O continente em (uma) revista

Et Cetera nasce com periodicidade trimestral e com o desafio de ser plural, sem privilegiar grupos ou partidos culturais
01/02/2003

O Paraná é um Estado que tem tradição em produzir publicações culturais. Cada geração acaba criando seu periódico, geralmente por iniciativa de algum intelectual representativo da época. Dalton Trevisan esteve à frente da Joaquim, revista editada de 1946 a 1948, considerada a certidão de nascimento do modernismo paranaense. Em seus 21 números, houve espaço para o que havia de mais relevante na cultura brasileira. Entre os colaboradores, figuravam, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade, José Paulo Paes, Mário de Andrade, Wilson Martins, Temístocles Linhares, Poty, Di Cavacanti, José Lins do Rego, entre outros. A turma que despontou nas décadas de 70 e 80 deu seu recado nas páginas do Nicolau, sob a batuta de Wilson Bueno. Se a Joaquim conseguiu ultrapassar os limites da Rua XV (famosa por seu calçadão pouco florido), o Nicolau carimbou o passaporte e levou o nome de Curitiba para os mais inesperados endereços deste planeta. Com o fim das atividades do Nicolau, os mais do que novíssimos procuram ocupar o vácuo. Ricardo Corona tentou emplacar a Medusa, Miguel Sanches Neto coordenou a Radar — ambas extintas, e Rogério Pereira perde os cabelos para manter este Rascunho em circulação. Em Londrina, no Norte do Paraná, está sendo editada a Coyote. Mas é, novamente, a capital paranaense que traz uma boa nova, talvez a notícia do ano, editorialmente falando.

As atuais revistas de cultura de circulação nacional são, em sua maioria, viciadas. De um lado, há as dependentes de lançamentos; do outro, aquelas que apresentam discurso completamente previsível, independentemente do assunto em pauta. Por sua vez, a recém-lançada Et Cetera — pelo que se pode conferir na edição zero, já circulando em todo País — revela saudável autonomia em relação ao mercado. A começar pelas entrevistas. Nenhum dos autores entrevistados — Arnaldo Antunes, José Kozer e Jamil Snege — está divulgando seu mais recente lançamento: eles foram convidados para, individualmente, discutir idéias. E o destaque, no que diz respeito às entrevistas, é o bate-papo com Snege, indiscutivelmente, um dos mais importantes nomes da literatura brasileira contemporânea. Autor de 11 livros, todos editados artesanalmente, o que lhe garantiu liberdade criativa, o “turco” — como é chamado pelos mais próximos — é dono de uma visão de mundo irônica e de um texto ágil, vivo — extremamente burilado. Ao ser questionado sobre sua atividade de escritor, Jamil deu uma prova de sua invejável capacidade reflexiva: “Eu tenho uma dificuldade intrínseca de existir no mundo. Gosto de algo que li há tempos, e que defendo, que a obra de arte é uma espécie de prótese da qual você se socorre para suprir uma certa deficiência ontológica. Assim como existem pernas mecânicas, os dentes postiços, os olhos de vidro, as obras que os artistas produzem têm o mesmo objetivo — torná-los menos incompletos perante o mundo”.

Em suas 204 páginas, Et Cetera procura mostrar um pouco da imensa e exuberante produção cultural contemporânea do continente americano. A prosa de ficção está representada por Wilson Bueno, Luci Collin, Nelson de Oliveira, José Castello (estes dois, colaboradores fixos do Rascunho), além de Fábio Campana. Autor de O guardador de fantasmas, um dos mais importantes romances brasileiros sobre o período militar, Campana comparece com o inédito Insônia, conto que trata de um de seus temas recorrentes: a desilusão diante de um mundo absurdamente pragmático, sem lugar para utopias.

Um grande acerto da publicação foi apresentar aos leitores diversos pontos de vista sobre um mesmo assunto. Partindo do poema Acima de qualquer suspeita, em que José Paulo Paes, ironicamente, sugere que “a poesia está morta”, Et Cetera convidou onze autores para que, cada um, individualmente, tomasse partido. Glauco Mattoso, Zeca Baleiro, Sebastião Nunes, Fabrício Carpinejar (outro colaborador do Rascunho), Claudio Willer, entre outros, dão a entender que a poesia está viva — alguns, obviamente, justificando a própria existência. Apenas um desconhecido (pelo menos para mim) José Arnaldo Villar diz com todas as letras: “Vamos, admitam: a poesia brasileira morreu, e o cadáver já fede”.

É possível conferir nas páginas de Et Cetera se tal discussão tem pertinência, ou não. Dez poetas brasileiros contemporâneos — entre eles, Fabiano Calixto, Neuza Pinheiro e Ricardo Aleixo — farão com que o leitor reflita se a poesia brasileira morreu, ou não. Outros poetas brasileiros, como Ademir Assunção e Moacir Amâncio, e também poetas de países americanos tiveram seus poemas veiculados nesta edição inaugural. A revista traz ainda tradução, ensaio poético, fotográfico, psicanalítico, e recupera textos raros, a exemplo de O elogia da bosta, possivelmente publicado por Ernesto Luiz D’Oliveira em uma revista curitibana no verão de 1930.

Et Cetera terá circulação trimestral, e o próximo número está programado para quando o outono chegar. O editor, Fábio Campana, esclarece que a revista não está, nem estará, a serviço de nenhum grupo. “Os autores que colaboraram na edição zero não vão participar do próximo número. A idéia é veicular nas páginas desta publicação as mais variadas, e até conflitantes, vozes”, assegura.

Além do conteúdo, a Et Cetera impressiona, também, pela produção gráfica, fruto da sensibilidade da poeta Jussara Salazar. Cada uma das 204 páginas, formato 25 cm x 25 cm, foi cuidadosamente trabalhada. É como se a revista Gráfica, editada na década de 90 por Oswaldo Miranda, o “Miran”, tivesse sido concebida para veicular, além de imagens, também, textos. Se você deseja “ver para crer”, é possível — ainda — encomendar seu exemplar diretamente na Travessa dos Editores, rua Reinaldino S. de Quadros 1460, Alto da XV, Curitiba / PR / Brasil, CEP 80050.030, Tel.(0xx41) 264.9463, [email protected]. Ainda, porque saíram apenas 1.000 unidades da, desde já, histórica edição zero. Ou então, esperar pelo próximo número. Quando as folhas, das árvores, começarem a cair.

Intelectualidade em teste
Diariamente, a coluna política de Fábio Campana é uma das que apresentam maior índice de leitura, e repercussão, no mais importante jornal paranaense. Ao mesmo tempo, sua produção ficcional é uma das mais ignoradas pelos suplementos culturais, não apenas no Paraná, mas em todo o Brasil. No entanto, não é a hora, e aqui também não é o espaço mais adequado, para analisar tal situação.

Autor de um dos mais relevantes romances sobre a ditadura militar, O guardador de fantasmas — injustamente desprezado pelos segundos cadernos —, Fábio Campana vem editando, desde o final do século passado, ficcionistas paranaenses por meio de sua Travessa dos Editores. Entre os destaques do selo, figuram as obras Como eu se fiz por si mesmo, de Jamil Snege, Venho de um país obscuro, de Miguel Sanches Neto e Malvas, fráguas e maçanilhas, de Walmor Macellino.

A entrevista que Campana concedeu ao Rascunho teve como ponto de partida o seu mais recente projeto, a revista Et Cetera. No entanto, o bate-papo, como toda boa conversa, tomou rumos inesperadamente interessantes. Confira:

• Mais uma revista cultural?
Mais uma, o que não é mau. Diante da alta tonelagem de lixo cultural despejada diariamente pela mídia, é muito bom que surjam publicações preocupadas com a cultura. Por mais que existam, sempre serão insuficientes.

• Atualmente, o lixo domina a produção cultural brasileira?
Até a década de 70, quando se encerrou a influência européia, especialmente a francesa, ainda tínhamos um dinamismo próprio e interessante, que estimulava a boa produção cultural. Depois, o lixo cultural passou a ser consumido em larga escala, especialmente o que veio dos Estados Unidos.

• A influência norte-americana foi extremamente negativa?
Os Estados Unidos não tinham apenas lixo cultural a nos dar. É que a sua influência hegemônica se articulou com o advento massivo da televisão. Por esta via, só o lixo. Às vezes, reciclado. Mas lixo.

• A produção intelectual contemporânea é (ou está )pobre?
Especialmente agora, em que a maioria está doida para aderir aos poderes vigentes, mas sabe que isto significa trair a si próprio e esterilizar-se culturalmente. De resto, o entusiasmo populista é comovente. O tom ressentido, delirante, com que alguns investem contra os moinhos de vento, defendendo iniqüidades e absurdos, revela angústia, sentimento de culpa. Quase podemos perdoá-los, porque sabem o que fazem.

• Mesmo assim, há produção qualificada para uma revista trimestral, de 204 páginas?
Eu creio que sim, ou não a editaria, neste gesto que alguns consideram ousado e fadado ao insucesso. O número zero está aí, para o deleite e para a crítica. Uma revista independente, avessa a preconceitos, que ajuda a colocar em teste a intelectualidade tupiniquim. Antes de tudo, uma revista belíssima, graficamente perfeita, obra da poeta Jussara Salazar. De resto, sua qualidade resulta da contribuição de algumas das melhores cabeças do hemisfério. De José Kozer a Augusto de Campos, de Cláudio Daniel a Jamil Snege, de Wilson Bueno a José Castello, e por aí vai.

• Et Cetera não corre o risco de se tornar uma publicação elitista, ao alcance de um minúsculo grupo de leitores?
Não há risco, no que possa parecer elitismo. Risco há no retorno das teses que marcaram boa parcela da produção cultural brasileira durante décadas, desde o final dos anos 50. Percebe-se uma recaída cepecista, agora que o populismo vitorioso na política volta a dar o ar de sua graça. Até alguns dos nossos melhores poetas se dedicam a escrever loas, em rimas pobres, para o presidente Lula da Silva.

• A linha editorial da revista é fechada?
Não. É aberta. O único critério rígido é o da qualidade dos trabalhos publicados. A revista não pertence a grupo, a corrente, a igreja, a partido, ou a qualquer outro tipo de agremiação. É uma revista aberta a todas as manifestações culturais. Neste sentido, ela é bastante vária e democrática, como esperamos que seja.

• Mas deverá circular num grupo muito restrito?
Esta é outra história. É necessário ser claro: arte para os famélicos da terra não existe como arte. O que devemos socializar não é a arte. Devemos socializar a sua compreensão. Não há como vulgarizar Homero. Shakespeare em quadrinhos não é Shakespeare. 

• Então o povo está condenado à ignorância?
É óbvio que o povo é herdeiro potencial de toda a cultura humana. Das pinturas rupestres das grutas de Altamira às pirâmides. De Dante a Einstein. Mas só irá fruí-la quando puder, quando a verdadeira socialização lhe der condições de apropriar-se espiritualmente do que é seu.

• Antes disso, o breu das trevas?
Sim, o breu das trevas. Cultura, o melhor dela, suas expressões mais fortes, é coisa de elite. Ainda mais nestas plagas periféricas, onde mais prosperam a fome e o analfabetismo.

• A perspectiva da arte popular, arte proletária e coisas tais são equívocos?
Não existe arte proletária. A condição proletária é a condição da extrema carência. A arte, a produção de signos culturais, é o oposto: é o excesso. Arte proletária só quando os carentes atingirem a plenitude do acesso aos bens da civilização.

• Mas você já figurou entre os que defendiam a perspectiva da arte popular, da arte proletária, em militância de esquerda, não é mesmo?
Sim. Por muito tempo. Mais do que o necessário. Mas, felizmente, não tenho compromisso com o equívoco. E cansei-me do mundinho frívolo e melodramático da esquerda nacionalista, cristã, esportiva e que agora se apresenta como grande dama de caridade.

• Os intelectuais de sua geração perderam o rumo?
De certa forma, sim. A maioria evita tal dilema de maneira menos dramática, militando em campanhas eleitorais, em ONGS de ecologia, assinando um manifesto aqui, outro acolá, fazendo má literatura sobre a pobreza dos pobres, ou descobrindo virtudes sociológicas em sambinhas e novidades musicais da Bahia. O priapismo também acomete participantes, mas sexo, neste ambiente, é mais assunto de conversa do que de ação.

• A revista é feita em Curitiba. Uma escolha ou uma circunstância?
As duas coisas. Produzimos aqui e a cidade é exigente. Parafraseando Dalton Trevisan, diria que, em Curitiba, a cada esquina, um Polzonoff nos espreita, olhar atento, pronto para desferir o golpe crítico na primeira oportunidade.

Et Cetera
(Literatura & arte)
Número zero
Travessa dos Editores
204 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho