coisa dessas sem saber de nada?”. Homens e mulheres, a partir daqui, tornam mais tensos os diálogos (em que é visível a carga machista e preconceituosa da fala dos homens). No final, os meninos ficam imaginando uma bola da cabeça. Um diz: “Dá vontade de dar um balão”; o outro emenda: “Aí eu corro lá pra frente e mato no peito”. A brutalidade de nossas relações está em tudo neste conto de Vilela. Está na cabeça cortada e atirada na rua. Nos diálogos, repito, beirando o deboche, e tão espontâneos, dos populares. No choque de uma visão masculina das coisas com uma visão feminina. Na forte ironia do narrador, que expõe tudo isso com uma sutileza tal, que termina nos assombrando e exigindo, inevitavelmente, uma reflexão acerca da natureza da violência que nos cerca. E a ironia, no caso, torna-se talvez a forma mais eficiente de abordagem de questão tão grave de um tempo.

O também mineiro André Sant’Anna, no conto A lei, cria um policial narrador que só vê o mundo pelo viés da força. Autodenominando-se “burro” (“eu sou muito burro”), e vendo na lei um poder opressor, nela se recosta, se sente protegido para assumir sua estupidez: “…nós, a polícia da sociedade, a lei, de vez em quando, pega um moleque desses, um desses adolescentes maconheiros, que usam drogas, e dá um sumiço neles, fica a noite inteira dando porrada…”. Estupidez que só abate o mais fraco: “a gente fica horas e mais horas (…) batendo na puta, rindo da cara da puta, enfiando coisas…”. Estupidez que certamente reflete a filosofia de vida do personagem, que alerta: “A gente tem que fazer os direitos humanos é com as próprias mão”. Flertando ainda com a metalinguagem, o conto de André Sant’Anna traz um personagem emblemático da violência policial brasileira.

É também amparados na lei que, no conto Santana Quemo-Quemo, do sergipano Antonio Carlos Viana, agentes públicos engravatados se voltam contra uma família faminta e indefesa. A voz severa de um deles se ergue para fazer cumprir a ordem de despejo: “Área de preservação ambiental, a ordem é derrubar tudo. (…) Aqui não pode fazer barraco. Deviam saber”. Metonímia da aspereza dos agentes é o trator e o som que ele emite ao triturar os barracos feitos de papelão e de pedaços de madeira podre: “crec, crec, crec, crec”. Sobra entre os escombros apenas a panela com a galinha que a irmã do narrador cozinhara e que tinha sido apanhada “num quintal longe dali”. E uma irônica ceia — em meio aos destroços, e para apetite tão intenso de tal família — é posta sob uma amendoeira. Uma narrativa cáustica sobre a penúria e a opressão de nossas periferias.

Pouca munição, muitos inimigos, do paulista Marçal Aquino, é um conto sobre a banalização da violência, remetendo ainda ao racismo. Ambrósio e Ambrosinho. Pai e filho. Gente de posses. Uma briga no estacionamento de um restaurante acaba resultando na morte de Ambrosinho por um garoto de nove anos. O negro Rodrigo, apelidado de Silêncio, guarda-costas de Ambrosinho, assiste a tudo sem intervir, por achar que a briga não vai render. E, “por falhar em serviço”, será perseguido pelo pai do morto. Silêncio esconde-se num hotel junto com um colega, também funcionário de Ambrosinho. Enquanto Silêncio cochila, seu colega fala ao telefone. E então o colega recebe um recado do advogado de Ambrósio: “Mate o preto”. Linguagem exata, frases curtas, o conto traz, em sua parte final, um diálogo (o momento do telefonema e o seguinte, quando Silêncio pergunta o que o advogado queria) que expõe a hesitação, a ambigüidade da natureza humana.

O tragicômico Da Paz, do pernambucano Marcelino Freire, desfere uma crítica cortante às passeatas “pela paz”, típicas de certa classe média, que procuram resolver o problema da violência mais por seus efeitos e menos por suas causas. Passeatas que, no fim, pressionam por políticas de segurança pública, por mais policiais na rua. O conto traz como narradora uma mulher pobre que, ressabiada com essas passeatas, termina expondo a dor de ter perdido o filho, supostamente assassinado (e eis a ironia da situação) pela polícia: “Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado de polícia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Uma dor. Dor. Dor. Dor.” Paz é, no conto, metonímia da própria passeata e o “Da Paz” do título, em sua ambigüidade, sugere o nome da protagonista. O conto de Marcelino — quase um texto para teatro — tem força ainda em sua oralidade e traz um ritmo que por vezes o aproxima de um poema.

No conto do cearense Nilto Maciel Punhalzinho cravado de ódio, revisto e reeditado pelo autor em 2009, todo um universo da miséria urbana do Nordeste, com seus tipos e ambientes soturnos, é deflagrado em apenas duas páginas. A protagonista, a anã Ana, é um pobre-diabo. Mora na periferia de Fortaleza — a periferia pobre e penumbrosa do Pirambu. Ana cria galinhas e, diariamente, se dirige à mercearia de Bodinho para comprar milho para suas criações. Solitária, humilde das humildes criaturas, foi ficando áspera com a vida — daí armazenar “todos os ódios do Pirambu”. Um dia, cedo da tarde, sofre uma investida (um estupro, com a anuência de Bodinho, presente no ato) do cafajeste Pêu, um tipo bebedor, com o qual ela no passado “experimentou as primeiras dores” do sexo, e que, ao reencontrá-la na pequena e suja mercearia (“salpicada de escarros” e onde zunem “moscas alvoroçadas” e “pegajosas”), arreganha “os dentes podres”. Ana, nesse dia da mais cruel humilhação, do mais terrível rebaixamento, crava na virilha de Pêu um “punhalzinho enferrujado e cheio de ódio”.

O sorriso de brinquedo, do também cearense Carlos Gildemar Pontes, é um conto impiedoso, na linha minimalista do gênero, sobre a violência que decorre da disputa, entre mendigos, por “sobejos de valor” de um lixão: “Lá nos viadutos fizeram a partilha. Quero a boneca pra minha neta. Que nada, ela é minha! Sem conversa o chefe saltou sobre o da boneca e dividiu sua cara ao meio com uma giletada. O sangue quente nos dentes… Todos sacaram suas giletes e retocaram uns aos outros. O velho barrigudo segurava a torneira da jugular”. A boneca é ícone da inocência de uma menina de rua (a “neta”, no caso), que passa a pedir esmolas num farol e que, no fim, já desperta o desejo de um adulto: “O sujeito do outro lado da rua tem planos para a menina”.

Ilustração: Tereza Yamashita

 

2) a vertente das relações privadas, na família ou no trabalho, em que aparecem indivíduos com valores degradados, com perversões e não raro em situações também de extrema violência, física ou psicológica
O conto contemporâneo, por outro lado, não se fixa apenas no espaço público — volta-se, de forma aguda, para as relações privadas, na família ou no trabalho. Relações em que por vezes aparecem protagonistas pervertidos ou mesmo violentos. Quatro exemplos retirados de Dalton Trevisan, Tércia Montenegro, Marilia Arnaud e Altair Martins. Primeiro, uma nota interessante. A Folha de S. Paulo de 23 de outubro de 2005 noticiou: pesquisa coordenada pela professora de Literatura Brasileira Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, revela: “Os personagens dos romances brasileiros contemporâneos são homens, de classe média e moram em cidades, e negros, mulheres, velhos e pobres têm pouca ou nenhuma voz. Em números: 62,1% dos personagens são homens; 79,8% dos personagens são brancos (contra 7,9% negros e 6,1% mestiços); 73,5% dos personagens negros são pobres”. O professor da USP Alcides Villaça questionou a validade da pesquisa dizendo: “Eu ficaria espantado se o resultado tivesse sido outro”. Disse ainda: “Se a literatura tivesse sido, desde o início, espelho das virtudes desejáveis, não se teria recomendado a expulsão dos poetas da República. E os estudos literários se organizariam como um ramo positivamente exemplar da pedagogia”. Bom, com todo respeito, eu discordo do ponto de vista do professor. Na minha opinião, a pesquisa da professora da UnB é bastante válida — é um termômetro que avalia ideologicamente (e por que não?) a posição de nossos narradores contemporâneos. Talvez o recorte da pesquisa, restringindo-se a romances publicados entre 1990 e 2004, é que seja um pouco problemático, haja vista, por exemplo, o grande impulso do conto recentemente. Um conto — e, é claro, estou falando o óbvio — pode ser mais significativo do que um romance. Pode ser um “resumo implacável de uma certa condição humana” ou mesmo um “símbolo candente de uma ordem social ou histórica”, conforme Julio Cortázar. Quer um exemplo de contista que poderia perfeitamente entrar na pesquisa da professora e ficar ao lado de Paulo Lins (Regina Dalcastagnè afirma que a partir de Cidade de Deus houve “uma preocupação dos novos autores em trazer personagens que estavam à margem da sociedade. Ele [o romance do escritor carioca] abriu algumas frentes que ainda não estão completamente preenchidas”)? Quer um exemplo? O paranaense Dalton Trevisan e seu conto Maria, sua criada, que abre o livro Rita Ritinha Ritona. O conto é narrado do ponto de vista de uma empregada doméstica negra, que, saindo do Nordeste (nasceu num mocambo do Recife), vai parar no Rio de Janeiro e, depois, em Curitiba. A protagonista, Maria das Graças, tem muita personalidade. Padece horrores: mora em várias residências, é estuprada, mãe solteira, e chega a dormir no chão de uma sacada. Mas, decidida, enfrenta todas as dificuldades, chegando, com o dinheiro que guarda (“tinha sempre o meu dinheirinho”), a pôr a filha mais nova na Universidade (consegue também uma bolsa de estudo para a mais velha, que termina se casando com um dentista). Se os nossos romancistas recentes “representam de forma estereotipada as classes sociais e étnicas menos privilegiadas”, como indica logo no início a matéria da Folha, eu diria que um contista como Dalton Trevisan navega contra essa corrente. Maria das Graças (que em certos momentos lembra a Mocinha do conto Viagem a Petrópolis, de Clarice Lispector), mesmo na sua penúria, talvez seja uma das representações mais fortes e afirmativas do negro na literatura brasileira contemporânea.

Também no campo das (degeneradas) relações privadas e familiares, registro um conto de valor de Tércia Montenegro. Tércia, ao vencer em 2000, com o livro Linha férrea, o 1o Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela revista Cult, se consolidou como uma de nossas principais contistas. Não pelo prêmio em si, que certamente foi muito importante para a cearense de Fortaleza, mas pelo valor mesmo do trabalho da escritora. O conto que dá título ao seu livro é bem elaborado: zelo, amargor, decadência, cobiça, morte — tudo misturado numa narrativa de pouco mais de duas páginas. São dois personagens: um velho tetraplégico e um adolescente. O velho, “estranha carcaça”, braços e pernas “inúteis”, “olhares cheios de fúria”, dá ordens constantes, “em voz alta”, ao adolescente, um filho adotivo (conhece-o criança, “magro e sujo”, próximo a uma ferrovia). O velho, “cabeça aflita” e “corpo indiferente”, possui uma fortuna em dinheiro e terras, mas não tem herdeiros. O adolescente, que faz a comida, a barba e dá banho no outro, se sente “distante da velhice”. Cuidando do pai, está preso, impedido, de certo modo, de ir e vir. O velho vê no rapaz tudo aquilo que não pode mais ter, a juventude e a saúde, a vida pela frente e a possibilidade de desfrutá-la. Daí a raiva, a rispidez com o rapaz, que, no entanto, calado, cumpre com suas obrigações: “Escovava os dentes do boneco de carne, penteava o cabelo escasso”. E um curioso pacto se estabelece. Para manter o jovem ao seu lado na casa (de jardim “quase morto, repleto de folhas secas”), para ter a proteção do rapaz, o velho usa de um artifício: acende-lhe a cobiça. Assim: “Certa vez mesmo disse o valor de seu testamento, incentivou o filho a falar, e foi das poucas vezes em que o rapaz conversou com ele. Os olhos então ficaram alegres — o seu menino fazia planos, ia comprar um carro belíssimo, hein? E uma fazenda, que tal? O dinheiro dá e sobra. Fazendona cheia de bichos. E viagens — poderia viajar para onde quisesse, sair daquele fim-de-mundo. (…) O rapaz chegou a rir, excitado pelos projetos. Dava palmadinhas na coxa do velho, que também se exaltava, esticando o pescoço. Ainda falaram de bebidas e mulheres, parecendo antigos companheiros de bar, até que o homem tossiu uma, duas vezes — e se calou. Depois o olho ficou novamente sério, a voz agravou-se: — Mas isso tudo, eu lhe digo, só depois da minha morte. Até lá, você fica comigo, é sua obrigação”. O velho aqui, portanto, está propondo: você cuida de mim, nesses dias que me restam, e terá como garantia à frente usufruir de minha fortuna. Ou seja, oferece um prazer, mas prorroga-o. Não permite o gozo que a ele não é possível. O menino, despertados os desejos de posse (“dinheiro, terras, viagens — por que o velho foi falar”), não resiste ao passar lento dos dias do outro. De protetor passa a assassino: uma noite, amordaça o pai, carrega-o na cadeira de rodas e o deita na linha férrea para ser esmagado pelo trem. Um texto certamente rico em nuances humanas, denso, cruel, como parece ser próprio do olhar dos bons contistas. Um índice inventivo da narrativa: a coluna do velho, diz o médico mostrando o raio-X após o desastre, parecia uma “linha férrea desativada”. A mesma linha férrea perto da qual o velho conhecera o menino — e onde, afinal, ocorre o assassinato.

Outra contista que vem explorando essa vertente das relações familiares decaídas é a paraibana Marilia Arnaud (entre outras coletâneas, ela integrou Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, preparada por Luiz Ruffato). A ficção adulta feita com protagonista adolescente é sempre muito difícil, sobretudo se o adolescente é o próprio narrador da história. Tudo tem que ser bem recortado, medido, para evitar a confusão com a ficção infanto-juvenil. Em O livro dos afetos, Marilia Arnaud produziu uma peça de muita qualidade. Falo de Nem as estrelas são para sempre, de pronto recomenda pelo orelhista do livro, Luiz Ruffato. Narrado do ponto de vista de um garoto de 13 anos, o conto traduz o temperamento de alguém tomado por uma tristeza terrível, decorrente, por um lado, pelo sofrimento da mãe moribunda e, por outro, pelo pavor que lhe provoca a figura paterna. Um pai rigoroso, ríspido, reservado: “Não sei se é possível um pai não gostar nem um pouco de um filho”. Um conto sobre relações humanas difíceis, danosas ao indivíduo, mas inteiramente insufladas pelos próprios códigos familiares. É no silêncio que o garoto — “apático” para o pai, um corretor de imóveis — tece sua tristeza, narrando para tentar compreender o que se passa em torno dele, ou entre ele, a mãe cancerosa, o pai perverso e a tia dedicada (veio, com a doença da irmã, para ajudar a família). Tudo para o garoto, no que se refere à mãe, ao pai e à tia (sobretudo a estes dois últimos), é cisma, suspeita. Tudo intolerável de tão insondável. O dia mais triste para o garoto é aquele em que descobre que o pai tem um caso com a tia: “Meu pai tentava abraçá-la, mas ela o empurrava e balançava a cabeça, sem falar nada. Ele dizia não ter culpa, que aquelas coisas, obra e graça do destino, aconteciam, que não podia mais viver sem ela, sem seu amor, que o que estava sentindo era mais forte que ele, e que Mamãe não precisava ficar sabendo, que não iria saber nunca, que ela, Tia Corina, podia confiar nele”. O garoto avalia o tempo todo, através de uma voz tensa, todos os truques de convivência dos membros da família. Para ele, é muito pantanoso o mundo dos adultos — e padece por isso. Pena por não entender as coisas como elas são. Interroga-as, mas, impotente, não as alcança: “São tantos os porquês! Quero continuar acreditando que quando eu crescer vou ter todas as respostas que preciso, embora Mamãe, que é sabida demais, tenha me dito que isso não será possível, pois, à medida que a gente vai crescendo, e depois envelhecendo, algumas respostas vão dando o ar da sua graça, mas também outras interrogações, algumas maiores e mais difíceis, vão surgindo”. O garoto rola na existência como quem patina em pedregulhos. Sente, já forte, ferina, a dor de viver. Contudo, uma coisa parece precisa, palpável, para ele: “Esse porquê, da paixão secreta de meu pai por Tia Corina, é tão grande e perigoso quanto o da doença de Mamãe”. Eis a chave do conto. Um texto bem montado, em que dor e desejo, dedicação e desconfiança tecem o principal da trama.

O mar, no living, do gaúcho Altair Martins, é a narrativa de um rito familiar às avessas. O conto flagra uma situação que, de leve, por sua própria natureza, se faz pesada, opressiva: o aniversário de uma menina acontece diante de um avô aborrecido, que se isola para não bater de frente com o genro: “O avô (…) encontrou uma poltrona magra de frente para o mar que, naquele momento da tarde, acenava espumas brancas. Dali viu sua mulher se divertir com as duas meninas. Ele não. E por isso, sólido de silêncio, virou os olhos para detê-los fixamente no horizonte”. Um clima de amargura atravessa todo o conto, em que, no fim, o horizonte rubro e calmo contrapõe-se ao clima difícil da família.

Ilustração: Tereza Yamashita

3) a vertente das narrativas fantásticas, na melhor tradição do realismo fantástico hispano-americano, às quais se podem juntar as de ficção científica e as de teor místico/macabro
Talvez nunca tenha tido muito êxito, entre nós, o conto macabro. Suas fórmulas soam batidas, pouco férteis. Mas, na mão de um bom escritor, podem render. Embora contendo pouca coisa de novo, de inventivo, o longo conto O vôo da madrugada (o livro com este título obteve o Prêmio Jabuti/2004), do carioca Sérgio Sant’Anna, é bom, tem fôlego, poesia, tensão, densidade. E também, ao final, um desfecho surpreendente, isso após prender o tempo todo a atenção do leitor, como cabe ao bom conto, revelando um autor com pleno domínio da técnica. São muito bem tecidos os planos do real e do insólito, uma vez que se trata de uma narrativa fantástica (isto se dermos crédito à informação final de que o protagonista, também narrador da história, já de volta para o seu apartamento em São Paulo, é na verdade um “deles”, ou seja, um dos mortos no acidente aéreo em Roraima). Mais uma narrativa póstuma, nas pegadas do Machado de Brás Cubas (em Sérgio, no entanto, o roteiro é bem diverso, já que seu conto não deixa de ter como objetivo final — e estou pensando na revelação do desfecho — atemorizar o leitor; além disso, há um apego decisivo às soluções de sempre do gênero suspense e mistério). No conto, chama primeiro a atenção o aborrecimento, a natureza entediada do protagonista. O enfado, provocado pelos permanentes deslocamentos, pelas viagens a serviço da empresa onde trabalha, é inicialmente a sua principal marca. Um tipo, “de vida errante e burocrática”, que detesta o seu cotidiano “árido” na cidade de São Paulo. Mas, estando em Boa Vista e antecipando a passagem para pegar um vôo extra para São Paulo no qual estarão os parentes e os corpos das vítimas de um desastre aéreo (repito que, só ao final do conto, ficamos sabendo que o protagonista-narrador é uma das vítimas do acidente), não poupa palavras aborrecidas e, mesmo, preconceituosas, contra o lugar: o hotel Viajante, onde fica hospedado, tem um “velho e empoeirado condicionador de ar”; perto do hotel, um bordel miserável (como tantos, em toda parte do país) lhe chama a atenção por ostentar o “nome ridículo de Dancing Nights”; o bordel e um beco próximo, onde avista uma adolescente ainda “impúbere”, e a quem deseja, mobilizam a sua “parte nefasta”; Boa Vista é apontada como uma “cidade perdida nos confins mais atrasados”; seu aeroporto, cuja estrada é “esburacada”, não passa “de um grande galpão e uma pista de pouso”. O protagonista de Sérgio repele as imagens do país real e pobre. E por quê? É que a visão de mundo do personagem remete à de um tipo metropolitano, da classe média, buscando em tudo o conforto, e que pensa que o Brasil é apenas aquele dos grandes centros. Um tipo que, com a cabeça no Primeiro Mundo, tenta desconhecer ou ser indiferente às mazelas do Terceiro. Tenta desconhecer ou ser indiferente ao Brasil amazônico, sertanejo; enfim, ao Brasil atrasado. A alienação do protagonista de Sérgio, a sua perspectiva, até certo ponto, de estrangeiro na própria terra, soa deslocada, mas é muito atual, e lhe dá densidade, consistência. O encontro do protagonista com a moça (encontro de dois mortos, já que ela está também “entre eles”, entre os mortos no acidente), na penumbra da madrugada, durante o vôo, é descrito com leveza e poesia: “Abri dois botões do seu vestido e tocava de leve os seus seios, encobertos pelos seus cabelos longos, negros e lisos que ela deixou cair para a frente — como para nos ocultar (…)”. A história de O vôo da madrugada, em si, como indiquei, parece trazer mesmo pouca novidade (para um autor inquieto, com uma trajetória um tanto experimental). Mas a linguagem de Sérgio, madura, prazerosa de ler, rítmica, o coloca entre os bons autores que despontaram há algumas décadas atrás e que prosseguem produzindo literatura de qualidade.

O dia dos prodígios, do paulista Nelson de Oliveira, na linha da investigação filosófica, da perquirição da mentalidade judaico-cristã, está entre os principais contos brasileiros recentes. A protagonista é uma mulher rejeitada e ressentida com Jesus Cristo, pois queria integrar o grupo dos apóstolos. A apóstola que não conseguiu ser assiste à última ceia “dos arredores”, de longe, achando-se a 13a discípula. Inquieta, intensa, considera-se potencialmente traidora, se não tivesse existido Judas. Moldada entre o feminino e o masculino (daí a ambigüidade aparente da construção da personagem), ela blasfema contra Deus por não lhe obter revelações. Diz, em seu diálogo ininterrupto com um interlocutor (um viajante) que nunca se manifesta, tratar da “vida e da alma”. Marcada por profunda oralidade, a narrativa vai se desenhando ainda em torno da figura do “filho de Zebedeu”, que é o apóstolo João, seqüestrado e torturado pela mulher (ela lhe rouba o dom de enxergar o futuro). Há um aproveitamento permanente do duplo na construção das personagens da mulher e do “filho de Zebedeu”. A mulher não blasfema só contra Deus, mas ainda contra o futuro (com “os desastres mais estupendos”) da humanidade. As blasfêmias contra Deus vêm na forma de interrogações ou juízos de valor: “do que é que Deus tem medo? de que ele tanto se esconde?”; “Deus não é tão onipresente quanto se imagina”. Vêm ainda nas acusações às “traquinagens de Deus”. No conto, o Cristo que aparece é humanizado, carnal: viveu os “clamores da carne” e foi “castrado antes de ser crucificado”. A mulher, na sua inquietude e impetuosidade, se considera conhecedora dos “vícios e virtudes” de Deus. Daí a invisibilidade/“medo” de Deus ser também questionada. Quanto a Cristo? Espanta a mulher a “determinação com que defendia os interesses de Deus”. Um conto que desconstrói/inverte parodicamente um modelo consagrado, arquetípico, de mentalidade. Agudo, espécie de desabafo bíblico, faz o leitor pensar.

O também paulista Marcelo Mirisola, no conto Sobre os ombros dourados da felicidade, tece uma crítica impiedosa aos valores e condutas da classe média alta do Rio de Janeiro. Proprietários de um Pet Shop requintado da Zona Sul, Bebel e seu marido vivem no melhor dos mundos — uma vida de paz (por conta da “Cherokee blindada na garage”) e de felicidade. Um é o espelho do outro, nas atitudes e ambições. O narrador da história é o marido de Bebel. A desfaçatez desse personagem-narrador fica de imediato patente; mais à frente, ao final do conto, sua brutalidade também. Os bens e produtos de sua preferência e de seu amigo Peninha vão sendo prontamente enunciados: além da Cherokee, “seis meses em Miami”, visita de Vera Loyola ao Pet Shop (“Sabem o que Verinha Loyola e o Bidu [o cachorrinho da socialite] significam numa festa Pet? Prestígio, sucesso e garantia de negócios milionários”), Mitsubishi L200 Triton, Toyota Hilux D40, jet ski, lancha de 20 pés, flat em grande resort, personal-house… O personagem-narrador também é apegado ao seu cachorro (chamado de “meu bebê”) que surfa e toca piano e aos livros de auto-ajuda (à “neurolingüísitca aplicada do dr. Shinyashiki”). Embora não fique claro no conto se se trata de um cachorro ou de uma criança. E, inevitável, a pergunta se impõe ao leitor: “Que tipo de gente é essa que chama cachorro de ‘meu bebê’?”. Por vezes desabrido, narrando com zombaria (característica dos narradores de Mirisola) e certo desprezo aos que não integram o seu universo, o protagonista não esconde o orgulho de ter o negócio que tem: “A loja era freqüentada por socialites, apresentadoras de televisão, gente de bem interessada em projetos sociais, negros e negras globais, jogadores de futebol e os filhos da estirpe mais nobre da nossa MPB”. E arremata: “Aquela loja era o Leblon das novelas de Manoel Carlos”. Se o melhor conto fantástico, conforme ainda Cortázar, é aquele em que o inabitual se torna logo regra, em que o elemento insólito se integra, sem mais demora, na ordem comum do cotidiano, o texto de Mirisola é um exemplo acabado do gênero. No ombro de Bebel, logo no início do conto, surge um cisto, uma bolota (que virá a ser o elemento insólito da narrativa). Bebel convive naturalmente com o tumor, mas, com o tempo, e por pressão do marido, se torna insociável. É que o cisto passa a produzir um cheiro terrível, desagradável; a liberar pus. A mulher aí começa a ser tratada como um animal, confinada pelo marido e o veterinário numa jaula. A bolota no ombro, ao final, vem a se transformar num japonesinho faminto, que devora sushi… Um conto que brinca com valores preconizados pela sociedade globalizada, com a insensibilidade de pessoas sofregamente apegadas às aparências, ao acúmulo cego: “Na loja, não”, berra, em certo momento, o personagem-narrador, incomodado com o cisto e a presença de Bebel em seu estabelecimento comercial.

O conto Eternas angústias de um imortal, do jovem escritor mineiro Eduardo Sabino, traz uma boa reflexão sobre o tema da imortalidade. O protagonista, angustiado pela impossibilidade de morrer, tudo o que deseja, ao comparar-se aos demais indivíduos, é “ser frágil” e “decadente”. Daí a sua opção (a única que lhe resta e que lhe reserva algum sentido à vida de andarilho num parque) de passar a “admirar e cobiçar os mortais”, todos “abençoados porque morrerão”. O que o pequeno conto ensina é que, se a morte é mesmo a nossa principal angústia, a vida sem ela torna-se um pesadelo. A vida eterna não nos resolve a angústia de viver — eis a chave do conto.

O paulista Ataíde Tartari é ligado aos escritores que, no Brasil, pensam e praticam a ficção científica. Esta vertente vem cada vez mais tendo adeptos entre nós e os editores parecem agora se interessar pela produção pujante, persistente, de certo grupo que atua principalmente entre São Paulo e Rio, mais ou menos de modo coeso. Quando esses autores são agregados num projeto sério, saem produções como a coletânea Futuro presente: dezoito ficções sobre o futuro, que a editora Record publicou em 2009, com organização de Nelson de Oliveira, e de cujas páginas consta A máquina do saudosismo, um conto muito bem composto de Ataíde Tartari. A máquina do saudosismo, abordando inicialmente o desejo de imortalidade, acaba sendo um conto sobre a solidão. César, o protagonista, é promovido para o cargo de administrador-chefe de um fundo de pensão, quando recebe a notícia: está com uma grave doença. Morre, seu corpo é congelado — e César ressuscita no ano de 2217. O conto se passa em São Paulo. Uma São Paulo com seus gigantescos edifícios (o Mackenzie, onde César se formou, foi demolido e no local construíram uma torre de trezentos metros); com seus “táxis robotizados” que não param nunca (apenas para embarque e desembarque); com seus “administradores ousados” (como o protagonista), que já de muito “estavam literalmente comprando o mundo”. Uma São Paulo onde tudo foi privatizado, onde não há mais serviço público algum (pois “os próprios governos e países deixaram de existir”). César, porém, se vê profundamente triste e inadaptado ao século 23 em que despertou. E passa a ter saudades de seu século, o 21, da boa convivência com os amigos. Adquire então um “simulador mental” (ou a “máquina do saudosismo”, que lhe permite percorrer a memória com perfeição). Através dele César regressa à São Paulo do séc. 21, revê os amigos de faculdade, entre eles, Amanda, por quem fora interessado. Só através do aparelho César (um avarento empedernido, pois, sabendo-se doente terminal, e para não deixar os bens para o irmão, prefere investir todo seu dinheiro na empresa SobreViver, que providenciará o congelamento de seu corpo) abranda a sua incontornável solidão. Um conto engenhoso, de linguagem lapidada, entre os mais importantes da recente ficção científica brasileira.

Ilustração: Tereza Yamashita

4) a vertente dos relatos rurais, ainda em diálogo com a tradição regionalista
A coletânea Inimigos (7Letras, 2007), do cearense Pedro Salgueiro, indicada para o Prêmio Jabuti, compõe-se de 20 contos curtos. Contos que se passam em vilarejos do sertão, com estradas, poeira, serras, forasteiros, e reportando-se a épocas mais remotas. O espaço predominante é o do sertão — mas as situações são universais. Contos de frases contidas, secas, como a paisagem de rochas não raro configurada, com momentos de maestria poética, de palavras ou torneios que nos surpreendem pela força e exatidão. Em boa parte dos contos da coletânea, o que aparece é o desempenho da linguagem, o estilo bem posto. Em seguida é que o leitor vai percebendo que a história, os seus personagens e situações, também têm força, abrem-se muito em seu significado. O conto que dá título à coletânea é cheio de sugestões — todo um longo enredo está contido em pouco mais de duas páginas. Esta e várias narrativas do livro têm forte carga alegórica. O conto descreve um contexto de guerra, de uma invasão, por um pelotão, do território inimigo. A invasão tem caráter demolidor — devasta moralmente os inimigos, abate-os, subjuga-os (além de retê-los, roubá-los, os vencedores relacionam-se com suas mulheres). O pelotão vencedor, de tão confiante, de tanto apostar na fraqueza dos inimigos, termina relaxando, retraindo-se em seu ímpeto. E, ato imprevisto, os inimigos reagem. E reagem de que maneira? Não vou tirar o gosto de o leitor saber como. Só adianto que o pequeno conto é a viva metáfora de que, enquanto não finda o embate, a força do vencedor pode ser relativa, que o respeito ao adversário, compreendendo-o não como um fraco, mas como alguém momentaneamente sem recursos para resistir, é crucial. Descoberta pode ser lido como uma alegoria do desterrado, do migrante cearense, nordestino. A estrada aparece como uma condição atávica, ancestral. A estrada “é o meu destino”, afirma o personagem-narrador em certo momento. Personagem nascido em Papaconha — que aparecerá no livro como lugar de povo peregrino, em permanente deslocamento. O reencontro com Papaconha, para o personagem, é questão crucial, de recomposição/reintegração da própria identidade. Mas A passagem do Dragão, narrando o episódio do eclipse solar de 1919 em Sobral (CE), que foi acompanhado por uma comissão composta por astrônomos de vários países (os quais estariam interessados em comprovar a teoria da relatividade, de Einstein), é possivelmente o principal conto do livro. Um conto que mistura fato e ficção na medida certa. Ciência e misticismo, razão e crença se mesclam nessa pequena história que termina sendo uma boa metáfora do nosso atraso. Pedro Salgueiro, em Inimigos, reinveste em motivos (como, por exemplo, o misticismo e as desavenças/violências por terras, domínios) caros à nossa tradição regionalista. Mas o faz com soluções novas, na forma de pequenas e contundentes alegorias.

O também cearense, radicado em Pernambuco, Ronaldo Correia de Brito (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2009 com o romance Galiléia) é um contista das tragédias familiares, algumas se passando no sertão profundo. Exemplo disso é Faca, que abre o livro do mesmo nome. Trata-se de um conto sobre traição (ou suposta traição) e vingança, reativando códigos tão remotos, como machismo e lavagem de honra, da cultura sertaneja. É composto fragmentariamente, alternando cenas curtas do passado e do presente. No passado, a vida do casal Domísio Justino e Donana; as fugas dele para a capital, onde se apaixona por outra mulher; o recolhimento da rejeitada Donana, que se banha no riacho atrás da casa; a traição de Donana na beira do riacho, segundo desconfia Domísio, que termina assassinando a mulher; Domísio — o traidor que não suporta ser traído. No presente, cem anos depois do crime, os ciganos com a faca — o cabo revestido de ouro — que matara Donana e com a qual os irmãos desta tentaram a vingança, impedidos pela interferência da filha mais velha da mulher. A faca, na briga, foi sacudida para longe, imagem que o narrador, num lampejo poético, capta: “Um vaqueiro que vinha do curral viu uma ave prateada, reluzindo e voando no espaço”. Durante os anos, as pessoas procuraram e não acharam a faca — faca lendária, ícone da maldição. Até que os ciganos a encontram. A prosa enxuta de Ronaldo Correia de Brito tem débitos com a de Graciliano Ramos. E o ambiente seco de sua narrativa, em certos passos (“A viagem era comprida. Os homens comiam rapadura, farinha e carne-seca assada”), lembra situações de O Quinze, de Rachel de Queiroz.

5) a vertente das obras metaficcionais ou de inspiração pós-moderna
Aqui, um outro registro sobre a minha modesta contribuição como organizador de coletâneas de contos contemporâneos. Em Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa e Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte, a primeira de 2006 e a segunda de 2008, nomes expressivos do conto brasileiro atual foram convidados para reescrever narrativas de dois grandes mestres de nossa literatura (Rosa e Machado). Para preparar a antologia Capitu mandou flores (e confesso que foi essa também a inspiração para compor as Quartas histórias) me baseei na proposta de Osman Lins, que, na década de 70, já havia organizado a coletânea de recriações Missa do Galo — variações sobre o mesmo tema. Retomei o projeto de Osman e o ampliei. Em Capitu mandou flores não apenas Missa do Galo é reescrito, mas ainda nove outros contos de Machado: A cartomante, O espelho, Noite de almirante, A causa secreta, Pai contra mãe, O alienista, Uns braços, O enfermeiro e Teoria do medalhão. Os contistas que integraram a coletânea: Lygia Fagundes Telles, Amador Ribeiro Neto, Moacyr Scliar, Nelson de Oliveira, Deonísio da Silva, Glauco Mattoso, Ivana Arruda Leite, Antonio Carlos Secchin, Bernardo Ajzenberg, Marilia Arnaud, Cecília Prada, João Anzanello Carrascoza, Leila Guenther, Maria Valéria Rezende, Raimundo Carrero, Aleilton Fonseca, Carlos Gildemar Pontes, Tércia Montenegro, André Sant’Anna, Andréa del Fuego, Aldo Lopes de Araújo, Fernando Bonassi, Suênio Campos de Lucena, Carlos Ribeiro, Ronaldo Cagiano, Sérgio Fantini, Marcelo Coelho, Maria Alzira Brum Lemos, Mário Chamie, Daniel Piza, Godofredo de Oliveira Neto, Hélio Pólvora, Nilto Maciel e W. J. Solha. Todos, reafirmo, nomes expressivos — uns já consagrados, outros emergentes. Contistas de vários estados e que — junto com os citados e emergentes (alguns já de grande destaque) Vera do Val, Cíntia Moscovich, Marçal Aquino, Luiz Ruffato, Antonio Carlos Viana, Ronaldo Correia de Brito, Marcelo Mirisola, Marcelino Freire, Pedro Salgueiro, Altair Martins, Ataíde Tartari, Eduardo Sabino, Miguel Sanches Neto, Maria Esther Maciel, Lima Trindade e ainda Joca Reiners Terron, José Rezende Jr., João Filho, Sérgio Faraco, Amílcar Bettega Barbosa, Ana Paula Maia, Luci Collin, Marcus Vinícius Rodrigues (que acaba de ganhar o Concurso Nacional de Contos do Paraná/Prêmio Newton Sampaio), entre alguns outros — estão fazendo o conto brasileiro do século 21.

Em Capitu mandou flores há contos bem concebidos, como é o caso de Missa do Galo: um outro enfoque, de Moacyr Scliar. Neste conto, Scliar reinventa Conceição, a personagem machadiana de Missa do Galo, tornando-a uma mulher mais desbloqueada, que assume seu discurso, seu desejo, seu poder de sedução (o conto de Scliar é narrado por Conceição; o de Machado, sabe-se, é narrado por Nogueira). Uma mulher de vontade e vingativa, que no fim investe contra o marido Meneses. Se Machado flagrou, criticamente, a imagem típica da mulher casada (e portanto reclusa/reprimida) do século 19, Scliar apresenta uma mulher mais atual, mais liberada e dona de si. Capitu mandou flores traz também, do mineiro Sérgio Fantini, A face esquerda, um conto certamente original, montado a partir de datas históricas intercaladas com trechos de O enfermeiro, resultando numa interessante ressignificação do relato de Machado. Traz ainda Trem das onze, de Marcelo Coelho, que, além de ficcionista, é conhecido colaborador da Folha de S. Paulo. Trem das onze, costurado com vários clichês acadêmicos, parodia certas análises da obra machadiana, discutindo ainda a forma (pragmática, mais voltada para os programas de vestibular) como a literatura é utilizada na escola.

Em Quartas histórias, Lalino tá na área, de André Sant’Anna, põe os personagens de A volta do marido pródigo, de Rosa, no morro carioca, nas bocas de fumo. Linguagem elétrica, malandra, o bom conto de André retrata a paixão, os afetos e desafetos de um traficante que vende e depois tem de volta a mulher; mistura tráfico com política ao fazer desse traficante — esperto e de histórias envolventes — cabo eleitoral de um candidato a deputado (ex-policial, vereador e, conforme o narrador, “bandido sério”), que termina controlando o morro. O baiano Carlos Ribeiro também aproveita alguns personagens de A volta do marido pródigo na composição do conto Traços cenográficos de Salino Lalãthiel (título que inverte as maiúsculas de Lalino Salãthiel, o protagonista de Rosa). Outro conto original, em que um diretor “pós-moderno” adapta para o teatro a narrativa do escritor mineiro. O diretor (que, confundindo ficção e realidade, não esconde sua paixão pela personagem Maria Rita, a mulher de Lalino Salãthiel), concebe como cenário a cidade de Salvador e empenha-se o máximo para tornar a ação e os diálogos de sua peça eficientes. O conto narra a própria adaptação da peça — e é uma mescla inteligente dos gêneros narrativo e dramático. Em Mané fulô, a paulista Cecília Prada, com linguagem apurada, modifica o desfecho de Corpo fechado, trazendo agora um protagonista que, de orgulhoso por ser filho ou ter “sangue de Peixoto” (referência, no relato de Rosa, a Nhô Peixoto, “o maior negociante do arraial”), vinga-se, com extrema violência, do pai pelo ódio de se ver “bastardo, miserável e sem direitos”. Natividade, do também paulista João Anzanello Carrascoza, é um conto experimental, elaborado a partir de trechos de O burrinho pedrês, Sarapalha, Conversa de bois e A hora e vez de Augusto Matraga. Ainda de Quartas histórias é Duelo, da pernambucana Luzilá Gonçalves. Baseado no conto homônimo de Rosa, muda o ponto de vista da história original. É narrado por Silivana, que conta sua paixão por dois homens: o marido, Turíbio Todo, e o amante, Cassiano Gomes. Trata-se de uma narrativa bem humorada, que parodia a representação do masculino no relato do escritor mineiro. Parodia a briga incessante de Turíbio contra Cassiano — briga que se transforma, já para o final do conto de Luzilá, em desbragados risos e abraços, além de bebedeira, dos inimigos mortais.

Por outro lado, esses autores que acabo de citar, e ainda os demais, das duas coletâneas de reescrituras que organizei, não intentaram, em hipótese alguma, fazer uma disputa com Machado de Assis ou com Guimarães Rosa — o que seria uma imperdoável ingenuidade. Mas sim proporcionar (na maioria dos casos) com suas recriações um diálogo reverencial com os nossos célebres escritores. Por vezes, um diálogo desconstrutor — como ocorre em várias metaficções pós-modernas. De todo modo, um diálogo inteligente, instrutivo até.

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Nessa exposição sobre as cinco vertentes do conto brasileiro do século 21, procurei apresentar contos significativos e não apontar os melhores contistas — tarefa, do ponto de vista crítico e metodológico, muito difícil, e mesmo arriscada, em se tratando de produção tão recente. Às vezes um contista — algo que freqüentemente acontece entre os novos autores — se dá bem na elaboração de um texto e comete pecados na elaboração de outro. Neste caso, fica um impasse, pois o desejado, para uma posição entre os melhores, é sempre uma regularidade no conjunto da produção. Esta regularidade é dificílima e muito poucos escritores, em cada geração, conseguem atingi-la.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho